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Do futebol ao carnaval: a metamorfose das torcidas organizadas em escolas de samba na cidade de São Paulo

“Transformai os espectadores em espetáculo.

Tornai-os atores”.

2018 é um ano importante na consolidação da participação das torcidas organizadas como escolas de samba no carnaval paulistano. Primeiro, porque completam-se 30 anos desde a transformação, em 1988, do bloco da Gaviões da Fiel, criado em 1975, em um grêmio carnavalesco, desfilando lado a lado das mais tradicionais escolas da cidade, como a própria Vai-Vai, de cuja ala, em seus primórdios, se originou. Segundo, porque neste ano, pela primeira vez, quatro escolas originárias das torcidas uniformizadas de futebol participaram do Grupo Especial, a chamada elite do carnaval paulistano.

Além da Gaviões da Fiel, desfilaram no sambódromo do Anhembi os G.R.C. E. S. (Grêmio Recreativo Cultural Escola de Samba) Mancha Verde, Dragões da Real e Independente Tricolor. A Mancha Verde, que celebrou em seu samba-enredo o tema da “amizade”, por muito pouco não se sagrou campeã em 2018. Ficou na terceira posição, tendo obtido 34 notas máximas, 10.0, e apenas duas notas 9.9, num total de nove quesitos, cada qual com 4 jurados a pontuar. Já em seu primeiro desfile no Grupo Especial, a Independente foi rebaixada, mas seu descenso se explica mais por razões técnicas, após a quebra de um dos 5 carros alegóricos da escola. Segundo as normas do regulamento, foi penalizada com a perda de 1.2 pontos.

Caso a Independente não tivesse recebido a pena pelo erro mecânico de sua engenhoca gigante, teria escapado da última colocação na sua estreia no Grupo Especial. De todo modo, para estreantes, subidas e descidas na hierarquia do carnaval são normais, até que se encontre um padrão de excelência nos desfiles. É o caso de Gaviões, Dragões e Mancha, já há vários anos sucessivos no elenco principal das escolas de samba paulistanas.

Desfile da Escola de Samba Independente durante o primeiro dia do carnaval paulista. Foto: Divulgação/LigaSP.
Desfile da Escola de Samba Independente durante o primeiro dia do carnaval paulista 2018. Foto: Divulgação/LigaSP.

Até que a presença de quatro escolas-torcidas se consumasse no Grupo Especial, um longo processo de negociação política e de entendimento jurídico foi necessário junto à Liga SP, entidade civil organizadora do evento, e junto à opinião pública. Durante muito tempo, prevaleceu a postura cética e defensiva de que a presença das torcidas organizadas geraria problemas indesejáveis à essência do carnaval paulistano, levando tensões, rivalidades e violências existentes nos estádios de futebol para a passarela do Anhembi.

Tanto isso é verdade que nos anos 1990 a Liga chegou a propor um desfile à parte, apenas com escolas-torcidas, em uma espécie de competição exclusiva, em paralelo ao carnaval oficial. A ideia foi implementada durante alguns anos, mas não vingou e acabou por ser abolida. Em seguida, o regulamento preestabeleceu que somente uma torcida organizada poderia participar do Grupo Especial. Ao longo de várias edições, apenas a agremiação mais longeva, o Grêmio Recreativo Gaviões da Fiel, tomou parte na elite do carnaval.

São Paulo – Escola de samba Gaviões da Fiel no segundo dia de desfile das escolas de samba paulistanas do Grupo Especial (Divulgação/LigaSP)
Escola de samba Gaviões da Fiel no segundo dia de desfile das escolas de samba paulistanas do Grupo Especial 2018. Foto: Divulgação/LigaSP.

Pouco a pouco, as demais torcidas se estruturaram, adquiriram seu próprio know-how e foram ascendendo de forma paulatina no total das 6 divisões existentes. Quando a Mancha Verde alcançou enfim o Grupo Especial, a Liga SP teve de concordar com o princípio meritocrático da concorrência seguido pela agremiação. O regulamento foi assim modificado. Estabeleceu-se, porém, que para evitar embates uma escola-torcida desfilaria em um dia, enquanto a outra, no dia seguinte.

