160.4

Futebol, cidade e sustentabilidade (Parte II)

Leandro Dias de Oliveira 5 de outubro de 2022

“Maracanã Sustentável”: ajustes econômico-ecológicos

Um exemplo fundamental de estádio sustentável é o Estádio Jornalista Mario Filho, o Maracanã, situado na cidade do Rio de Janeiro. Palco importante dos Jogos Olímpicos, realizados na mesma cidade, e a mais importante arena da Copa do Mundo de Futebol Masculino, durante sua reconstrução, o Maracanã também recebeu a certificação da Leadership in Energy and Environmental Design (LEED), para construções sustentáveis.

A certificação da Leadership in Energy and Environmental Design (LEED) é concebida e concedida pela organização não governamental United States Green Building Council (USGBC), cujo intento é instituir critérios para a “construção verde” [1]. O US Green Building Council (USGBC) é uma organização privada sem fins lucrativos, que institui um modelo geral de certificação verde, e posteriormente pontua e avaliza a sustentabilidade no projeto, construção e posterior operação[2].

Como pesquisador, tenho me atentado ao modelo de certificação, que sempre prioriza itens específicos, geralmente construídos num barema que reverbera o modelo internacional de construção do desenvolvimento sustentável. Ou seja, há a genuína criação do que é desenvolvimento sustentável por tais organizações, e instituído um exame técnico do que será cobrado para que o avaliado tenha a nota mínima. O modelo de desenvolvimento sustentável, maleável desde sua raiz, é gestado por organizações internacionais privadas, mas sem fins lucrativos, que repercutem o conhecimento de stakeholders (ACSERALD, 2021) no tema. Nesta situação, sustentabilidade, desenvolvimento sustentável e sustentabilidade corporativa se tornam, indiscutivelmente, sinônimos.

A investigação sobre a construção da sustentabilidade do Maracanã já foi realizada. Victor Arouca Gomes sintetizou no artigo intitulado “Maracanã sustentável: um estudo sobre a questão ambiental nos megaeventos esportivos”, algumas das medidas que tornaram o Maracanã Sustentável: (i) reutilização dos recursos hídricos, com o Maracanã passando a recolher a água da chuva através da sua cobertura para o uso nos banheiros e também no processo de irrigação do gramado do estádio; (ii) eficiência energética, com todos os equipamentos utilizados no estádio sendo de alta performance, diminuindo o consumo, bem como a utilização de 23.500 lâmpadas com a tecnologia LED; (iii) instalação de painéis fotovoltaicos na cobertura do estádio para o aquecimento da água dos vestiários e em parte do sistema de automação dos elevadores e escadas rolantes; (iv) proteção de bueiros, a utilização de trincheiras drenantes e tapumes durante a reforma (ou reconstrução, se preferirem), feita para evitar que impurezas infiltrassem no solo e atingissem a atmosfera; (v) proteção e identificação das árvores e cursos de educação ambiental para os trabalhadores que participaram das obras; (vi) tratamento do concreto demolido da cobertura, para que o material descartado pudesse ser reutilizado em outras obras públicas; (vii) separação do material orgânico encontrado após retirada do antigo gramando para destinação a outras obras com fim paisagístico e agricultura; (viii) uso de madeira certificada com o selo FSC (Forest Stewardship Council[3]), bem como cimento e aço utilizados com conteúdo reciclado.

É o próprio Victor Gomes que lamenta que o investimento bilionário “não deveria estar rigorosamente circunscrito ao Estádio do Maracanã”, mas deveria “se espraiar por toda a cidade, a região metropolitana e, por que não, unidade da federação”, revelando uma sustentabilidade seletiva, mercadológica e institucional. Ao mesmo tempo que se construía um Maracanã Sustentável por meio de certificações globais, ocorreu a tentativa de demolição de outros equipamentos públicos, como o Parque Aquático Júlio Delamare, o Estádio de Atletismo Célio de Barros e a Escola Municipal Arthur Friedenreich, impedida graças a manifestações populares. Mas mesmo com toda a luta, não foi possível evitar a remoção da comunidade indígena da Aldeia Maracanã – ainda que se tenha salvado o prédio, por meio do tombamento pelo INEPAC/RJ e pelo Instituto Rio Patrimônio da Humanidade/RIO –, e da comunidade do Metrô, que se encontrava em frente à Estação UERJ-Maracanã. As certificações internacionais são imunes ao entorno imediato, às demandas populares locais e, por que não, aos interesses da própria cidade como um todo.

O Novo Maracanã: a sustentabilidade fez parte da modernização do estádio, da neoliberalização da cidade e da elitização do futebol. Fonte: Wikipédia.
O Novo Maracanã: a sustentabilidade fez parte da modernização do estádio, da neoliberalização da cidade e da elitização do futebol. Fonte: Wikipédia.

Demian Garcia, em sua tese intitulada “‘O Maraca é nosso!’: da ‘monumentalidade das massas’ ao ‘padrão-FIFA’ – neoliberalização da cidade, elitização do futebol e lutas sociais em torno do Maracanã, reforçou que a reforma do estádio para a Copa do Mundo de 2014, envolvendo a concessão do estádio à iniciativa privada e os investimentos bilionários para torná-lo Padrão FIFA, descaracterizaram o estádio em prol da edificação de um modelo de cidade que expressasse os interesses hegemônicos presentes na gestão municipal e dos principais agentes construtores do urbano. O Rio se consolidava como uma cidade-negócio, uma cidade-entretenimento, uma cidade-lucro. O Maracanã de outrora dava lugar a uma “Maracanã Arena de Negócios”, cujos frequentadores deveriam emular este espírito. Conforme investigado por Fernando Ferreira (2017), assistimos ao processo de transformação de um estádio popular, concebido para abrigar as massas, em uma arena sem grandes significações simbólicas e cujo projeto sempre priorizou o atendimento de um modelo de torcedor-consumidor. A sustentabilidade cumpriu o importante papel de esverdear o processo de elitização; afinal, o velho Maracanã era, aos olhos dos neoliberais de plantão, insustentável.

