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Futebol de controle

Fabio Perina 23 de maio de 2019

Uma das recentes polêmicas do início do ano foi a capa da revista Placar dos 10 anos de carreira de Neymar ao celebrá-lo como o melhor da era pós-Pelé. O que me instigou a pensar em alguns fatos dispersos representativos desta década e, assim, proponho aproximá-los por uma noção até aqui pouco explorada: sociedade de controle.

Essa foi não somente a década do 7 a 1 do Mineirão, do dia 8 de julho de 2014. Mas a de vários outros “7 a 1” contra o futebol brasileiro em seu significado mais popular. Desde o afastamento da seleção brasileira com seu torcedor e dos principais jogadores com o próprio entorno social. Grande parte desse fracasso passa por essa ter sido uma década na qual se vendeu a ilusão que a transformação dos estádios em arenas multiuso, impulsionada pelos megaeventos, selecionaria um público mais ‘civilizado’ e melhoraria a organização e financiamento de cada jogo e do futebol brasileiro como um todo. Chegamos agora ao final da década de 2010 já sem acreditar em tais promessas. O futebol brasileiro parece mergulhar cada vez mais no tal “futebol moderno”[1] . Um termo bastante informal e não acadêmico que encontra seu correspondente acadêmico em “futebol pós-moderno” (Giulianotti, 2002) caracterizado por sua hipermercantilização. A novidade deste ensaio é inserir sua compreensão na atual “sociedade de controle” (Foucault e Deleuze).

Dando o pontapé inicial, Foucault esboçou, no final dos anos 70, a passagem da sociedade moderna e disciplinar para a atual pós-moderna e de controle. Deleuze ampliou tais pistas e avançou ao sistematizar essa reflexão através do conhecido texto “Post-Scriptum sobre as sociedades de controle”.

“Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. […] São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares. […] formas ultra rápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado.” (DELEUZE, 1992, p 1).

Antes, as instituições de confinamento da sociedade disciplinar (tais como hospício, fábrica, escola, prisão ou até mesmo estádio) buscavam fixar normas que separassem nitidamente os ‘normais’ dos ‘anormais’. Já a sociedade de controle não aposentou a disciplina, mas a empregou em novos fluxos, que passaram a ser ainda mais abrangentes que as instituições originais. Como se derrubando os limites do campo de jogo e dele com o restante do estádio para uma reprodução comercial do futebol sem limites. Como se tudo passasse a ser um único campo infinito, sem bolas para fora e nem vindas de fora, no qual nada ocorre fora do previsto e o jogo mais dinâmico é o dos negócios. Ganhe quem quer que seja, mas os negócios nunca perdem. “Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada” (DELEUZE, 1992, p 2).

Entendo que o “futebol pós-moderno e de controle” com seus dispositivos[2] produz pelo menos três processos muito notórios: tornar o dirigente um gestor; tornar o jogador passivo e tornar o torcedor passivo. Um exemplo dessa obsessão por controle crescente desde os anos 90 ao jogador (FLORENZANO, 1998) vem sendo expandida ao torcedor.

A circulação de imagens pelos veículos dominantes sugere não haver futebol fora desse apelo por oferecer um ‘produto perfeito’, no qual todos seus fluxos colaborariam para um esporte mais previsível e, assim, supostamente, melhor praticado. Torcedores e jogadores que ousem desviar desse modelo de ‘produto’ tendem a ser duramente penalizados. Ou seja, a obsessão de querer evitar imprevistos e polêmicas que atrapalhem o ‘espetáculo’ desse suposto ‘produto perfeito’ exige vigilâncias e punições desnecessárias, desproporcionais e inócuas[3].

O jogador, seja pelo que faz dentro ou fora de campo, pode ser punido três vezes! Pelo árbitro com cartões, pelo tribunal jurídico com suspensões e até mesmo pelos fluxos econômicos (o conhecido ‘mercado de transferências’) e o ‘tribunal’ das redes sociais fechando as portas para as oportunidades em sua carreira.

Sob o ponto de vista do torcedor, os fanáticos foram se tornando fãs, como forma de dissipar suas emoções mais intensas. Mais visibilidade e menos participação. É o que defende Mascarenhas (2013) que o nome multiuso para as novas arenas é enganoso. Pois somente nos antigos estádios que suas possibilidades de participação e reinvenção de culturas torcedoras é que eram de fato “multiuso”. A selfie é uma tecnologia ampla que dispersa o usuário do arrebatamento do jogo em proveito do entretenimento[4]. Sobre esse uso massivo da tecnologia: “Félix Guattari imaginou uma cidade onde cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro, graças a um cartão eletrônico (individual) que abriria as barreiras; mas o cartão poderia também ser recusado em tal dia” (DELEUZE, 1992, p 4).

