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Futebol Chileno (IV): um ‘terremoto’ em 2015

Fabio Perina 6 de novembro de 2020

Para tratar dos principais acontecimentos do futebol chileno durante o ano de 2015, em que teve de tudo um pouco, é preciso voltar a 2014. Dentro de campo, na Copa do Mundo no Brasil, a seleção treinada pelo argentino Jorge Sampaoli mostrou uma clara evolução ao vencer a Espanha, atual campeã do mundo, por 2 a 0 no Maracanã. Justamente contra o Brasil, nas oitavas-de-final, no Mineirão, fez uma partida dramática perdendo apenas nos pênaltis depois de ter a bola da classificação com um chute de Pinilla no travessão no último minuto da prorrogação. (Inclusive que vale uma menção que desde essa época foi frequente os jogadores da Roja entrarem em campo em apoio a causas sociais) Fora de campo, a eleição da presidente Michele Bachelet (após um primeiro mandato entre 2006 e 2010) foi encarada com o entusiasmo de novas obras para adequação dos estádios às exigências da Conmebol para sediar a Copa América no ano seguinte.

Tais obras se inseriam em um contexto mais amplo de uma complexa arquitetura institucional do ‘futebol moderno’ no Chile. Na medida em que ‘modernizou’ a “Ley de violencia en los estadios” passando a se chamar “Ley de derechos y deberes de asistentes y organizadores de espectáculos de futbol profesional”. O que na verdade foi uma sutil fachada para incluir de forma vaga e precária os direitos dos torcedores em uma legislação já bastante repressiva com os muitos deveres já existentes e com os novos criados. Sem entrar em mais detalhes da sua análise, apenas uma menção curiosa à ‘criativa’ medida de transferir o horário dos clássicos dos clubes chilenos para o meio dia sob alegação que assim sobra menos tempo para os torcedores se embriagarem!

Em suma, diante de tudo que já se discutiu sobre ‘padrão FIFA’ de megaeventos, tal medida buscou legalizar as condições impostas pela Conmebol durante a Copa América que se aproximava para que fizesse parte da rotina do futebol local. Como sempre observo, o ‘timing’ de medidas governamentais, principalmente aquelas ligadas ao futebol, nunca se passa impunemente: a nova legislação foi aprovada às vésperas do torneio continental para que não houvesse tempo hábil nem sequer interesse em uma discussão pública de sua pertinência. O balanço geral é de uma interpretação que nos primeiros dias de competição a população local estava dividida: entusiasmada com os resultados dentro de campo, e fora dele bastante crítica com os gastos excessivos do governo Bachelet com o megaevento diante de outras prioridades sociais que iam para o fim da fila. Em suma, um cenário similar aos megaeventos brasileiros de 2013-14 ainda que proporcionalmente reduzido em seus protestos.

arquivo pessoal
Faixa de protesto da Copa América. Foto: Arquivo pessoal

Durante o mês de junho finalmente foi iniciada a campanha na Copa América. Jogando sempre no estádio Nacional de Santiago, o Chile teve uma estréia ansiosa em seu grupo com um 2 a 0 no Equador conseguido apenas no segundo tempo. Depois, um susto com um 3 a 3 contra uma equipe alternativa do México (que como se sabe privilegia a Copa Oro da Concacaf). Por fim, não teve problema em confirmar sua classificação ao golear um tradicional rival: 5 a 0 na Bolívia. Sem perder de vista as questões fora de campo, uma breve menção à situação que chamou a atenção nessas primeiras partidas para o estrito cumprimento das exigências da Conmebol para o comportamento nos estádios com proibições de materiais festivos como bombos e bandeiras. A falta de apoio da torcida chilena causou incomodo nos jogadores e até mesmo nos jornalistas que percebiam que isso não deixava a equipe dentro de campo se sentir a vontade. Rapidamente se flexibilizou as exigências para que a barra da seleção, “Marea Roja”, pudesse ser reforçada pela autorização dos seus materiais na fase final.

Nas quartas-de-final um duro confronto contra os atuais campeões: o Uruguai. A partida, que ficou marcada pela provocação de Jara com uma dedada íntima no adversário Cavani, só foi decidida no final com gol solitário de Isla. Na semifinal outro tradicional rival regional: o Peru. Em uma partida bem equilibrada, o Chile abriu o placar com gol de Vargas, tomou o empate com gol contra de Medel, e finalmente outro gol de Vargas, em uma pancada de fora da área, deu números finais ao 2 a 1. O adversário na final seria a Argentina embalada pela goleada ao Paraguai por 6 a 1. Uma partida com tensão acesa no ar desde antes mesmo de seu início. Quanto a futebol, pouco que comparar, a Argentina queria repetir o feito de 91 e erguer mais uma taça no Chile para empatar com o Uruguai como os maiores vencedores da Copa América com 15 títulos. Um misto de otimismo com preocupação diante das mais de duas décadas sem títulos para a seleção argentina, inclusive um ano antes perdendo a final da Copa do Mundo, no Maracanã. Enquanto sobre o Chile pesava uma pressão tanto por ser a sede quanto pela ausência de títulos vendo por décadas todos os seus vizinhos levantando pelo menos uma vez a taça.

