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Futebol de Controle (III): dossiê contra o VAR

Fabio Perina 30 de junho de 2022

Nessa nova série busco aprofundar algumas reflexões preliminares antes esboçadas no texto “Futebol de Controle” (inspirado no conceito “Sociedade de Controle” de Deleuze) que sintetizava a década de 2010 pela arenização dos estádios como uma ampla reforma dentro e fora de campo para tentar tornar o futebol um suposto “produto perfeito” isento de polêmicas e imprevistos. Como principais fontes, usarei uma mistura de artigos acadêmicos e não-acadêmicos junto de vários casos concretos para buscar evitar teorizações muito densas. Além disso, se o conceito geral foi formulado durante a ascensão do neoliberalismo, buscarei uma modesta contribuição de como situar o futebol atualmente diante de seu declínio.

“o videoteipe retira das pessoas toda a sua grandeza humana e esvazia os fatos de todo o seu patético” (RODRIGUES, 2012, p.35).

“O VAR representa a apoteose daquele tipo que o Nelson chamava de idiota da objetividade, que entende de todos os fatos mas é incapaz de captar seu espírito, incapaz de transcendência. Se para ele o juiz honesto causava úlceras imortais, o VAR causaria o quê? (…) O VAR é anti-humano, portanto é antirrodrigueano. Acrescente-se aí uma camada de absurdo, que é o VAR não encerrar discussões. Mesmo com o VAR as arbitragens seguem errando (…) o mundo todo foi dominado pela ilógica dos idiotas da objetividade”

VAR no futebol
A sala do VAR. Foto: CBF.

Antecedentes da conjuntura e Premissas

Sobre a arbitragem é preciso levantar o questionamento introdutório que se tem uma crescente percepção de sua piora. Tanto por ela estar refém das imagens panópticas, que tentam transformar o futebol em um estúdio de televisão com tanta vigilância e controle. Quanto por outro crítica (mais improvável de ser levantada na opinião pública) pela qual o aumento da exigência em condição física de cada árbitro não parece vir sendo acompanhado por um aumento da exigência em condição lógica e psicológica para exercer o ofício (Obs: O que aliás sustenta uma forte hipótese subjetiva que o “atleta-força”, tão mencionado nos anos 70, vem encontrando agora uma correspondência com um tal “arbitro-força” através do autoritarismo de “se impor” em campo tanto no uso dos cartões como na intimidação corporal também!).

Cabe iniciar com a hipótese (com sabor de conspiração para alguns e de análise profunda para outros) sobre o uso político das modernizações da FIFA como uma “cortina de fumaça” a seus problemas internos após as investigações de 2015 conhecidas como “Fifagate”. Um recurso de urgência para tentar transmitir transparência diante de imediatas demissões de funcionários da entidade e de várias federações nacionais por todo o mundo.

Além desses elementos conjunturais da dinâmica externa do esporte, também uso como argumentação a premissa bem prática na natureza do Jogo em sua dinâmica interna que no futebol a pontuação pelos gols (e logo o reinício) é mais rara que em outros esportes de quadra como basquete e voleibol que sempre são exaltados como ‘produtos’ exemplares de organização. A raridade dos gols e o risco que se passe muito tempo sem que ocorra algo de relevante faz vibrar ainda mais com sua ocorrência. A descontinuidade está que a progressão de posse de bola até o gol adversário é uma epopeia angustiante de cortes e alternâncias. Muito por conta do uso dos pés deixar menos garantia de uma posse de bola absoluta e sequer de que uma excelência na destreza com a bola pudesse se manifestar sempre, como seria esperado com as mãos. Por isso também é inevitável ao futebol ser tão frequente o chamado lado ‘feio’ das técnicas corporais como empurrões, agarrões, carrinhos ou ombro-a-ombro. Além da destreza em levar vantagens nos cabeceios em jogo aéreo. Assim como o lado ‘feio’ das táticas ao favorecer que retrancas defensivas saiam vencedoras ao se especializarem em contra-ataques para tentar compensar deficiências técnicas. De forma simbólica, o futebol é o esporte moderno mais vinculado às suas raízes ancestrais pela origem natural do campo, até hoje, e da bola e das chuteiras de couro, até recente. Para Wisnik (2008), quem melhor sintetiza essas várias reflexões, essa é uma hipótese de porquê o futebol costuma ter (embora cada vez menos) uma certa aversão cultural à modernização automática através da tecnologia.

