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Futebol, contradições e reabertura dos estádios em Belo Horizonte: o esporte (e a sociedade) talvez saiam da pandemia menores

No mês de agosto de 2021, o tema da reabertura dos estádios de futebol para o público tomou conta das mídias e das discussões em Belo Horizonte – MG e, por tabela, no Brasil. Em grande parte porque a Prefeitura da cidade liberou dois jogos de futebol (Atlético-MG x River Plate, pela Copa Libertadores da América, e Cruzeiro x Confiança, pela Série B do Campeonato Brasileiro), com no máximo 30% da capacidade do Mineirão, como testes para o retorno do público nos eventos esportivos na cidade.

Antes de descrever e analisar os resultados do experimento, convém fazer uma retrospectiva de como a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) conduziu a questão da pandemia e das restrições sociais e de funcionamento de instituições, empresas e espaços na cidade desde março de 2020. Comparando-se com outras capitais e grandes cidades do país, a capital mineira teve uma abordagem bastante cautelosa em relação ao enfrentamento do novo coronavírus. Durante muitos meses, apenas serviços essenciais funcionaram. As escolas ficaram fechadas por mais de um ano e ainda não estão integralmente reabertas. Nos períodos mais agudos da pandemia, incluso praças e parques públicos foram fechados. Houve um rigor grande para se iniciar os movimentos de reabertura na cidade e mais de uma vez a PBH retrocedeu e aumentou restrições quando os índices da pandemia apresentaram pioras.

Com esse cenário, os eventos culturais e esportivos com presença de público ficaram em segundo plano, embora tenham se adaptado e acontecido em diferentes formatos para se adequar às restrições vigentes. No caso do futebol profissional, após um momento inicial de suspensão de partidas, campeonatos e mesmo treinamentos em 2020, a temporada foi retomada – em Belo Horizonte, no Brasil e na América do Sul – com jogos sem público e grande número de protocolos sanitários para reduzir os riscos de contágios da pandemia.

Em cidades como Brasília e Rio de Janeiro, ocorreram partidas com um número menor de torcedores com o discurso de teste para viabilidade de retorno do público, mas parece-nos difícil atestar a eficácia ou não destes eventos para influenciar decisivamente a retomada da torcida aos estádios. Até porque, em diferentes ocasiões, tais eventos tinham maior caráter de demonstração de capital político ou de interesses financeiros que propriamente de testes. Durante todos esses meses, Belo Horizonte seguiu sem permitir a presença de público nas arenas esportivas, até o referido mês de agosto de 2021, quando os indicadores da pandemia se encontravam relativamente controlados, dentro dos critérios definidos pelo comitê de combate à Covid, e vários movimentos de abertura estavam acontecendo.[1]

O resultado da experiência belo-horizontina demonstrou grande fragilidade em termos de condição social para o retorno e de potencial de agravamento da pandemia, além de grande visibilidade negativa nas mídias. Sobretudo no jogo do Atlético Mineiro, que contou com mais torcedores e tinha uma carga emocional mais elevada (por ser decisivo nas fases eliminatórias da Libertadores), foi possível ver inúmeros exemplos de protocolos sanitários sendo desrespeitados pelo público presente no estádio e no seu entorno.

Aliás, é importante ressaltar que, em Belo Horizonte, como em tantos outros lugares, um jogo de futebol não se restringe apenas ao campo ou ao estádio; ele envolve toda a cidade, altera relações, interações, socializações; mobiliza atores os mais diversos, desde os torcedores, aos agentes de segurança, passando pelos vendedores ambulantes, os donos de bares e outros tantos sujeitos.

Não deveria surpreender as autoridades belo-horizontinas que os bares e restaurantes da vizinhança do Mineirão tornaram-se pontos de aglomerações; que as filas de entrada na arena viraram focos de concentração de pessoas muito próximas umas das outras; que as arquibancadas, com menos de 30% de sua ocupação máxima, viram os torcedores se juntando nos pontos de melhor visão do campo, enquanto grandes vazios de cadeiras os rodeavam; que as máscaras, artigo obrigatório para o evento, viraram mero acessório em queixos e orelhas de boa parte do público; que os gols do time mandante viraram momentos de abraços, amplamente evitados até momentos antes, mas que se espalharam pelas arquibancadas na catarse coletiva. Tudo isso fartamente registrado em redes sociais e nas mídias[2]. Seguindo o que apontam Elias e Dunning (1992)[3], podemos dizer que há um descompasso criado na relação tensão-excitação em função do contexto da pandemia. Seria, então, possível permitir esses momentos de torcer?

