Há poucos dias uma notícia na imprensa destacava que o ex-jogador José Ferreira Neto, hoje apresentador exitoso em diversas mídias, ganhara um processo judicial contra o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), obtendo o direito de receber um auxílio-acidente[1]. Atleta de sucesso com passagem por grandes clubes brasileiros e pelas seleções de base, olímpica e principal – foi vice-campeão olímpico em 1988 e capitão do time treinado por Paulo Roberto Falcão, em 1990 e 1991 –, Neto foi ídolo do Guarani, de Campinas, onde despontou para o futebol, e, principalmente, no Corinthians, em que é reverenciado como um dos grandes a ter vestido a camisa alvinegra. Ele teria desenvolvido artroses que o obrigam até hoje a tomar infiltrações para o alívio das dores e para que possa seguir caminhando em seu cotidiano.

Neto
Foto: reprodução redes sociais

O acontecimento oferece a possibilidade de reflexão sobre alguns aspectos da profissão de atleta. Neto é de uma época em que ainda vigorava a lei do passe, que vinculava de forma servil um jogador de futebol ao clube que o empregava. Isso mudou, ainda que outras formas de servidão tenham sido inauguradas, como as que amarram futebolistas a empresários, em contratos que nem sempre são razoáveis para os trabalhadores da bola, especialmente os com menos destaque no cenário competitivo – ou seja, a esmagadora maioria deles. Nos anos 1980 e 1990, quando o ídolo da Fiel Torcida estava em plena carreira, tampouco os cuidados com a saúde eram os que agora temos, pelo menos nos grandes clubes brasileiros, nos quais fisioterapia, nutrição, ortopedia, biomecânica, psicologia e fisiologia, entre outas especialidades, concorrem para que cada um trabalhe dentro de limites que lhe são próprios, desfavorecendo lesões e fadiga excessiva que dificultasse demasiadamente a recuperação. Foi-se o tempo das injeções de glicose na veia, que tanto transmitiram doenças pelas agulhas compartilhadas, e até mesmo do prato de macarrão depois do jogo, substituído por suplementos em forma de gel.

São muitos os ex-futebolistas com sequelas importantes oriundas dos maus-tratos ao corpo, situação que as exigências competitivas dificilmente vão poder eliminar. Pelé atribui seus problemas no quadril, que o leva a deslocar-se em cadeira de rodas, aos excessos a que se submeteu para ser o melhor dos melhores; Ronaldo, O Fenômeno, concluiu a carreira no Corinthians sob a proteção de anti-inflamatórios; Zico não consegue dobrar completamente a perna direita, resquício de uma gravíssima lesão sofrida em 1985. Em outros esportes, também as coisas não são tão diferentes. O tenista Gustavo Kuerten, depois de mais de uma cirurgia no quadril – como o Rei – abandonou a carreira dizendo haver perdido a disputa contra seu próprio corpo.

O esporte só reconhece limites para superá-los. Ou seja, trata-se de uma fronteira que deve ser ultrapassada para que a cidadania esportiva seja mantida. O treinamento está a favor dessa ultrapassagem, assim como a competição está a serviço do espetáculo da superação (de si, mas, principalmente, do outro). Talvez por isso os ganhos das ciências não estejam tão vinculados à proteção dos atletas, mas à potencialização do rendimento. Dificilmente é possível ser atleta e viver isento de dores. Por mais que os cuidados possam ser outros hoje, as disputas esportivas são muito mais intensas, aumentando as exigências de músculos, ossos e cartilagens. O equilíbrio é penoso e, ao que parece, o pêndulo sempre tenderá para a extração do que for possível – e improvável – das energias corporais.

Embora haja casos de atletas que atuaram em ótimo nível já com idade avançada há décadas atrás (Zizinho foi campeão paulista pelo São Paulo, em 1957, aos 36 anos), isso é hoje mais comum, e não só no futebol. Sim, Cristiano Ronaldo e Rafael Nadal são exemplos certamente extremados, mas dizem algo da tendência geral. A longevidade média dos futebolistas aumentou muito e alguém de trinta anos nem sempre é um veterano. Ao mesmo tempo, milhares de jovens não chegam a ser profissionais, ou engrossam as fileiras dos que saltam de equipe em equipe, atuando nas divisões mais baixas do interior do país. Quantos não abandonam a carreira com pouco mais de vinte anos, ou com ainda menos idade? Que tipo de dores no corpo eles carregam para a vida, além da frustração de não chegarem ao sucesso pretendido e da falta de formação para a necessária reconversão profissional[2]?

Quem vê uma partida de futebol pela televisão, ou mesmo das arquibancadas do estádio, nem sempre tem clareza da velocidade do jogo, da força empregada nas jogadas, triangulações, marcação, transições, no passe que para um não atleta se assemelha a um chute a gol, tal é sua potência. Às vezes tenho a impressão de que uma partida de alto nível atualmente se assemelha a um jogo de futsal, com troca de passes muito rápida e incrível capacidade de desarme e roubo de bolas no ataque. O esporte é hoje mais espetacular e correspondente à nossa sensibilidade contemporânea, muito afeita a estímulos cada vez mais intensos. Tenho dúvidas se ele é tão bonito como outrora. Isso é discutível, mas o que não deveria ser é a preservação dos corpos futebolistas. Renunciar ao excesso, à extrema disciplina, à consumação do corpo em nome do rendimento, talvez não seja fácil, mas é possível que se mostre uma boa experiência.

Ilha de Santa Catarina, junho de 2022.


[1] Neto vence INSS na Justiça para receber auxílio por sequelas de lesões

[2] SOUZA, Camilo Araújo Máximo de; VAZ, Alexandre Fernandez; BARTHOLO, Tiago Lisboa; SOARES, Antonio Jorge Gonçalves. Difícil reconversão: futebol, projeto e destino em meninos brasileiros. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, v. 14, n. 30, p. 85-111, 2008.

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Futebol: delícias e dores do corpo. Ludopédio, São Paulo, v. 156, n. 4, 2022.
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