Recordando algumas reflexões esboçadas na parte I e na parte II, as distinções podem ser feitas não apenas com os principais esportes de quadra. Vide o aumento de espectadores do futebol “americano” da bola oval indiretamente incentiva tal debate já há anos diante de sua maior divulgação para o consumidor brasileiro. Pois defendem a tecnologia através da intromissão do VAR como se fosse a coisa mais simples e óbvia a sua transferência para o futebol “de todo (o) mundo”. (a ironia dessas ultimas duas aspas não é mera coincidência). Como se fosse o maior dos absurdos o futebol não ter copiado ainda os elementos de ‘produto’ perfeito dos outros esportes.

Ora, apesar desse discurso dominante, na verdade outros esportes supostamente mais modernos e organizados venderiam sua alma para terem a mesma adesão de massas que o futebol tem! Afinal, outra distinção fundamental do futebol quanto a outros esportes é que felizmente domina o clubismo e a rivalidade como vínculos duradouros ao invés da monotonia descartável de “fãs do esporte”. Ou seja, aqueles quem poderiam certamente amanhã trocar de modalidade ao encontrarem outra com um novo “atrativo”, ou simplesmente trocar de entretenimento para outro ramo não-esportivo. Por isso, seria incompleto indicar os motivos do sucesso mundial do futebol como sendo de ordem objetiva (como regras fáceis e fácil aplicação espacial; como no fragmento abaixo), mas não se pode desconsiderar outros motivos de ordem subjetiva (como o pertencimento e a dramatização). Sobre essas considerações anteriores:

“El fútbol es lo que es porque nos iguala. El juego es exactamente elmismo en la final del mundo que en el potrero más alejado de la civilización. Sólo se necesita una pelota para jugar a lo mismo que las estrellas de los cuentos de hadas.” 

“Desde el punto de vista del márketing (que igual es lo que menos importa), tirar abajo el producto más vendido para que se parezca a los que no se venden tanto es la anti idea. Una noción insólita en la que una cabeza iluminada pretende decidir desde un púlpito de superioridad autodeterminada lo que es mejor para los espectadores, aunque no sea popular. Ridículo.”

Argumentos subjetivos

Como apresentado acima, há uma aparente repulsa “natural” (ou pelo menos esperada) do futebol à tecnologia como se ela por si só garantisse isenção e perfeição nos processos. Embora uma curta brecha que se abra à tecnologia desencadeia sua retroalimentação automática. E com isso caminha a desumanizar uma criação tão humana como o Jogo.

“Logo, logo vamos ter controles remotos cedidos para os espectadores controlarem o próprio juiz! Qual será a próxima novidade??? (…) Eu acho que vamos descer uma ladeira muito perigosa (…) alguma máquina glorificada (…) sobre o que falaríamos se robôs mandassem no jogo?!” (MORAIS e BARRETO, 2008)

Morais e Barreto (2008) no fragmento acima antecipam, embora cerca de uma década anterior ao VAR, com precisão o debate da tecnologia em geral. Mencionam um depoimento de um treinador ao narrar um caso que como profissional se sentiu prejudicado no calor do momento por um erro de arbitragem, porém não se sentiria compensado por uma correção a posteriori pelo motivo de “tirar a graça” do futebol. Simplesmente ele entendeu o espírito do Jogo que não se pode voltar atrás em seus acontecimentos. E outra menção, de um ex-árbitro, ao relatar que de tanto interromper o fluxo, supondo que isso gerasse “justiça” em um curto prazo para o público, esse mesmo público enquanto consumidor pode em um médio e longo prazo desistir do futebol de tão desinteressante ele tenha ficado pelo tanto que se controla sua emoção.

Recordando a leifertização tratada na parte I, é possível acrescentar uma crítica semelhante ao excesso de espetáculo midiático no futebol atual (evidente que com respaldo tecnológico) para dificultar que o seu expectador forme suas próprias imagens (e por consequência sentidos) de uma partida de forma autônoma e pessoal. Em proveito que as imagens lhe cheguem de forma mais compartimentada possível. Uma intromissão tão grande que pode levar a não se distinguir mais humanos e máquinas.