Torcida do Atlético Mineiro no Mineirão no jogo contra o River Plate.

O fato é que essa partida causou enorme controvérsia, tanto que o Prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, com história ligada ao Atlético Mineiro, sentiu-se na obrigação de conceder entrevista no dia seguinte[4], expressando sua revolta com os acontecimentos e ameaçando suspender novamente o público nos estádios de Belo Horizonte. O confronto entre Cruzeiro e Confiança, marcado para três dias depois do embate do Atlético contra o River, quase teve portões fechados novamente, mas, após reuniões e articulações, foi liberada a entrada de torcedores, dessa vez com regras ainda mais rígidas[5].

O resultado não foi tão diferente. O público presente foi significativamente menor (aproximadamente 25% do total de torcedores que havia no jogo do Atlético), mas ainda foram noticiadas várias quebras dos protocolos sanitários e situações potencialmente arriscadas para o agravamento da pandemia, tanto no entorno, quanto dentro do Mineirão. A própria logística de entrada no estádio catalisou aglomerações de torcedores[6]. Para completar, a cidade ainda contou com a abertura de bares em outros pontos de seu território, transmitindo a partida e potencializando agrupamentos de torcedores[7].

O par de jogos da semana levou a PBH a cancelar o retorno de público a eventos esportivos por tempo indeterminado[8], inflamando as discussões em programas esportivos televisivos, em redes sociais e nas conversas de famílias ou amigos. O mais interessante é a fertilidade de contradições[9] que envolvem toda essa relação dos eventos esportivos com a pandemia, a começar pelos argumentos lançados por torcedores e principalmente por clubes e dirigentes para defender o retorno do público aos estádios. Tais argumentos podem ser didaticamente organizados em quatro pontos, a saber:

  1. Em outros países, já há público nos estádios há meses, mesmo com a pandemia ainda presente.
  2. Os clubes, federações e todos que trabalham no meio futebolístico precisam de público nos estádios para sobreviverem financeiramente.
  3. Os jogos de futebol são opções de lazer importantes em Belo Horizonte e, em meio a tantas restrições de espaços culturais, podem ser um relevante mecanismo de alívio de tensões.
  4. Os times precisam do apoio dos seus torcedores quando jogam em casa para terem melhor desempenho esportivo.

Parece-nos que nenhum destes pontos se sustenta quando submetido a uma análise mais criteriosa. Em relação ao item 1, de fato, há exemplos na Europa ou nos Estados Unidos de campeonatos que já contam com um percentual muito elevado de torcedores nos estádios ou ginásios. Porém, é preciso perceber que cada país ou mesmo cada região de um país está em momentos distintos da pandemia em relação a percentual de vacinados na população, índice de transmissão do vírus, capacidade de atendimento dos sistemas de saúde, cepa do coronavírus mais dominante, entre outros parâmetros. O quadro formado por tantas variáveis permite um gestor tomar decisões em relação ao risco de retomar o público nos estádios em sua região. Portanto, o que acontece na Inglaterra pouco tem ligação com o que pode ocorrer em Belo Horizonte, embora possamos aprender com os acertos e erros de outros países, estados e cidades na condução desses processos de reabertura[10].

Sobre o item 2, de fato o mercado esportivo envolve cifras impressionantes e engloba toda uma cadeia de sujeitos e mercados que depende essencialmente das partidas futebolísticas para girar. Como aponta Queiroz (2020)[11]:

Nesse contexto de mercantilização do lazer e na consolidação de uma indústria do entretenimento, o futebol é apropriado sobre uma perspectiva de produto, um elemento do processo estruturado de produção com intuito de distribuição mais eficiente e eficaz possível. A diferença dos dois termos se dá pela preocupação primeira no processo e, segundo, no resultado. Olhando sobre essa perspectiva, o futebol se estrutura como indústria na qual processos e pessoas estão envolvidos no intuito de gerar um produto: clubes, federação, mídia, concessionária que administra os estádios. (QUEIROZ, 2020, p. 87-88)

Porém, o público nos estádios, embora enriqueça sobremaneira o espetáculo e, de certa forma, dê sentido a ele, já deixou de ser uma fonte dominante de renda para os clubes no Brasil há um bom tempo. Além disso, o retorno com público reduzido e repleto de caros protocolos de segurança sanitária acaba gerando tantas despesas para os clubes que podem resultar em prejuízos, não em lucros, como foi o caso do fatídico Cruzeiro x Confiança[12].