Eis que, em 2013, a são-paulina Dragões da Real galgou a primeira divisão do carnaval. Como se tratava da segunda torcida organizada do São Paulo, em termos quantitativos de importância e de número de adeptos, a Escola acabou sendo aceita também. Ela era considerada menos ameaçadora, pois seu grau de rivalidade potencial era em princípio menor. Foi assim alocada em uma das noites de desfile, ainda que em horários espaçados e alternados, ora no mesmo dia da Gaviões, ora junto à Mancha Verde. Não obstante, a Escola não foi coadjuvante e veio para ficar. Obteve ótimas colocações, sempre entre os cinco primeiros lugares, destacou-se pela qualidade plástico-visual de seu conjunto e, no ano passado, conquistou o vice-campeonato.

São Paulo – Dragões da Real no segundo dia de desfile das escolas de samba paulistanas do Grupo Especial (Divulgação/LigaSP)
Dragões da Real no segundo dia de desfile das escolas de samba paulistanas do Grupo Especial 2018. Foto: Divulgação/LigaSP.

Em 2017, outra são-paulina, a Independente Tricolor, foi vice-campeã do Grupo de Acesso. Com isto, angariou o direito de participar em 2018 do Grupo Especial. O impasse estava novamente colocado. Um temor se configurou, haja vista o histórico de brigas desta torcida, seja no futebol seja nas divisões inferiores do carnaval.

Em 2003, à saída de um desfile, um “bonde” com integrantes da torcida resolveu fazer um “ataque”, como dizem em linguagem nativa, a uma escola de samba corinthiana, a Pavilhão 9, e a outra palmeirense, a Mancha Verde, que também desfilara no Anhembi. O incidente resultou em uma fatalidade. A morte do torcedor rival levou o então presidente da Independente – vulgo Sukita – à condenação e à prisão. A escola são-paulina, por seu turno, foi banida do carnaval por um tempo considerável pela UESP (União das Escolas de Samba de São Paulo).

No carnaval de 2013, já de volta ao carnaval e ocupando lugar no Acesso 2, o equivalente à terceira divisão, a Independente também protagonizou um momento de tensão nas arquibancadas do Anhembi. Isto porque, pouco antes do início do carnaval, após um São Paulo e Santos no Morumbi, integrantes da torcida perseguiram em um carro componentes da Torcida Jovem santista. Na perseguição, munidos de armas brancas, investiram contra um torcedor organizado do Santos, espancado até a morte, a caminho da sede da torcida alvinegra.

A polícia civil não foi capaz de identificar os responsáveis, nem de elucidar as motivações do caso. O promotor de Justiça, Paulo Castilho, por sua vez solicitou um novo banimento à escola de samba Independente Tricolor nas vésperas do carnaval daquele ano. Mas o pedido da promotoria não foi atendido pela Liga das escolas de samba paulistanas, já que o caso não se relacionava diretamente ao carnaval. A aflição continuou, pois, por coincidência, naquele mesmo mês de fevereiro de 2013, Independente e Torcida Jovem do Santos desfilavam na mesma noite de carnaval, uma vez que as duas encontravam-se no Acesso 2. O receio de um ato de vingança por parte dos santistas implicou num reforço policial solicitado ao Anhembi. O sambódromo foi territorializado, como se fosse um dia de clássico no futebol, mas ao final, nenhum confronto foi registrado.

Desde então, a Independente Tricolor parece ter-se conformado mais às regras de convivência e sociabilidade carnavalesca. Ascendeu ano a ano nos desfiles, investiu na aquisição de uma quadra, incorporou uma escola de samba de menor porte em seus quadros, a Malungos, contratou carnavalescos de ponta e trouxe lideranças históricas da torcida para o seio da escola. Entre estes, destaquem-se o fundador Danilo, o líder do movimento interno “A Retomada” – Batata –, e Mestre Adamastor, presidente da torcida nos anos 1990. Este último é bastante ligado ao universo musical do samba paulista, destacando-se na direção de bateria da escola, na realização de palestras motivacionais e na ala de ritmistas de agremiações tradicionais, como a X9 Paulistana.