Adaptando para a “sociedade de controle” de Deleuze (1992), seria terrificante a constatação que a tecnologia no futebol passou a ter uma alma, como ele já dissera da empresa pós-moderna no lugar da fábrica. Na qual revelaria a Verdade vinda de fora do campo enquanto todos dentro dele tiveram que parar à sua espera. Se essa espera fosse demorada, pior. Mas, ainda que rápida e ‘eficiente’, tal Verdade seria mais desumana que qualquer das “cenas lamentáveis” que pudesse ocorrer.

Outra faceta do debate que direta ou indireta surge junto da “justiça” e do VAR é que o futebol abra brechas à catimba e outras descontinuidades acidentais (no sentido de depender da ação dos jogadores e não da estrutura do Jogo). Pois o futebol tem uma relação com o tempo muito singular por não depender de cronometrista (distinto de outros esportes citados), mas sim da particularidade de cada árbitro em suas próprias ‘fintas’ solitárias dos imprevistos e das manhas dos jogadores de cada lado tentando usar o tempo a seu favor! Além de que nenhum jogo arbitrado é tão sujeito à interpretação da intencionalidade em lances pontuais quanto o futebol. Ainda assim, nele não se vê como atrativa uma interrupção tão deliberada nem mesmo institucionalizada sob a alegação de assim promover ‘justiça’. Com grande profundidade, Toledo (2020) entende que entre jogo e anti-jogo o primeiro precisa do segundo como uma força vital que o tencione e não o permita se engessar. Nas minhas palavras, dentro de um tempo formalmente contínuo, mas no qual informalmente cabem acontecimentos os mais descontínuos e imprevisíveis. Ou ainda, se diante do “jogo de futebol” está o tempo todo à espreita o “jogo da catimba” (ou “avivada” como diriam nossos vizinhos sul-americanos), é aí que esse segundo pode se misturar com o primeiro e nos fazer conhecer eternidades a cada acréscimos. Como se fosse uma prévia de prorrogação ainda dentro do tempo regulamentar dos 90 minutos (que aliás há alguns anos sempre passam de cinco minutos em uma partida minimamente importante que se preze)!

Argumentos objetivos

Em suma, o VAR intensifica uma postura “legalista” da arbitragem bem anterior a ele que é de buscar zelar apenas pelas regras em sua leitura mais fundamentalista, mesmo que a fluidez do Jogo pague todo o preço por isso! Embora a publicidade oficial do VAR seja de objetividade, ela ainda é falha no atual protocolo por permitir excessiva seletividade ao árbitro de vídeo em relação ao árbitro de campo quanto a O QUE, QUANDO e SE submeter a revisão ou não uma situação. Ou seja, essa arbitrariedade parece funcional a sua própria publicidade por legitimar jogar “luz” em uma alta porcentagem de acerto daquilo que é revisado, porém ao mesmo tempo coloca na “sombra” muito mais acontecimentos da partida que não são revisados! E portanto aumenta a impessoalidade do árbitro de campo como se tornando mera ferramenta do processo.

Como seu primeiro grande “laboratório” mundial, sua estreia na Copa do Mundo da Rússia de 2018 revelou as péssimas consequências do uso indiscriminado do VAR. E inaugurou tendências que se consolidaram pelos anos seguintes como o excesso de detalhes e acabar com a distinção de mão na bola e bola na mão (tema que veremos mais adiante). Pois certamente interpretar não é coisa para tantos idiotas da objetividade—sobretudo os que saem de gabinetes com ar-condicionado que tomam essas decisões. Nunca se viu marcar tantos pênaltis na maioria das partidas (principalmente na fase de grupos daquele torneio) por choques leves dentro da área ou toques de mão tão acidentais e ínfimos. Segundo novas metáforas bem boleiras e cotidianas: o VAR caça formigas, ou pior, o VAR é como deixar uma metralhadora com um macaco! Afinal, por uma se critica seu preciosismo nos detalhes, e por outra se critica sua aleatoriedade de critérios (Obs: falando em metáforas, listei a seguir algumas interessantes encontradas nas diversas crônicas revisadas para esse dossiê: “do alto da torre”, “redoma de perfeição”, “poder moderador”, “cabine impenetrável aos olhos mortais”, “bolha”, “vídeo-game”, “avatar”, “ciborg”, de “buscar pelo em ovo” a “pensar na morte da bezerra”, etc. O que faz parecer que nesse “futebol de controle” o que era Jogo virou um entretenimento pós-humano)