Passando a bola de novo a nossos companheiros de reflexão social mais ampla, uma afirmação importante do ensaio de 1992 é que o paradigma da empresa veio a superar o da fábrica. É o que Deleuze lamentou ser a notícia mais terrificante: que a empresa tem uma alma. E assim o capitalismo atual não somente põe em circulação mercadorias e serviços, mas até mesmo emoções, visões de mundo, maneiras de ser e de agir. É a passagem da fábrica à empresa, da ênfase na produção para o produto, inclusive do que há de mais humano também sendo encarado como produtivo.

Protesto de torcedores do E. C. Taubaté contra o futebol moderno. Foto: @naoaofutebolmoderno/Facebook.

Depois dessa breve introdução teórica, quero pensar um pouco em temas mais específicos e cotidianos aos quais aplico as reflexões anteriores. Noto, com o início dos pontos corridos, em 2003, que nas grandes vitorias e derrotas dos clubes em cada temporada no Campeonato Brasileiro tem ficado cada vez mais comum nas explicações que quem ganha e quem perde é só um: o ‘planejamento’. Inclusive, Franco Jr.(2007) relata um paradoxo, o qual eu amplio ao olhar para a monotonia das ligas europeias, passando a se repetir por aqui[5]: se o esporte moderno em geral sempre se atraiu pela imprevisibilidade, no esporte pós-moderno as ligas mais rentáveis são as de conquistas mais previsíveis!

Se o mata-mata se aparenta a um duelo ancestral, os pontos corridos parecem planejar domesticar qualquer noção de confronto. O acontecimento que me despertou pela primeira vez a necessidade de escrever algo como agora foi a final da Copa do Brasil de 2017, entre Cruzeiro e Flamengo. Objetivamente os times entraram em campo, mas toda a subjetividade que os clubes mobilizaram foi de amenizar o sentimento de confronto. Como se ambos os clubes já fossem vencedores por estar num “palco privilegiado” e ninguém mereceria perder. Pelo qual os dois clubes se comunicavam entre si pelo Twitter (#finaldetimegrande). A tabelinha mais monótona que já se viu! E ainda com um inédito caso de mascotes rivais se abraçando e até mesmo indo ao aeroporto receber cordialmente o clube visitante.

E, por falar nas questões fora de campo, foi naqueles dias após a final da Copa do Brasil que se intensificou um debate dos mais acalorados: o da instalação do árbitro de vídeo (VAR). Passando a bola novamente para Deleuze com uma paráfrase, seria terrificante a constatação que a tecnologia no futebol passou a ter uma alma. Na qual revelaria a Verdade vinda de fora do campo enquanto todos dentro dele tiveram que parar à sua espera. Se essa espera fosse demorada, pior. Mas, ainda que rápida e ‘eficiente’, tal Verdade seria desumana o suficiente pela pretensão robotizar tanto assim o comportamento humano [6].

As intromissões de fora do jogo assumem nessa década infame que se passou características cada vez mais numerosas, ora em competições estaduais, ora em nacionais, ora em continentais. Sendo aplicadas ora por federações, ora pela justiça esportiva, ora pelas autoridades como o policiamento e o ministério público. Sendo algumas delas: proibições não somente das manifestações políticas dos torcedores, mas até mesmo das manifestações apenas festivas que sempre estiveram habituados. Milhares de torcedores proibidos de entrarem nos estádios pelas medidas de portões fechados ou perda de mandos de campo. Comportamentos tidos como ofensivos de jogadores ou torcedores levando a generalizar punições aos clubes. Clubes que chegaram a ser eliminados de uma competição por uma “canetada” sem que tivessem perdido em campo (vide o Santos na Libertadores 2018). Até mesmo anulações e remarcações de jogos pelos mais diversos motivos.

Um caso de intromissão ainda mais revoltante foi a final da Libertadores de 2018 entre River e Boca. Tão esperada e depois tão fracassada. Devido ao aspecto simbólico da final de uma LIBERTADORES ser jogada justamente na Espanha, o país colonizador da América. Para tais dispositivos, qualquer tradição como a identificação do clube a seu estádio pode ser descartada e transferir a partida para qualquer lugar aleatório[7].