São Paulo - Desfile da Mancha Verde durante o primeiro dia do carnaval paulista (Divulgação/LigaSP)
Desfile da Mancha Verde durante o primeiro dia do carnaval paulista 2018. Foto: Divulgação/LigaSP.

Apesar de desfilar na mesma noite da Mancha Verde, não houve registro de distúrbios da Independente em 2018, embora a mensagem da letra de seu samba-enredo insinuasse “uma noite de terror”, a ser encenada pela torcida na Avenida… Entretanto, assim como as demais torcidas-escolas, seus integrantes comportaram-se da mesma maneira que os demais, comparecendo aos ensaios técnicos do Anhembi, munidos das bandeiras que, por sua vez, estão interditadas nos estádios. Nos dias dos desfiles, lotam as arquibancadas do sambódromo, desfraldam suas faixas, acendem sinalizadores e soltam fumaça colorida – utensílios também proscritos das arenas de futebol.

Por razões jurídicas, econômicas e administrativas, as torcidas organizadas e as escolas de samba de mesmo nome têm estatutos diferenciados. Assim, seus CNPJs são distintos, embora o fluxo de integrantes transite nos dois sentidos. As escolas de samba acabam sendo uma espécie de “aposentadoria” para os componentes e para as lideranças mais velhas das torcidas organizadas, cuja disposição para ser linha de frente nas partidas e nas caravanas já não é mais a mesma, recriando seu laço de pertencimento ao grupo por meio do carnaval.

O presidente da Dragões da Real, conhecido como Tomate, foi uma ativa liderança da torcida nos anos 1980 e 1990, e agora prefere dedicar-se à escola de samba. Vai com a torcida apenas aos jogos mais importantes. O mesmo ocorre na Gaviões da Fiel, com lideranças da “antiga”, como Dentinho, Paracatá e Ernesto Teixeira. Este último é o intérprete oficial da agremiação, figura pública responsável por cantar o samba em todos os desfiles da escola, dos anos 1980 até hoje.

Na Mancha Verde, o mesmo sucede: o fundador da torcida, Paulo Serdan, é o atual presidente da agremiação carnavalesca. Ele tem sido um dos principais “cabeças” da escola desde 1995. Foi sua, por exemplo, a iniciativa de homenagear em mais de um samba-enredo diferentes personalidades da cultura brasileira, a exemplo do escritor Ariano Suassuna e do ator Mário Lago.

Outras torcidas têm tentado converter-se em escolas, embora enfrentem dificuldades no projeto, já que se trata de um empreendimento complexo. A Camisa 12, segunda torcida organizada do Corinthians em ordem de grandeza, e a Torcida Jovem do Santos – criada como bloco já em 1978 –, são escolas de samba, mas estão há anos estacionadas na terceira divisão, o Grupo Acesso 2. Em 2018, quase foram rebaixadas.

Ambas tiveram por mentores seus fundadores – Cláudio na Camisa 12 e Cosme Damião na Jovem Santista –, mas não têm conseguido se firmar e ascender na hierarquia carnavalesca. A T.U.P., segunda torcida palmeirense, liderada por Marcelo, também presidente da torcida, Mas teve um alento em 2018: foi vice-campeã do Grupo 4 (sexta divisão) e estará no Grupo 3 (quinta divisão) em 2019. Já a Estopim da Fiel e a Sangue Jovem santista desfilam como blocos de rua. Esta é a condição, por exemplo, da Estopim da Fiel e da Sangue Jovem santista, que desfilam como blocos.