Já em sua estreia na Copa América de 2019 (e posteriormente em grande parte do futebol brasileiro e sul-americano) a maior crítica ao VAR foi sua intervenção abusiva de anular muitos gols por medidas ínfimas e milimétricas após longos minutos de um gol já gritado. Bem como o mecanismo tão brochante quanto que esse dispositivo tenta nos fazer acostumar que é de comemorar um gol pela segunda vez conforme a conferencia do VAR. Que distopia é essa que com tanto fetiche pela regra e pela ‘justiça’ é capaz de “desgritar” tantos gols?! E mais distopia ainda de buscar alguma excitação em um segundo grito de gol (agora sim finalmente “justo”) após validação virtual ?!

Nesse sentido, foram vários os cronistas com críticas nos últimos anos quanto ao VAR variando entre: 1-) ser “estraga-prazer”; 2-) essa tal ferramenta veio mais para prejudicar a arbitragem humana ao escancarar sua precariedade do que para ajudá-la; 3-) e até mesmo uma crítica mais radical que agora o erro é “legalizado” por não poder mais estar na cômoda dúvida da falha do olhar humano! (afinal, os árbitros eram antes mais vistos como safados do que agora como incompetentes).

“É importante notar que o erro, que faz parte do real, por pior que seja, é de jogo. Não confunda essa afirmação com condescendência ao erro, até porque o VAR se mostra todas as semanas estar longe de ser solução para erro. Na discussão de redução do erro, é o método que está sendo discutido.(…) Um dos maiores problemas acerca do VAR é justamente a falsa noção que o uso de mais tecnologia e mais objetivismo nas análises é algo necessariamente bom o tempo todo, justificando até uma mudança radical de paradigma sobre o esporte porque o velho, nessa lógica, deve dar lugar ao novo.”

Atenção, quando digo que o futebol deve permanecer com a possibilidade que aconteça tudo que for de mais imprevisível, inclusive o erro, afinal ele enquanto Jogo é tão humano como a própria vida, os entusiastas do VAR e idiotas da objetividade dizem que isso seja defender de propósito o erro e a injustiça! Pelo contrário, isso é defender que o futebol siga sendo o único Jogo do “tudo pode acontecer”, conforme as premissas do início do texto conforme Wisnik(2007).

“Y si algo no es el fútbol, es justo. O por lo menos no en el sentido que ciertos paladines le dan al término. El fútbol tiene su propia noción de justicia. Para ganar no hace falta jugar bien, ni ser bueno y ni siquiera actuaren los parámetros de la ley.” 

Balanço do VAR

“o VAR é uma ilusão. O VAR chegou ao jogo com a pompa de ser a justiça derradeira, o fim da polêmica, e acho que qualquer um que esteja atento já entendeu que ele não é nem uma coisa e muito menos a outra. (…) O VAR é capaz de se meter equivocadamente, de não se meter quando deve, de ver o que não foi, de deixar de ver o que foi. Porque o VAR é, na verdade, mais gente com poder palpitando sobre um lance. (…) O VAR chegou e não eliminou as polêmicas nem as injustiças. Todas e todos nós já temos a nossa rinha particular com essa tecnologia. O que o VAR acrescentou até aqui ao jogo – indubitavelmente – é tédio. O resto é questionável.”

Os principais obstáculos ao VAR em síntese: demora, interpretação, a troca de regras simples e universais por um nicho de mercado tecnológico e a troca de uma lógica de continuidade por outra de interrupção. O importante estudo de Giglio e Proni (2020) relata opiniões de importantes comentaristas e nos tende a concluir que alguma complexidade também ficou no balanço dos primeiros anos do VAR para além das opiniões polarizadas: que os mais moderados são a favor dele na teoria, porém na prática não há como negar que vem sendo mal aplicado. Dizem ser necessário que ele reduza polêmicas e se atenha à objetividade (entrou ou não…), ao invés de aumentar polêmicas com muitas interpretações. E sobretudo o prejuízo de se perder o fluxo do jogo, o que a própria regra do futebol respalda. “Quando uma imagem vai para o VAR, perde-se o contexto, congela-se essa imagem (…) aprisiona o jogo, quer ser mais real do que a realidade” (GIGLIO e PRONI, 2020, p. 772). Vide que o lance real tem uma velocidade muito maior do que o lance virtual revisado pelo VAR (e junto ainda com a abstração de se traçar linhas na imagem).