Por fim, um tema de arquibancada que também vejo similar aos anteriores na manifestação da sociedade de controle e em sua busca pelo espetáculo esportivo como um ‘produto perfeito’ é o da torcida única, ou seja, a proibição de visitantes. Parece-me que a torcida única é um tipo de abuso de poder que se exerce de uma forma típica da sociedade disciplinar (através de uma proibição), mas que ao mesmo tempo visa gerar um efeito típico da sociedade de controle, que é, ao menos em seu discurso, selecionar apenas o ‘torcedor pacífico’. Há uma forja artificial de imagens, na qual dentro do estádio, diante das câmeras, o futebol que se quer mostrar pela televisão seja o mais previsível possível sem que nenhum flagrante indesejado apareça. Que ninguém se engane que esse tema se limite a apenas um ajuste fiscal ou a uma questão técnica de segurança[8].

Com esse tema, eu encerro este ensaio e deixo dois questionamentos: Como pode ter valido que um time entrou em campo se não foi representado por seus torcedores ali no sagrado estádio?! Como pode ter valido um gol se não foi escutado seu grito ali no sagrado estádio?!

 

Leituras de Apoio

DELEUZE, G. Post-scriptum sobre las sociedades de control. Polis. Revista Latinoamericana, n. 13, 2006.

FLORENZANO, J. P. Afonsinho e Edmundo: a rebeldia no futebol brasileiro. Musa Editora, 1998.

FRANCO Jr, H. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Companhia das Letras, p. 349, 2007.

GIULIANOTTI, R. Sociologia do futebol: dimensões históricas e socioculturais do esporte das multidões. Nova Alexandria, 2002.

HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. Editora da Universidade de S. Paulo, Editora Perspectiva, 1971.

MASCARENHAS, G. Um jogo decisivo, mas que não termina: a disputa pelo sentido da cidade nos estádios de futebol. Revista Cidades, v. 10 , n. 17, 2013.

 

Notas

[1] A recente tragédia na categoria de base “ninho do urubu” exige uma abordagem mais crítica que o “futebol moderno” não é feito apenas de questões decorativas como chuteiras coloridas. Mas envolve inserir o futebol na discussão capital x trabalho ao se verificar uma exploração do “pé-de-obra” muito mais profunda e até fatal.

[2] Aplicando ao futebol a noção de dispositivo de Deleuze, ele pode ser pensado como diferentes agentes como dirigentes, empresários, jornalistas e até autoridades. Contando com diferentes recursos de poder como discursos, legislações e instituições. Aqui a figura de rede de fluxos também é significativa.

[3] Para saber mais sobre o punitivismo penal aplicado ao “futebol pós-moderno e de controle” e por que os aspectos disciplinares ainda persistem complementando os de controle.

[4] Para Huizinga, a competição extrapolou o jogo e passou a estar em toda a sociedade, porém destituída de sentido, fazendo suas manifestações parecerem meros simulacros (tal qual um vídeo game ou aplicativo de celular) do jogo original. Ver ainda um olhar mais contemporâneo. 

[5] É necessário retomar a nítida monopolização de vencedores do Brasileirão pós-2003 entre os paulistas, e numa menor medida entre cariocas e mineiros, sendo que a era do Brasileirão até 2002 foi mais democrática com vencedores de diversos estados e até mesmo sem sequer ter repetido a combinação de clubes que se enfrentavam na final.

[6] Para saber mais: http://revistauncanio.com.ar/polemica-en-el-var/fuera-tecnologia2/

http://revistauncanio.com.ar/opinion/dejen-al-futbol-en-paz/?fbclid=IwAR0Lurh10bd1FaOu1qUmeYLsbJXl9a4nw6BCCLh3IoPDvx12jrBDLR796rM

http://www.ludopedio.org.br/arquibancada/geni-sou-eu-contra-o-arbitro-eletronico/

https://globoesporte.globo.com/blogs/meia-encarnada/post/2019/03/28/var-a-brasileira-chama-o-sindico.ghtml

[7] Se a Copa de 1994 pode ser considerada por muitos como o crepúsculo definitivo de um futebol romântico, a aproximação da Copa de 2022 suscita as reflexões desse “futebol pós-moderno e de controle” ter tomado contornos ainda mais claros. Entre ambas, a mesma sensação desagradável de privilegiar o entretenimento que empurra o futebol para onde há mais dinheiro em detrimento da tradição.

[8] Para saber mais de controvérsias políticas em torno do tema veja os textos publicados no Ludopédio e no Blog do Mauro Cezar.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Futebol de controle. Ludopédio, São Paulo, v. 119, n. 23, 2019.
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