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Futebol Chileno (II): 18 de outubro e balanço de um ano do “estallido social”

Fabio Perina 16 de outubro de 2020

 

Há exatamente um ano, as quase cinco décadas de hegemonia neoliberal no país andino foram abaladas por uma onda de intensos protestos pelas ruas durante meses. Nos últimos dias ao menos duas notícias vindas do país andino tiveram alguma repercussão na mídia brasileira: a colaboração da inteligência militar dos dois países para vigiar manifestantes e mais um abuso policial com a tentativa de homicídio contra um jovem menor de idade empurrado da ponte sobre o rio Mapocho. Um levante de um ano atrás foi iniciado com um ‘pula-catraca’ contra o aumento das tarifas de transporte foi a ‘fagulha’ que detonou esse contexto não somente insurrecional, mas revolucionário. (Vide que contagiou mobilizações populares nas semanas seguintes na Colômbia e principalmente no Equador). Uma insatisfação generalizada acumulada por década com um projeto comum desde a ditadura dos militares (Pinochet de 1973 a 1989) até a ditadura dos mercados (Concertación de 1990 a 2020), de mercantilizar absolutamente todos os bens não-econômicos. Um processo muito mais como continuidade do que ruptura entre ambos regimes. Um misto de medo antes e desespero depois. Em comum uma profunda biopolítica de des-politização que segrega para os privilegiados as ‘maravilhas’ da meritocracia individual e para os excluídos reduz seus esforços à luta pela própria sobrevivência. (MONTENEGRO, 2013).

No calor dos primeiros meses, nesse veículo já foram contemplados dois textos que trataram, respectivamente, do imbróglio da federação (ANFP) e dirigentes de clubes para adiar ou suspender partidas; e da absurda ‘normalidade’ com que os abusos policiais contra a população vinham ocorrendo e suas implicações no futebol contra os hinchas. Também trabalhei em outro texto uma tematização com as principais palavras-de-ordem que brotavam de calles e canchas em uma mesma sintonia. Com destaque para uma que será o tema de agora em diante: “Chile será la tumba del neoliberalismo”.

Comparado aos recentes protestos de torcidas brasileiras, ainda que em menor dimensão, em maio e junho, algo que pode ser um padrão de semelhança aos dois países foi o campo progressista aderir às várias cores de camisas dos clubes ao invés das cores nacionais, relegadas ao campo da direita com sua obsessão em homogeneidade e até em purificação. Evidente que a reação de governos autoritários, com auxílio dos grandes meios de comunicação, tanto aqui como lá recorreu à tática previsível e desonesta de associar os grupos antifascistas com terroristas. Assim como reaquecer a frequente manobra discursiva, também conhecido informalmente como “ferradura”: nivelar fascismo e antifascismo supostamente como extremos igualmente intolerantes! Antes recorri à “Revista Obdulio” por defender que os torcedores boicotassem as canchas para se concentrarem nas calles como uma negação parcial do que não se quer para construir o que se quer. Nela novamente se encontraram as últimas reflexões do campo progressista de lá se parecendo muito com as de cá. Foram discutidos: a necessidade de fortalecer a função social dos clubes e sua integração comunitária; o vazio que o futebol se torna em estádios vazios; e a conveniência dos ‘donos’ do futebol por acelerar o retorno de seu negócio para forjar uma percepção de ‘normalidade’ e ao mesmo tempo confinar os torcedores apenas a consumidores.

Em uma nova pesquisa para esse novo texto que atualize a questão, me deparo com mais reflexões sobre a dupla ou até tripla criminalização contra os sujeitos revolucionários nessa agitada conjuntura dos últimos meses: contra membros das classes populares, contra movimentos sociais populares e contra membros das barras de futebol (JERÉZ e BUSTOS, 2020). Os autores chamam a atenção contra uma equivocada hipótese, fomentada pela surpresa dos meios de comunicação com um suposto caráter ‘espontâneo’ do movimento, de uma súbita re-politização das barras 30 anos após a sua formação. Pelo contrário, o atual estallido social encerrou a década de 2010 que fora iniciada com protestos nada desprezíveis tanto pelo direito a educação e previdência pública quanto pelo direito de participar nos clubes e a liberdade para torcer nos estádios. (Vide ser contemporâneo e semelhante a um início de década também muito dinâmico no Brasil).