Conforme dito acima, a única torcida-escola que não tem CNPJ em separado é a Gaviões da Fiel. A torcida também fez questão de não abrir mão do uso do símbolo do clube, a que muitas outras escolas tiveram de aceder em razão dos direitos autorais e de registro de marca. A não distinção do estatuto jurídico faz com que a sede social da torcida e a quadra de ensaios da escola de samba sejam um único e mesmo local, situado no bairro Bom Retiro, aliás, berço histórico do Corinthians. Esta superposição de espaços produz encontros e desencontros curiosos. Por exemplo, em dia de ensaio de carnaval, normalmente às sextas e aos sábados à noite, o público frequentador da torcida se modifica de maneira perceptível.

São Paulo – Escola de samba Gaviões da Fiel no segundo dia de desfile das escolas de samba paulistanas do Grupo Especial (Divulgação/LigaSP)
Escola de samba Gaviões da Fiel no segundo dia de desfile das escolas de samba paulistanas do Grupo Especial 2018. Foto: Divulgação/LigaSP.

O ethos majoritariamente juvenil, masculino e viril do dia a dia do grupo dá lugar a outro, mais heterogêneo, que alguns chamariam de “familiar”. Como se sabe, no carnaval faz-se notar a presença mais explícita de homossexuais e este é, sem dúvida, um tema-tabu para a torcida. Trata-se de um constrangimento para boa parte dos componentes e da diretoria da Gaviões, situação com a qual não sabem lidar nem aceitar. Faz-se necessária uma aprendizagem de tolerância para muitos torcedores organizados cisgêneros, ainda desacostumados à diversidade de orientação sexual, já que a “cultura do macho” é parte de suas estratégias de rivalidade e de desmerecimento do “outro”. Sob a égide das torcidas, o rival é sempre menosprezado como homossexual e o grito ofensivo de “bicha”, não exclusivo dos torcedores organizados, campeia eloquente nos estádios.

Nesse sentido, tal confluência provoca a necessidade interna da mudança de uma postura tradicionalmente homofóbica, em prol de um ambiente mais tolerante e aberto às diferenças no seu próprio habitat. A metamorfose das torcidas uniformizadas em escolas de samba é assim, a meu ver, positiva sob vários aspectos, inclusive este. É como se as torcidas saíssem do limbo de sua mais obscura marginalidade para adentrar o proscênio da visibilidade midiático-global, com tudo que isto encerra, evidentemente, de ambíguo.

Basta frisar que, no ôba ôba platinado e exuberante da transmissão televisiva, a palmeirense Viviane Araújo torna-se a musa que veste a camisa da Mancha Verde, enquanto a corinthiana Sabrina Sato faz juras de amor à Gaviões da Fiel, tornando-se seu ícone feminino. Subcelebridades à parte, o simples reconhecimento dos meios de comunicação – penso na cobertura ao vivo do desfile pela Rede Globo em cadeia nacional – dá existência legítima a entidades como a Gaviões da Fiel, a Mancha Verde ou a Independente, o que já é um sinal inaudito de aceitação institucional. Trata-se de um fato à primeira vista paradoxal e de uma realidade, para muitos, inimaginável.

Restam, pois, as perguntas: como “vândalos”, “bárbaros” e “marginais”, para ficar com os termos pejorativos mais usuais, conseguiram construir, legitimar e consolidar essas instituições chamadas escolas de samba, arregimentando milhares de adeptos e propiciando uma vida associativa e recreativa tão importante? Não seria o caso de reconhecer que as torcidas-escolas estão passando por um processo de aprendizagem, em que a rivalidade aniquiladora, ao menos no carnaval, acede ao mínimo padrão de civilidade entre “coirmãs”, para empregar os termos mais amistosos do universo do samba? Não se deve ver neste fenômeno uma esperança, ainda que utópica, ensejada pela dinâmica da cultura popular, capaz de desconstruir toda espécie de rótulos e toda sorte de fatalismos que a normatividade jurídica e que o senso comum insiste em condenar?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

Como citar

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. Do futebol ao carnaval: a metamorfose das torcidas organizadas em escolas de samba na cidade de São Paulo. Ludopédio, São Paulo, v. 104, n. 15, 2018.
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