Também se trata no texto da profundidade do conceito de ‘justiça’ aplicado, pois se dá por satisfeito em aplicar uma regra, mesmo sem questionar se ela é justa ou não em sua elaboração. Retomando a menção inicial ao “Fifagate” (contemporâneo da “Lava Jato” no Brasil e da judicialização da política em diversos países), o que reflete muito com a questão “legalista” como tema fora do futebol que nele se intromete. Ou seja, em cada um desses processos coincidem a demonização midiática de políticos e dirigentes e a exaltação do judiciário e/ou da tecnologia como a salvação.

Em suma, Giglio e Proni (2020) usam a metáfora do espelho de Narciso, pois se a função seria tornar os árbitros invisíveis, na prática ficaram mais visíveis (e, portanto, falhos) do que nunca. O que será melhor desenvolvido na próxima e última seção ao afetar os demais sujeitos. Assim como outra metáfora do ‘veneno-remédio’ (WISNIK, 2008), pois a suposta cura está matando o doente ao invés da doença!

Outra derrota retórica verificada na prática (embora pouco comentada) é que nos primeiros anos de aplicação do VAR sequer ele pôde atender a suposta expectativa dos clubes pequenos e médios de que agora em diante não seriam mais prejudicados pela arbitragem por conta da maior força política dos clubes grandes. Afinal contrasta com uma estrutura do futebol brasileiro e mundial de ampla concentração de recursos financeiros fora de campo que se refletem em conquistas dentro de campo também com maior concentração nos últimos anos. (Obs: Vide também um caso, que tende ao esquecimento conforme o desenrolar do tempo, no qual na verdade o Botafogo não caiu no Brasileirão de 2020. Mas sim foi “derrubado” quando após o chute do goleiro Gatito no aparelho do VAR a beira de campo foi seguido de inúmeros “erros” de arbitragem vergonhosos a cada partida. Ora, se em um tema complexo as hipóteses se cruzam, cabe lembrar que embora o Botafogo seja tradicionalmente considerado um clube grande para que tivesse força política suficiente para se proteger, pontualmente sua recente diretoria entrou em atritos políticos com federações e em questão de poucos meses depois a represália reapareça dentro de campo!)

Gatito VAR
Cabine do VAR após chute do goleiro Gatito. Fonte: reprodução

“A FIFA, ademais, não quer transformar o futebol em um jogo mais justo. Não um esporte em que uns vinte ou trinta clubes extremamente poderosos sugam os talentos vindos de todas as partes do mundo, formando verdadeiras seleções que arrebanham bilhões entre televisão, patrocínio, venda de camisas e até mesmo ingressos para partidas. O que ela quer então? Ela quer banir totalmente a subjetividade dos campos, o que destrói a alma do futebol. A FIFA deseja, como boa multinacional, vender um produto que pareça limpo, correto, sobre o qual não pesem dúvidas, polêmicas, paixões. Logo a FIFA, palco de escândalos bilionários que rolaram livremente durante décadas? O efeito disso tudo é abandonar a metafísica do futebol em nome do binarismo primário, fanático, empobrecedor, do certo e errado que nós brasileiros sabemos muito bem aonde conduz”.

Sobre o fragmento acima e a afirmação contundente que o VAR enterrou a subjetividade sobre mão na bola ou bola na mão no qual hoje o único critério é apenas o binário (tal qual uma máquina) se existiu ou não um toque de mão na bola, acrescento que sequer se cogita inserir o elemento humano na decisão: se houve intenção ou não e sobretudo se o defensor levou vantagem ou se o atacante levou desvantagem. O que poderiam ser critérios de justiça mais coerentes com o que antes se entendia como esporte do que como o que hoje se entende por entretenimento.