Em suma, os autores atribuem que tanto elite política como elite econômica não conseguem compreender nem o cidadão nem o torcedor, pois a ‘modernização’ da sociedade como um todo e do futebol em particular se deu por caminhos muito excludentes. No futebol, em específico, desde a Ley de Sociedades Anónimas Deportivas (2005) e desde o Plan Estadio Seguro (2011). Inclusive ambas com intensa participação política de Piñera, primeiro como senador e depois em seu primeiro mandato presidencial. Um, por usurpar os clubes dos sócios em benefício de acionistas. (Vide por essa manobra que o futebol pôde ser o últimos dos bens coletivos, depois de recursos naturais e direitos sociais, a ser mercantilizado. O saldo uma década e meia depois é de fracasso financeiro com aumento do endividamento dos clubes e fracasso esportivo com eliminações precoces em torneios continentais). Outro, por representar a obsessão por punição e vigilância do primeiro mandato de Piñera (2011 a 2014) que se aprofundou no segundo mandato (2018 em diante) como a solução única para todos os problemas sociais. (Vide outra trágica coincidência com o Brasil, pois o Chile também planejou militarizar suas escolas com o programa chamado “Aula Segura”—ironicamente “Jaula Segura”).

Protestos no Chile em 2019. Foto: Wikipédia

Os estádios foram usados como ‘laboratórios’ de um estado de exceção que foi aos poucos sendo expandido para o restante da sociedade como agora se viu nos investimentos nas tecnologias mais recentes para repressão e vigilância aos manifestantes. Como era de se esperar, desde março o governo de Piñera vindo da direita empresarial aproveitou a quarentena rigorosa para se radicalizar na ultra-direita. O país, que já foi considerado o ‘laboratório’ do neoliberalismo nas últimas décadas, tem sido também um caso sintomático do encontro explosivo de neofascismo com neoliberalismo nos últimos meses. Vai se tornando cada vez mais claro que a crise econômica de 2008 fechou a janela de autonomia aos governos e movimentos populares na América do Sul e os ceifou com golpes e repressões. Vide medidas de modernizar a tecnologia de vigilância, abandonar a população à crise econômica diante da pandemia e salvar a oligarquia financeira.

Algum alento fica que justamente estamos às vésperas de uma histórica Assembléia Constituinte, para ser iniciada em 25 de outubro, em que cidadãos e torcedores poderão conquistar nas instituições, com o respaldo das ruas que seguirão atentas, as garantias de direitos sociais. Prova disso foi a maior conquista durante a quarentena: a permissão de saque de 10% da Previdência para atender as necessidades emergenciais de um crescente endividamento e empobrecimento. O que se revelou uma pauta para além do economicismo imediato por quebrar a ortodoxia de austeridade financeira e, sobretudo, afrontar as décadas de um dos modelos de previdência mais privatizante do mundo. Inclusive uma pauta politicamente relevante por rachar a base parlamentar de sustentação do governo Piñera. É a oportunidade de revogar a Constituição ‘pinochetista’ de 1980 que deu um manto de legalidade ao estado de exceção do regime militar com sua ‘acumulação primitiva’ profundamente anti-popular. Ora, diante de tantas coisas que nós, torcedores e hinchas, vínhamos perdendo durante o futebol do ‘velho normal’, vale apostar que a chama que se reacenda com a Constituinte seja uma possibilidade concreta de revogar as invenções ‘piñeristas’ e restaurar um futebol mais popular junto de outro modo de vida mais igualitário.

Referências

MONTENEGRO, Luna. “De las prácticas de muerte a la sobrevivencia: apuntes para la comprensión biopolítica de la dictadura militar en Chile.” Sociedad Hoy, 25, pp. 47-63. 2013

JERÉZ, Mauro Navarrete; BUSTOS, Axel Caro. “Del Estadio a la Calle. Hinchas y barras de fútbol en la revuelta social de Chile“. Espacio abierto: cuaderno venezolano de sociología, v. 29, n. 2, p. 30-52, 2020.

https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/chile-a-rebeldia-retomada-e-o-sistema-em-xeque/

https://revistaobdulio.org/2020/08/08/el-regreso-del-futbol-a-un-chile-pandemico/?fbclid=IwAR3D1vaglDZKnWdnZoDVKAJioC9oHoXA9DGKyQVtBo_j2h45Tk31sWhredQ

https://revistaobdulio.org/2020/06/09/vivimos-ya-un-estado-policial-la-respuesta-de-estadio-seguro/?fbclid=IwAR3XlLmOeK0qkHac4q1Ow6ypKSSGbKdhGOL5uk5kJn-KvAMI9d-rg37sbg4

https://revistaobdulio.org/2020/08/25/el-futbol-de-sus-suenos/?fbclid=IwAR2DSBRgYfLi4IpV14OwfEW-HmpSUpYcSYOzKywDxs5TSVW8H7wK9ARZpEo

https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/10/08/chile-pediu-ajuda-a-inteligencia-brasileira-nos-protestos-de-2019.htm


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Futebol Chileno (II): 18 de outubro e balanço de um ano do “estallido social”. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 36, 2020.
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