136.15

Futebol de vala

Max D'Carmo 6 de outubro de 2020
Bola na vala, em frente a casa de um camaradinho, 2020.
A pelada, peleja entre o asfalto e a vala.

Anos noventa! Entre uma e outra casinha da Cohab, ruas sem asfalto, um conjunto que hoje é bairro de Ananindeua: Cidade nova é o nome do lugar, considerado o maior conjunto habitacional “planejado” do Pará.
A casa onde minha mãe mora, e onde morei por tanto tempo, vi quando a rua foi asfaltada.

Não teve nem aula por causa disso! Passava tartarugas ninja na TV, mas o maquinário que enfim chegava com cheiro forte de piche, dá prosseguimento a história boleira. Parecia cena de filme pra gente.

O asfalto tirou a estética de várzea do jogo. Nossos pés de 10 anos de idade agradeceram. Além de ser a grande novidade do momento, não importava os 31 graus descalços pra dar uma bicuda.

A mãetrocínio colocou em nossos pés as bolas “atacante” ou a “ronaldinho”, ou aquela famosa “dente de leite”. Uns preferiam quando a redonda “tarra” mais velha. Geral alegava que a bola ficava mais pesada e facilitava pra dominar, “dibrar” e fazer as peraltices que abrilhantavam o jogo.

Como se jogava 2 a 2, nem sempre a tabela era com o companheiro de ofício, e sim com a própria calçada, levando os jogadores ao banho de lama. Nosso emblema.

Estado de Capoeira

O estado de capoeira, um estado similar ao do boleiro.
Anos 90, Ananindeua – PA. Jogar bola é também jogar capoeira.

Alerta pro corrupio, pra rasteira, e pra arte de gingar com a bola no pé. A gente não tinha hora pra começar a partida, levávamos a sério a brincadeira, mesmo entre as gargalhadas infindas dos furos, dos cortes e da sequência de jogo.

A trave era de “chinela” (3 ou 4 passos) e pausa obrigatória para as senhoras e carros (a gente morria de medo daqueles carros), até porque as lombadas não chegaram junto com o asfalto.

A caixa de gordura.

A lama fazia parte do processo, camisa ou corpo marcado pela vala. Uma vala escura e as vezes grossa. Tinha até um peixinho quando a água da vala estava mais clarinha, onde se via também o limo, porém, geralmente era a tal massa escura mesmo. A gente definitivamente naturalizava, não tinha cara feia e fazia parte do espetáculo. Ingênua abstração.

A bola pegava pela boca, batia pelo corpo todo, o asfalto rasgava dedo, queimava um bocadinho do pé. Sujeitos de pé rachado: o jogo era a missão.

Aquela rua era onde se concretizava o sonho do boleiro, imitar gestos de jogadores, escolher por nome os que mais gostávamos antes de começar a partida, e isso as vezes virava até briga.

Em meio ao sol rachando e o mormaço, havia um sonho em construção continuo, um romance que nunca parecia ter fim, dentro das possibilidades, havia uma singela adaptação, ressignificação, no jogo, na vala e na brincadeira. Mandiga do capoeira. A rua recém asfaltada, a falta de lombada e a vala. Ali era o nosso Maracanã com geral e tudo. 

Hoje, ter medo de carros, faz mais sentido ainda. Vide a história dos carros das cores prata ou preto. Agora não tem mais aglomerado de cadeiras e as conversas inacabáveis. Não dá pra jogar bola na rua, e as casas mudaram consideravelmente.

Uma única coisa não mudou: a vala. Esta continua firme e forte, uma constatação triste pro oprimido, a falta de saneamento básico rege uma história antiga e por hora, atemporal. Tatuagem da memória.

Ainda se vê rastros marcados dessa história, quando num jogo do clube amado, numa cerveja com os camaradas, naquela risada e a boa lembrança que remete a um estado de reflexão afetiva e no obscurantismo da trajetória.

A gente ri, um tanto de nervoso, um tanto pelas boas recordações…

 

Cidade Nova - Pré asfaltamento.
Saneamento básico, asfaltamento.

A bola pra gente é, “tudo o que a boca come.”


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Camaradinho Maxi

Periodista, pesquisador de cultura popular e futebol. Curadoria e escritos no livro: As veias abertas do futebol brasileiro. Idealizador da página O Canhotinho F.C. Músico e criador do selo Mafuá.co e da Agência Xequerê Music.

Como citar

D'CARMO, Max. Futebol de vala. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 15, 2020.
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