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Futebol brasileiro: um processo de mudança

Quando o assunto futebol vem à tona, o Brasil é lembrado como uma referência, por sua história, seus jogadores de qualidades individuais excepcionais e pelos cinco títulos mundiais conquistados. Mas hoje o futebol brasileiro é modelo de gestão, de profissionalismo e de trabalho visando o futuro e as novas gerações?

O futebol brasileiro está visivelmente em um processo de decadência. Aquele 7 a 1 para a Alemanha foi apenas a ponta do iceberg, já que não aprendemos absolutamente nada com aquela derrota. Gestores do futebol ainda teimam em afirmar que aquele vexame foi apenas uma derrota em campo, sem entender que na verdade foi a vitória de um modelo de gestão de futebol pensado de forma moderna contra um modelo ultrapassado que ainda acredita apenas nas individualidades e no hoje. Enquanto o Bayern de Munique anuncia que está eliminando as categorias sub-9 e sub-10 para que a criança tenha um melhor desenvolvimento motor na infância, o futebol brasileiro não consegue ser exemplo nem na categoria profissional da elite, imaginem em um planejamento a longo prazo pensando nas crianças.

David Luiz, Luiz Gustavo e Ramires após jogo do Brasil contra a Alemanha, válido pela semifinal da Copa do Mundo, em 8 de Julho 2014. Foto: Bruno Domingos/Mowa Press.

Há 13 anos tivemos Kaká como o último atleta brasileiro escolhido como melhor do mundo. Na década de 90, quatro brasileiros atingiram o topo, o mesmo número da década seguinte e só. O que isso significa? Se ainda temos talentos individuais, por que eles não são mais os melhores? Não sabem jogar para o coletivo, estão defasados taticamente, ou porque na Europa é preciso ser profissional?

Em relação aos clubes é possível destacar que nunca obtiveram tanta receita, mas estão cada vez mais distantes dos clubes europeus. Por quê? As receitas são advindas basicamente da venda de atletas. As receitas de TV atingiram o seu topo, mediante uma falta de união entre os clubes, os departamentos de marketing são praticamente inexistentes e falta talento e visão para criar novas fontes de receitas.

Essa falta de gestão impacta dentro de campo. O último campeão mundial foi o Corinthians em 2012. Não temos mais os grandes times, quase imbatíveis que faziam frente às maiores potências internacionais como o fantástico Santos da década de 60, o Internacional da década de 70, Grêmio e Flamengo dos anos 80. Os grandes talentos do futebol nacional que iam para a Europa com 25 anos, hoje saem com 18, sem desfilar por aqui a sua magia.

Time do Grêmio posa para foto antes da partida contra o Hamburgo em que se tornou campeão mundial em 1983. Foto: Divulgação.

A partir da década de 80 e mais intensamente após a Lei Pelé, o futebol brasileiro começou a mudar de patamar. Passamos a exportar os jovens talentos com maior frequência e hoje trazemos, para “reforçar” o brilho do nosso futebol, jogadores veteranos em fim de carreira e pasmem, que vêm pra cá ganhando valores muito próximos aos valores pagos lá fora, com contratos longos. Assim, seguimos com um futebol “lento” em velocidade e de baixa qualidade. A Europa percebeu essa mudança de forma rápida e passou a reforçar seus elencos e a aprimorar a qualidade do futebol local, através de um planejamento eficiente.

A importação desses atletas passou a ser antecipada e acelerada fazendo com que não apenas os craques saíssem, mas também atletas que recém iniciavam sua jornada, tornando-se apostas dos clubes europeus. Mas por que os clubes brasileiros não se movimentam para mudar essa relação? A falta de capacidade de gestão faz com que seja mais interessante rechear os cofres para tapar os rombos financeiros dos clubes com essas transações. É mais simples do que gerir o clube de forma austera e responsável.

Mas essa forma de gerir o futebol criou diversos problemas:

  • Incapacidade e/ou inabilidade de geração de recursos oriunda de outras fontes, devido a essas vendas. Administramos as vendas e esquecemos o resto!;
  • Essas vendas, que antes eram esporádicas, agora passam a ser essenciais para honrar compromissos financeiros e tapar o buraco do caixa;
  • Incapacidade de formação de jogadores de qualidade na mesma velocidade de venda. Fato este que, indiretamente, deixa o nosso futebol com um nível técnico abaixo do necessário para o desenvolvimento de um jogador mais completo;
  • Incapacidade de montar times entrosados e com um padrão de jogo, visto que todo ano os principais jogadores são vendidos. Fato este que acarreta uma série de problemas estruturais. Times fracos, menor o resultado, mudança constante de treinadores, planejamentos de curto prazo que são alternados a todo o momento.