Para além do greenwashing

Não há dúvidas da importância dos avanços ambientais em todas as searas. Quanto mais economia de recursos energéticos e de água potável e menor o impacto das construções, melhor para a sociedade em que vivemos. Mas, para sermos ambientalmente justos, uma melhor relação para com a natureza exige diálogo com a população do entorno. Não basta conquistar certificações de instituições internacionais para a padronização da construção e operação. Para irmos além do greenwashing, é necessário que se democratize o meio ambiente, a relação dos estádios com o entorno e as próprias prioridades no planejamento das cidades a partir de tão importante objeto geográfico de lazer.

Não se trata, portanto, do fato de que os estádios de futebol utilizem o desenvolvimento sustentável de forma corporativa per se. A rigor, o que se percebe é que esse modelo corporativo, produtivo e lucrativo de construção do desenvolvimento sustentável é a tônica das cidades neoliberais. Um estádio de futebol, na cidade contemporânea, é um negócio lucrativo e excludente e que transforma o torcedor em consumidor.  E, neste sentido, o verde, para além dos gramados onde desfilam os jogadores, é uma potente mercadoria, presente e futura.

Notas

[1] Consultar: Leadership in Energy and Environmental Design. Disponível em: https://www.gbcbrasil.org.br/certificacao/certificacao-leed/. Acesso em: 25 de setembro de 2022.

[2] Consultar: Mission and vision: Green building for everyone within a generation. Disponível em: https://www.usgbc.org/about/mission-vision.  Acesso em: 25 de setembro de 2022.

[3] Como não poderíamos deixar de indicar, o Conselho de Manejo Florestal (Forest Stewardship Council – FSC) é uma organização não governamental que atua de forma independente e sem fins lucrativos, criada no final da década de 1980, para a “silvicultura sustentável, promovendo o manejo ambientalmente saudável, socialmente benéfico e economicamente viável das florestas do mundo”. (Consultar: https://fsc.org/, tradução minha). O Centro Internacional do FSC está sediado em Bonn, na Alemanha, e seu diretor geral é Kim Carstensen, que anteriormente gerenciou a Fair Green Solutions, uma consultoria de estratégia ambiental e desenvolvimento sustentável, foi líder da Global Climate Initiative do WWF International e CEO da WWF Dinamarca, onde trabalhou em questões relacionadas ao meio ambiente global e política de desenvolvimento, e a projetos ambientais e de desenvolvimento no Sul Global (Consultar: https://events.globallandscapesforum.org/speaker/kim-carstensen/) .

Referências Bibliográficas:

ACSELRALD, Henri. Pandemia, crise ambiental e impasses da modernização ecológica do capitalismo. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, 13(2), 2021, 205–218. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/view/45314/25206. Acesso em: 03 de agosto de 2022.

CASTRO, Demian Garcia. “O Maraca é nosso!”: da “monumentalidade das massas” ao “padrão-FIFA” – neoliberalização da cidade, elitização do futebol e lutas sociais em torno do Maracanã. Tese (Doutorado em Geografia), Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

FERREIRA, Fernando da Costa. O estádio de futebol como arena para a produção de diferentes territorialidades torcedoras: inclusões, exclusões, tensões e contradições presentes no novo Maracanã. Tese (Doutorado em Geografia), Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

GOMES, Victor Arouca. Maracanã sustentável: um estudo sobre a questão ambiental nos megaeventos esportivos.  Espaço e Economia: Revista Brasileira de Geografia Econômica, n.º 07, 2016. Disponível em: http://journals.openedition.org/espacoeconomia/1923. Acesso em: 05 de setembro de 2022.

KAMENACH, Junior. Gigantes pela natureza”: estádios de futebol apostam na sustentabilidade. Sagres On-line, Goiânia, GO, 15 de maio de 2022. Disponível em: https://sagresonline.com.br/gigantes-pela-natureza-estadios-de-futebol-apostam-na-sustentabilidade/. Acesso em 24 de setembro de 2022.

Páginas Eletrônicas Consultadas:

Forest Stewardship Council. Disponível em: https://fsc.org/.  Acesso em: 25 de setembro de 2022.

Kim Carstensen. Global Landscapes Forum. Disponível em: https://events.globallandscapesforum.org/speaker/kim-carstensen/. Acesso em: 22 de setembro de 2022.

Leadership in Energy and Environmental Design. Disponível em: https://www.gbcbrasil.org.br/certificacao/certificacao-leed/. Acesso em: 25 de setembro de 2022.

Mission and vision: Green building for everyone within a generation. Disponível em: https://www.usgbc.org/about/mission-vision.  Acesso em: 25 de setembro de 2022.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Dias de Oliveira

Graduado, mestre e doutor em Geografia e pós-doutor em Políticas Públicas e Formação Humana. Professor Associado II do Departamento de Geografia da UFRRJ, campus-sede, e docente dos quadros permanentes do Programa de Pós-Graduação em Geografia e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Humanidades Digitais. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, Nível 2, e Jovem Cientista do Nosso Estado, FAPERJ.

Como citar

OLIVEIRA, Leandro Dias de. Futebol, cidade e sustentabilidade (Parte II). Ludopédio, São Paulo, v. 160, n. 4, 2022.
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