Nos dias prévios à final as provocações estavam soltas pelas ruas de Santiago com grande parte da torcida argentina com um novo canto para recordar a fama do país local de traidor do continente ao ter colaborado com os ingleses na Guerra das Malvinas. O lance mais recordado da final, em 4 de julho, foi nos minutos finais em que Messi puxou contra-ataque e tocou para Lavezzi bater cruzado e encontrar Higuaín livre ao lado da trave para só empurrar a bola para dentro. Mas falhou. Assim como durante as cobranças de pênaltis Higuaín falharia novamente batendo para fora. A defesa do goleiro chileno Claudio Bravo na cobrança de Banega deixou a Argentina complicada na disputa. Convertendo todas as cobranças (com Matías Fernández, Arturo Vidal, Charles Aranguiz e Alexis Sanchez) o Chile finalmente soltou seu grito de campeão entalado na garganta.

Nas semanas seguintes a euforia do título deu lugar a uma negociação conturbada e por fim fracassada, com a federação chilena de futebol, a ANFP, tentando queimar o treinador Sampaoli para que parecesse ganancioso. Para seu lugar foi escolhido outro argentino, Juan Antonio Pizzi. Quem aproveitou a base consolidada e teve um início de Eliminatórias bem eufórico vencendo o Brasil em Santiago por 2 a 0 e o Peru em Lima por 4 a 3. Episódio lembrado pelos jogadores chilenos aproveitarem a rivalidade do Clássico do Pacífico para escrever nas paredes do vestiário: “Aqui passou o campeão da América”. Em 2016 foi pela mão de Pizzi que o Chile conseguiu mais uma alegria ao vencer a Argentina novamente nos pênaltis na Copa América Centenário. No entanto, em 2017 “secou a fonte” dessa que ficou conhecida como “geração dourada” ao não conseguir nem vencer a Copa das Confederações nem sequer a vaga nas Eliminatórias para a Copa do Mundo da Rússia. É importante mencionar essa troca de treinadores para entender que o sucesso da seleção chilena em 2015 foi mérito somente de sua comissão técnica e jogadores. Nem mesmo o título da Copa América apaziguou as tensões na ANFP pelos meses seguintes. Não esquecer que foi justo no mês de maio daquele ano que o início do escândalo “FIFA Gate” estremeceu os dirigentes do futebol mundial. Finalmente, em novembro a renúncia do presidente da ANFP, Sergio Jadue (desde então prófugo nos Estados Unidos até hoje), foi um curto-circuito significativo no ‘futebol moderno’ chileno.

Dos gabinetes para as arquibancadas, para encerrar aquele ano agitado outro curto-circuito ainda mais impactante foi o que ficou popularmente conhecido como “caso Valpo”, em 6 de dezembro. Ou seja, uma batalha campal em que torcedores do Santiago Wanderers de Valparaíso e o Colo-Colo invadiram o campo e se enfrentaram. O caso expôs ainda mais a bagunça na ANFP na má organização do futebol local, pois a combinação de resultados naquela última rodada dava o título ao Colo-Colo, porém aquela partida adiada somente foi completa mais de um mês depois e sequer com premiação. Pior ainda ficou para o “Plan Estadio Seguro”, vigente desde 2011 tendo em seu interior a “Ley de violencia” recentemente modificada para “Ley de derechos y deberes”. Ao longo de anos de frustração dos torcedores com um plano que prometia a falácia de sempre de “devolver as famílias aos estádios” teve como prejuízos o aumento de abusos policiais e proibição de materiais festivos, porém sem uma redução de conflitos.

O paradoxo de um plano no papel tão rigoroso com o comportamento dentro do estádio ao se deparar na prática com uma invasão de campo e um adiamento de partida tão contundente somente poderia despertar nos meios de comunicação a declaração convicta de seu fracasso. Uma amostra da esquizofrenia que tomou conta do noticiário naqueles dias foi a acusação das barras como fascistas, o que evidentemente foi refutado anos depois com as suas ações antifascistas no “estallido social” de 2019-20. O balanço que ficou é que o “Plan Estadio Seguro” continuou de pé e com novas reformas em anos seguintes com novas idéias ‘criativas’. Pior ainda, o retorno do ‘pai da criança’ que o criou: um novo mandato presidencial de Piñera à partir de 2018.

Após o “caso Valpo” o cenário para hinchas, barras e sócios continuou difícil com muitas liberdades restringidas para torcer. Se no meio da Copa América houve a situação de uma ‘festa tutelada’ com os poucos materiais festivos da “Marea Roja”, da mesma forma a partir de então as barras se viram em um impasse de precisarem negociar com as autoridades o uso dos seus materiais nas partidas do torneio local. Já a solução criativa que encontraram foi a dos “arengazos”, ou seja, na véspera dos clássicos ocorrem treinos abertos em que a festa é muito mais vibrante do que nas partidas. Uma forma de mostrar frequentemente os abalos e lacunas do “futebol moderno” no país que ainda insiste no erro de reprimir e excluir seus torcedores.

 

Referências

PÉREZ TOLEDO, J. C. “Chile y jóvenes barristas: control social, represión y discriminación”. In: ¿Quién raya la cancha?: visiones, tensiones y nuevas perspectivas en los estudios socioculturales del deporte en latinoamérica / Pablo Alabarces … [et al.] ; compilado por Omar Fernández Vergara ; Rodrigo Soto Lagos ; – 1a ed . – Ciudad Autónoma de Buenos Aires : CLACSO, 2016.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Futebol Chileno (IV): um ‘terremoto’ em 2015. Ludopédio, São Paulo, v. 137, n. 10, 2020.
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