Dessa forma, estabeleceu-se um ciclo de mediocridade. A mediocridade de gestão, financeira e técnica. A incapacidade de gestão gera uma necessidade de venda; atletas de alto nível saem e aqui ficam os médios e veteranos; o futebol fica lento, pobre técnica e taticamente, não sendo um produto atrativo ao público; menos pessoas interessadas em nosso futebol, acarreta em uma menor receita, causando impacto no resultado financeiro.

Mas a pergunta que se impõe é: como reverter esse ciclo?

O processo de mudança é longo, mas precisa ser iniciado. Primeiramente, na área administrativa, há a necessidade de profissionalismo. A maior parte dos grandes clubes europeus são geridos como empresas, com acionistas, com investidores. No Brasil, ainda somos 100% paixão, onde o amadorismo é a mola propulsora das ações. O presidente despreparado delega funções a amigos e conselheiros sem preparo, o filho do dirigente é gestor de um departamento e, assim, segue até o final da gestão, quando tudo muda para um grupo de outra esfera política ter os seus três anos de vitrine.

Alexandre Campello, presidente do Vasco, nomeou seu filho do primeiro casamento como diretor jurídico do clube. Foto: Paulo Fernandes / vasco.com.br.

Os clubes precisam ter profissionais na área comercial (ainda temos grandes clubes da elite que nem um departamento comercial possuem), marketing, finanças, dentre outros com capacidade e visão para desenvolver o nosso futebol.

As categorias de base precisam ser melhores trabalhadas e haver um planejamento de carreira para os atletas. E seria importantíssimo que houvesse união entre os clubes para que a legislação fosse alterada, fortalecendo o nosso futebol, deixando os jovens talentos mais tempo entre nós.

Os torcedores precisam ser tratados como clientes. Hoje todo o torcedor tem opções de lazer e inúmeras alternativas para gastar o seu dinheiro. Apenas a paixão não destina mais o dinheiro do torcedor para os cofres do clube. É preciso atender as suas expectativas, necessidades e vontades.

A cultura de curto prazo é um entrave importante no processo de mudança. Precisa haver planejamento, método de trabalho, visão (aonde queremos chegar), qualificação contínua, tempo de trabalho para os profissionais (o resultado de campo nem sempre reflete o trabalho que vem sendo desenvolvido).

Temos muito a mudar, mas isso só será feito quando houver, acima de tudo, a união dos clubes e uma entidade de pretenda realmente fortalecer o nosso futebol. Sem isso, não sairemos do lugar. E o começo? É preciso inicialmente gerar o debate, criar um processo de mudança coletiva para identificar as nossas qualidades e as fraquezas que necessitam modificações. Só assim o futebol brasileiro voltará a ser uma referência e os clubes deixarão de ser grandes marcas locais para ser protagonistas mundialmente.

E sobre esse assunto de globalização falaremos mais adiante. O próximo passo é transformar os clubes brasileiros em marcas globais deixando de atender apenas o mercado interno. Temos vários exemplos pelo mundo, clubes que sabem se comunicar com o seu público interno e com torcedores de todos os continentes. Podemos citar Real Madrid e Barcelona, Juventus, Milan e Internazionale, Manchester United, Liverpool e Chelsea, Bayern de Munique e Borussia Dortmund.


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Eduardo Prolo Seghesio

Consultor em Competitividade e Estratégia -Mestre em Administração -MBA em Redes e Relações Interorganizacionais -Bacharel em Ciências Econômicas

Fábio Bloise Mundstock

Mestrando em História pela PUC RS, Pós-Graduação Lato Sensu em Futebol/Universidade Federal de Viçosa e Pós-Graduação em Marketing/FGV. Qualificação como Treinador de Futebol Profissional concedida pelo Sindicato RS, Licenças de Treinador (B e C) da CBF, Licença Grau I de Treinador Profissional concedida pelo Instituto Português de Desporto/Portugal. Analista de Desempenho Profissional com qualificações em Psicologia do Esporte e Direito Desportivo. Graduação em Ciências Econômicas com diversas especializações no mercado financeiro.

Como citar

SEGHESIO, Eduardo Prolo; MUNDSTOCK, Fábio Bloise. Futebol brasileiro: um processo de mudança. Ludopédio, São Paulo, v. 135, n. 39, 2020.
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