Passados anos de sua instalação, não banco o discurso de alguns moderados ou entusiastas dele que “o VAR não tirou a emoção do futebol”, pois de fato a discussão pós-partidas não terminou. Mas o real prejuízo foi uma deliberada quebra da continuidade descaracterizando demais o esporte, além do preciosismo dos detalhes e principalmente a mudança e demora de decisões. Arrisco dizer que nos vemos condenados a uma certa complexidade como desfecho do tema: a dúvida se o VAR colocaria o futebol na encruzilhada entre dois caminhos extremos na verdade fez surgir outro híbrido. Um aspecto de ambivalência nesse balanço é que o que para mim parecia ser tão previsível uma certa robotização das interpretações (influenciado pela leitura de Deleuze) não impediu que emergisse o seu extremo oposto, tão péssimo quanto, que é das interpretações absurdas devido a uma total falta de critérios. Em outros termos, um extremo é quando o VAR funciona “bem” e outro quando funciona “mal”. E no fim das contas para mim me custa deixar o posicionamento que o erro esteja na tecnologia em si, e não em possíveis reformas dela. Pois a tecnologia é irreformável. Ao menos a certeza que se tem que ele não gerou consensos. De tantas facetas de discussão chegamos finalmente na parte da tão evitada necessidade de profissionalização da arbitragem. O que chama a atenção que em uma atividade com cada vez mais exigência de profissionalismo em várias funções seja justamente essa com impacto direto na legitimidade de partidas (e logo de torneios) permaneça alheia a isso.

Balanço da conjuntura

Se ao longo da argumentação nesse texto partimos do geral ao específico, agora retornamos ao geral para concluir. Olhando para os outros sujeitos do futebol envolvidos, talvez devemos admitir algo mais inusitado que não só os árbitros se revelaram mortais como os jornalistas e comentaristas em geral também. Vide que tanto demandaram ‘justiça’ que muitos se viram arrependidos de ter incentivado isso ao se perder a emoção como se isso ameaçasse sua audiência. Talvez eles próprios na prática não aceitaram tanta racionalidade quanto imaginavam… Ou talvez ainda alguns mais cínicos notaram que a constante exigência de reformas no VAR lhes garanta audiência permanente… Ironicamente para esse assunto as disputas entre os dirigentes dos clubes são rotineiras (pois motivadas pela conveniência de resultados conforme se é beneficiado ou prejudicado) e no fim todos acabam cumplices da manutenção desse estado de coisas.

Mencionar também que ao longo de 2021 a profunda crise institucional de toda a CBF teve impacto no setor de arbitragem quando, depois de muitas omissões, no final do ano finalmente o cargo de responsável foi trocado do ex-árbitro Leonardo Gaciba para Alicio Pena. Justamente quando a percepção na grande mídia que os erros e absurdos do VAR no Brasil foram se tornando cada vez piores. Ora, aí surge mais uma ironia, pois se a publicidade oficial do VAR tanto fala em “transparência” dentro de campo, fora dele entre seus operadores e responsáveis o que se vê é uma total falta de prestação de contas. Vide uma hipótese de comparar a “elite federativa” com a “elite jurídica” encasteladas em suas estruturas burocráticas. Fica a lição profunda que por mais que dentro da cabine do VAR se busque uma imagem de neutralidade ao longo de uma partida, nunca se afasta por completo o fator humano nas condições externas a ela como a elaboração do protocolo e sobretudo a administração do conjunto de erros e acertos ao longo de um torneio.

Ora, mesmo com tantos elementos técnicos e objetivos pautados pelos discursos “leifertizados” na grande mídia, o que realmente importa de subjetivo a questionar é: Valeria a pena trocar todas as estórias inusitadas que o futebol já proporcionou (e ainda vai proporcionar) apenas pela obsessão de ter um controle de um ‘produto’ perfeito que evite controvérsias? Alguém ainda tem a pretensão de preservar do Jogo (demasiadamente humano) apenas o que ele tem de ‘bom’ e excluir o que supostamente tem de ‘mal’, mas lhe é inerente? Como se ele pudesse ser purificado tal qual um ‘produto’ perfeito?

Leituras de Apoio

DELEUZE, G. Post-Scriptum: sobre as sociedades de controle. In: Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992.

GIGLIO, S. S. e PRONI, M. W. “A polêmica sobre o VAR e suas consequências no futebol”. In: GIGLIO, S. S.; PRONI, M. W. (orgs.) O futebol nas ciências humanas no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, p. 761-788, 2020.

MORAIS, J.; BARRETO, T. As regras do futebol e o uso de tecnologias de monitoramento. Estudos de Sociologia, v. 2, n. 14, p. 129-156, 2008.

RODRIGUES, N. Brasil em campo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012

WISNIK, J. M. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2008.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Futebol de Controle (III): dossiê contra o VAR. Ludopédio, São Paulo, v. 156, n. 33, 2022.
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