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‘Futebol de Cegos’ e ‘Futebol LGBT’: aproximações e distanciamentos

Wagner Xavier de Camargo 27 de março de 2022

A partir de 2022, o futebol de cinco (ou five-a-side), jogado por pessoas com deficiência visual, passa a ser chamado futebol de cegos. Aí você se perguntaria: “nossa, mas não é preconceituoso chamar os jogadores de cegos?”

Pois então: pela demanda do movimento sócio-político das pessoas com deficiência (e, dentre elas, as com deficiência visual), isso é plenamente satisfatório. ‘Cegos’ é um termo que engloba e representa tal coletivo. Futebol de cegos porque são eles que jogam de um jeito peculiar tal futebol.

De modo semelhante, mas de outra parte, o futebol de sete (ou futebol society) praticado por gays, lésbicas, bissexuais, trans e afins (os conhecidos sujeitos LGBT), em quadras alugadas em várias partes do país, tem optado por ser designado futebol LGBT.

Aí uma diferença com o anterior: o futebol LGBT deveria ser “futebol de LGBTs”, pois é o coletivo resumido na sigla LGBTQIAPN+ que o joga e não uma qualificação da prática em si.

Quanto mais há gerações novas neste engajamento esportivo coletivo, mais a sigla se expande – como nas lutas sociais, inclusive. Ela aumenta conforme o grupo praticante e, atualmente, o termo futebol gay, que estava em suas origens, quase não mais aparece.

O aumento de letras é frutífero porque demonstra conquista de espaço também no campo esportivo e, consequentemente, de representatividade social de tais sujeitos.

No caso dos cegos futebolistas, a decisão do chamamento foi capitaneada pela Confederação Brasileira de Deportos de Deficientes Visuais (CBDV), que administra e executa vários esportes para tal população.

Futebol de cegos
Brasil e China pelo futebol de 5 nos Jogos Paralímpicos Rio 2016. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil.

Ela alega que, com a mudança, haverá uma popularização maior de dita modalidade, o que é possivelmente um bom argumento.

O futebol (de) LGBTs, por sua vez, é arregimentado e desenvolvido pela Ligay Nacional de Futebol Society, ou simplesmente LiGay, entidade criada em 2017.

Deste tempo até hoje muita coisa mudou, inclusive o desenvolvimento de maior respeito e engajamento às expressões de gênero no futebol (e também no esporte) e este é um papel importante da entidade junto à população como um todo.

Chamar pessoas com problemas visuais de ‘cego’, ‘cegão’, ‘ceguinho’, sempre foi uma prática taxativa para pessoas de fora, porém tais adjetivos poderiam ser afetuosos chamamentos disparados pelos mais próximos, ou por pessoas sem deficiência circulantes nesse meio.

Ao contrário, nomeações como ‘bicha’, ‘viado’, ‘sapatão’, ‘mulher macho’, e uma infinidade de outras, sempre foram mais pejorativas e discriminatórias, que inclusive rebaixavam os status de atores de esportes coletivos, como atletas e juízes de futebol e vôlei. Porém, na disputa da língua, acabaram virando gritos de orgulho no segmento LGBTQIAPN+.

No mundo futebolístico sempre existiu quem imprimisse xingamentos maliciosos usando termos como “cego” (como um juiz que não viu o lance) ou “viado” (para um goleiro que não fez o que deveria ter feito com a bola), algo que não estava vinculado, necessariamente, com uma condição ou expressão de gênero.

Assim, “viado”, “bicha”, “mona”, “bolacha”, “rapariga”, “sapatão”, e outros foram reapropriados por pessoas LGBTQIAPN+ como designações de empoderamento. Ouve-se em por aí: “arrasou no gol, bicha!”, “olha que greluda, joga muito”, “a sapataria chegou pra golear”.

Talvez a denominação futebol de cegos possa servir para inspirar o futebol de LGBTs. Afinal, quem sabe exatamente o que significa a sigla LGBTQIAPN+ se não quem está nela inserido?

E pode-se indagar: estariam os dois futebóis no mesmo nível? Em termos históricos, impossível compará-los. Enquanto o futebol society praticado por LGBTs surge recentemente de modo organizado, o de cegos já acontece desde os anos 1920 no país – claro que vai se institucionalizar mais tarde (nos anos 1980), porém apresenta aí uma trajetória maior que a do outro.

O five-a-side já teve outra denominação também: futebol de salão. Lá pelos fins dos anos 1990 acabou mudando. Então se estes futebóis vão mudando de nome, será que seus significados podem também transformar opiniões acerca deles? Ou ainda, em que medida tais futebóis, enquanto se desenvolvem, vão transformando opiniões e conceitos acerca da deficiência e da sexualidade na sociedade?

Por curiosidade, poderia ainda especular: será que futebol de trans, futebol de bissexuais, futebol de travestis, futebol de lésbicas, futebol de gays funcionariam do mesmo modo que o futebol de cegos? Isto é: divulgariam suas práticas marginais para uma população mais ampla ou criariam mais preconceitos sobre as mesmas e sobre os grupos que as executam?

O futebol de cegos teve suas regras mudadas recentemente pela Federação Internacional de Esportes para Cegos (IBSA): o tempo de jogo ficou menor (mudou de 20 para 15 minutos cronometrados em cada etapa); cada equipe pode cometer até quatro faltas e não cinco como antes (a partir da quinta falta é marcado tiro livre de 8 m); os goleiros podem ser trocados em situações de pênaltis ou de tiros livres.

O futebol society não adaptou nada da regra para as pessoas LGBTQIAPN+ e tem sido adotado em todo o país. As únicas características distinguíveis em eventos ou em jogos-treinos são as músicas eletrônicas, alguma Drag Queen que agita o pedaço, ou ainda, os uniformes efusivos, com cores chamativas e alegres.

Em ambas as práticas futebolísticas talvez tais fenômenos pouco se cruzaram: no futebol de cegos não aparecem/apareceram esportistas LGBTQIAPN+; no futebol de LGBTs, ainda cegos não de fizeram presentes como jogadores/as. Apenas algumas poucas pessoas em cadeiras de rodas ou usando próteses mecânicas já rondaram as grades da torcida.

Eis aí o dilema da inclusão social: nunca se está, de fato, totalmente incluído ou incluindo outros. Que cegos futebolistas saiam do armário (porque há muitos neles) e que LGBTs incluam pessoas consideradas não normativas em seus bate-bolas.

Daí, certamente, haverá considerações de outra proporção a serem feitas e sobre as quais já tenho algumas indagações articuladas.

 

Agradeço às amigas e fantásticas pesquisadoras, Marina Carvalho e a Cláudia Kessler, pela troca de ideias que fomentou a escrita desta coluna!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. ‘Futebol de Cegos’ e ‘Futebol LGBT’: aproximações e distanciamentos. Ludopédio, São Paulo, v. 153, n. 31, 2022.
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