O argumento 3 não se sustenta após um olhar mais profundo. Que o futebol é uma relevante opção de lazer, isso não há dúvida. Porém, nas últimas duas décadas, percebemos uma elitização cada vez maior dos estádios de futebol, com ingressos e mecanismos de sócio torcedor que têm permitido acesso cada vez mais seletivo do público aos estádios. Com uma eventual redução de público por causa de protocolos sanitários, essa tendência de exclusão aumenta ainda mais. Portanto, não procede a defesa de que a abertura do Mineirão aumentaria as opções de lazer da população; ao menos não para boa parte dos belo-horizontinos. Além disso, convenhamos: há outros eventos e outras situações com menor potencial de aglomerações e transmissões virais que podem ser priorizadas pelo poder público. Os critérios de segurança privilegiam a presença de pessoas de maior poder aquisitivo e que, por isso, não são as que mais sofrem com a diminuição das opções de lazer.

Um outro caminho para o acesso de uma parcela maior dos torcedores talvez pudesse ser o investimento em transmissões por meios digitais nesse momento de pandemia, acompanhando a crescente demanda pelos serviços de streaming, por exemplo, e buscando estratégias para que essa perspectiva do lazer em casa pudesse contribuir para a manutenção do distanciamento social da população. Atentando que, mesmo assim, seria uma alternativa seletiva, uma vez que serviços de internet banda larga, que possibilitam esse tipo de transmissão, não são acessíveis a uma grande parcela da população.

O argumento 4 também vem embalado em um papel de presente perigoso. Efetivamente, a torcida no estádio pode contribuir com o estado anímico do time mandante e influenciar o desempenho de uma equipe. Os clubes de Belo Horizonte, onde a pandemia parece estar razoavelmente sob controle, poderiam se beneficiar da presença do público no Mineirão ou no Independência. Porém, o que aconteceria com times que jogam em cidades que estão enfrentando fases agudas da pandemia? Seguiriam jogando sem torcida em seus estádios, enquanto enfrentariam os clubes mineiros com seus torcedores? Seria justo ter condições tão desiguais para um campeonato esportivo?

No frigir dos ovos, esse episódio de agosto de 2021 em Belo Horizonte parece ser mais uma das tantas contradições envolvendo o futebol e a pandemia em nosso país. O esporte da bola nos pés, por sua popularidade e capilaridade, acaba sendo palco para atores políticos e econômicos mobilizarem, com grande potência, determinados discursos e defenderem seus interesses. Esse processo, porém, não ocorre sem tensões, avanços e retrocessos entre os sujeitos, em especial os promotores dos eventos esportivos e os torcedores/consumidores e, nesse caldeirão, as contradições se potencializam, atreladas a perspectivas cada vez mais individualistas de mundo e salpicadas com todo o arcabouço emocional e social da pandemia de coronavírus.

Atlético Mineiro
Foto: Pedro Souza / Atlético / Fotos Públicas

É sob esse prisma que, no futebol, temos presenciado os jogadores fazerem um minuto de silêncio no início de cada partida profissional, já há meses, em homenagem e luto às centenas de milhares de vítimas da Covid-19. Temos presenciado pessoas ligadas ao futebol tentando mobilizar torcedores para ações sociais e de auxílio àqueles que têm sido mais negativamente impactados pela pandemia. Temos presenciado uma lufada de alegria e esperança aos que por tanto tempo se isolaram em suas casas, acompanhando seu time de coração por telas. Mas temos também presenciado dirigentes e autoridades do esporte que não têm hesitado, em muitas oportunidades, ao escolherem lucros ao invés de prudência e precaução. Temos presenciado atletas jovens e saudáveis serem vacinados antes de uma parcela enorme e mais necessitada da população. Temos presenciado clubes e seleções estimulando e bancando viagens e mais viagens entre países latino-americanos em momentos agudos da pandemia, facilitando a disseminação de vírus e variantes para que competições continentais não parem. Presenciamos, inclusive, uma sombria Copa América em território nacional quando nenhum outro país vizinho quis sediar o torneio. Temos presenciado cidadãos prudentes – e cidadãos já imprudentes em suas rotinas pandêmicas – se tornarem torcedores tresloucados em estádios, como pudemos assistir em Belo Horizonte em meados de agosto de 2021.

Ao longo da pandemia, em diversos momentos, as questões dos possíveis avanços sociais, de relações, de empatia, do lidar com o mundo, foram colocadas como um “lado bom” da pandemia: melhorarmos enquanto seres humanos. Por todo seu potencial mobilizador e agregador, o futebol poderia também tomar esse rumo. Entretanto, parece-nos que tanto num quanto em outro, os caminhos não foram tão graciosos. Segue havendo então, como dito por Daolio (2006), uma relação de mão dupla entre futebol e sociedade, em que o futebol é simultaneamente expressão e modelo para a sociedade, e traz consigo sua dinâmica, belezas e contradições.

