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Futebol, Carnaval e uma Zona Oeste que não te mostraram

Mariana Vantine de Lara Villela 28 de fevereiro de 2019

Rio 2016, os holofotes estavam direcionados à “menina dos olhos” do mercado imobiliário. Além do “Porto Maravilha”, era em uma parte da zona oeste (Barra, Recreio e parte de Jacarepaguá) que se criava grande expectativa em torno da especulação imobiliária. O Parque Olímpico se erguia ali, simbolizando um projeto de cidade marcado por contradições. Essa história com certeza você já ouviu falar. Mas quero abordar aqui o outro lado dessa zona da cidade, e de uma diferente perspectiva. O lado de Bangu e Padre Miguel, bairros que costumam aparecer na mídia pelo seu abandono por parte do Estado, e que são um verdadeiro tesouro cultural do Rio de Janeiro.

Todo fã de futebol conhece Charles Miller. E Thomas Donohoe?

Thomas Donohoe, um dos pioneiros do futebol brasileiro.

Nascido na Escócia, Thomas, também conhecido como “seu Danau”,  veio ao Brasil com 31 anos de idade para trabalhar na Fábrica de Tecidos Bangu. Naquela época, o futebol já era amado na Grã Bretanha. E foi no dia 5 de setembro de 1894, que, a seu pedido, sua mulher Elizabeth desembarcava no Rio trazendo os dois filhos e uma bola de futebol. Demoraram apenas quatro dias para que Donohoe montasse as traves improvisadas e reunisse um grupo de amigos para matar a saudade desse esporte. Com apenas seis jogadores em cada time, e a falta de preocupação com com uniformes e anotações, o futebol era finalmente introduzido no Brasil com sua primeira “pelada”. Mas justamente por essas circunstâncias da partida, o pioneirismo foi concedido a Miller, que veio a apresentar o futebol apenas em outubro daquele ano.

A importância do bairro de Bangu para o futebol não se limita a esse episódio. Em 1904, foi fundado o “Bangu Athletic Club” (hoje Bangu Atlético Clube), o qual teve Thomas Donohoe como seu primeiro vice-presidente. Em tempos que o futebol era um esporte da aristocracia brasileira, o Bangu foi fundamental para a popularização deste. Com sua localização distante do centro da cidade, era muito difícil que ingleses se deslocassem até o bairro da zona oeste para integrar a equipe de futebol, e os que moravam lá eram insuficientes para completar o time com reservas. Então, alguns operários começavam a dividir sua jornada entre trabalho na fábrica e treinos como atletas. Em 1905, o tecelão Francisco Carregal passava a integrar a equipe, e também se tornava o primeiro negro a disputar uma partida de futebol no Brasil (o esporte ainda não era profissionalizado, por isso na historiografia do futebol não se afirma que tenha sido o primeiro jogador de fato, visto que sua ocupação oficial era de operário). Francisco foi um marco na história do futebol, causando revolta na Liga Metropolitana, então organizadora do campeonato carioca, que em 1909 determinou que o clube estaria proibido de registrar atletas negros. O Bangu recusou a ordem da liga, e só retornou à competição em 1911, com quatro atletas negros, conquistando a segunda divisão.

“O Bangu tem também a sua história, a sua glória, enchendo seus fãs de alegria! De lá, pra cá, surgiu Domingos da Guia.” Não podemos deixar de citar a família “da Guia”, lembrada inclusive no hino no clube. Foi em 1912, que a história da família no Bangu começou com Luiz da Guia. Seu irmão, Domingos da Guia, notado por driblar os atacantes adversários, é considerado até hoje como um dos maiores zagueiros do futebol brasileiro. Mas foi o meia Ademir da Guia, o mais famoso da família. Filho de Domingos, o jogador começou sendo destaque no Bangu, conquistando a  International Soccer League. Depois foi titular do Palmeiras, se tornando um dos maiores ídolos do clube paulista.

Jogadores do Bangu, campeões da Taça Francis Walter.

Se no futebol a zona oeste reserva extraordinárias histórias, no que diz respeito a samba e carnaval não poderia ser diferente. Foi na favela Moça Bonita, hoje conhecida como Vila Vintém, que nasceu a mulher considerada pela BBC como a melhor cantora do milênio, Elza Soares. Dona de uma história sofrida e de superação, a cantora é uma fonte de inspiração em todos os sentidos.

Bandeira oficial do Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos de Padre Miguel.

Padre Miguel é a capital, da escola de samba que bate melhor no carnaval!”, diz a letra de Elza. Em 1955, nascia sua escola do coração, Mocidade Independente de Padre Miguel, a partir de um time amador de futebol, o Independente Futebol Clube. O carnaval que conhecemos hoje deve muito à escola verde e branco da zona oeste. As famosas “paradinhas” das baterias, que arrepiam as arquibancadas da Sapucaí, são uma criação do Mestre André, regente da bateria da Mocidade entre os anos de 1960 e 1970. Inicialmente, somente a caixa de guerra ficava tocando, depois as paradinhas foram ganhando novas formas, como as chamadas de cuíca,  tamborim e reco-reco. Além da Mocidade, o bairro conta também com a escola Unidos de Padre Miguel, fundada em 1957.

Em uma cidade que viu seu maior museu arder em chamas, infelizmente não surpreende o fato de não valorizar esse verdadeiro patrimônio cultural que esta região abriga. Então, aos que não conheciam, lhes apresento o lugar em que nasceu o futebol brasileiro, e que abriga o clube qual abriu uma importante porta, possibilitando a Pelé, Garrincha, Ronaldinho, Neymar e tantos outros jogadores negros brilharem em campo. O berço de nomes que revolucionaram o samba. Muito prazer, Zona Oeste.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Mariana Vantine

Pesquisadora de Futebol e Políticas Econômicas.Membro do coletivo internacional Football Collective.

Como citar

VILLELA, Mariana Vantine de Lara. Futebol, Carnaval e uma Zona Oeste que não te mostraram. Ludopédio, São Paulo, v. 116, n. 28, 2019.
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