Notas

[1] Na mesma semana dos jogos com público no Mineirão, a PBH flexibilizou a reabertura de escolas e bares na cidade, como indica a reportagem: https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2021/08/20/interna_gerais,1297917/bh-novo-decreto-amplia-funcionamento-de-escolas-bares-e-academias.shtml. Acesso em 26 ago 2021.

[2] Poderíamos listar várias reportagens, mas ficamos com a seguinte, que resume bem o clima que tomou conta das mídias em Belo Horizonte: https://www.mg.superesportes.com.br/app/noticias/futebol/atletico-mg/2021/08/18/noticia_atletico_mg,3932541/volta-da-torcida-do-atletico-na-pandemia-provoca-medo-e-tensao-no-mineirao.shtml. Acesso em 26 ago 2021.

[3] ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992.

[4] Conferir: https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2021/08/19/interna_gerais,1297372/kalil-sobre-aglomeracoes-no-mineirao-quando-vi-as-cenas-me-desesperei.shtml. Acesso em 26 ago 2021.

[5] Na realidade, a PBH quis transmitir uma imagem de que seria mais rigorosa, mas basicamente os protocolos seguiram sendo os mesmos para o jogo do Cruzeiro, apenas havendo mais assertividade do poder público na cobrança deles, como aponta a reportagem: https://www.mg.superesportes.com.br/app/noticias/futebol/cruzeiro/2021/08/20/noticia_cruzeiro,3932835/cruzeiro-x-confianca-o-que-muda-no-protocolo-para-torcedores-no-mineirao.shtml. Acesso em 26 ago 2021.

[6] Um bom panorama dos problemas pode ser encontrado em https://ge.globo.com/futebol/times/cruzeiro/noticia/pontos-de-aglomeracao-falhas-na-entrada-e-festa-do-alivio-torcida-do-cruzeiro-volta-ao-mineirao.ghtml. Acesso em 26 ago 2021.

[7] https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2021/08/20/interna_gerais,1298032/bares-da-alberto-cintra-transmitem-jogo-de-futebol-e-ficam-lotados.shtml. Acesso em 26 ago 2021.

[8] https://ge.globo.com/mg/futebol/noticia/bh-cancela-reuniao-com-representantes-do-mineirao-e-dos-clubes-de-futebol-e-proibe-torcida-nos-estadios.ghtml. Acesso em 26 ago 2021.

[9] A fertilidade de contradições é tão grande que nos lembrou do texto “As contradições do futebol brasileiro”, clássico escrito por Jocimar Daolio na década de 1990 e depois publicado em uma coletânea do autor. Nele, Daolio aponta as incoerências e incongruências dos discursos e práticas relacionados ao futebol no Brasil. Mesmo mais de 20 anos depois, ele segue atual. (DAOLIO, Jocimar. Cultura: educação física e futebol. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 3ª ed., 2006.)

[10] Logo no início da pandemia, em 2020, houve uma partida da UEFA Champions League na Itália que, segundo os especialistas, pode ter contribuído de maneira decisiva para a disseminação do coronavírus -até então ainda pouco conhecido – pelo norte do país. As cenas registradas nas semanas seguintes nos hospitais italianos chocaram e amedrontaram o mundo: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2020/03/25/coronavirus-prefeito-de-bergamo-ve-jogo-da-champions-como-bomba-biologica.htm. Acesso em 26 ago 2021.

[11] QUEIROZ, Felipe Pereira de. O preço da emoção: futebol, economia e torcer. Brasília, DF: Trampolim Editora e Eventos Culturais Eirelli: Ministério da Cidadania 2020.

[12] Nessa partida, o Cruzeiro teve prejuízo superior a R$100.000,00 como clube mandante: https://www.mg.superesportes.com.br/app/noticias/futebol/cruzeiro/2021/08/25/noticia_cruzeiro,3933775/jogo-do-cruzeiro-com-torcida-no-mineirao-contabilizou-prejuizo-de-r-134-mil.shtml. Acesso em 26 ago 2021.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Luiz Gustavo Nicácio

Professor de Educação Física, formado pela UFMG, mestre em Lazer pela mesma universidade. Integrante do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT).

Como citar

NICáCIO, Luiz Gustavo; MELO, Marcos de Abreu. Futebol, contradições e reabertura dos estádios em Belo Horizonte: o esporte (e a sociedade) talvez saiam da pandemia menores. Ludopédio, São Paulo, v. 147, n. 44, 2021.
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