Venho iniciar uma breve série de entradas sobre futebol e cinema ou, talvez melhor, futebol no cinema. Aqui iremos registrar impressões e anotações sobre essa interação que tem mais história do que inicialmente se poderia supor. Já foi bastante propalado que o cinema brasileiro ainda não reservou um espaço adequado à arte futebolística. Também parece que já temos condições de contrapor a essa opinião, levantamentos empíricos contrários. Nesse sentido foi importante o trabalho feito pelo SPORT – Laboratório de História do Esporte e do lazer PPGHC/IFCS/UFR. Levando em conta a produção desde os primórdios do cinema nacional, chegou-se a 109 filmes sobre futebol (MELO, V. A. & ALVITO, M. Futebol por Todo o Mundo . RJ: FGV editora, 2006, p. 20). Não é, proporcionalmente, pouca coisa. Nesta coluna trataremos de alguns deles. Comecemos por um dos últimos, Linha de passe (2008), da dupla Walter Salles e Daniela Thomas.

Trata-se de obra de cineastas experientes e talentosos. Walter Salles assina, dentre outros, filmes como Diários da Motocicleta, Abril Despedaçado, O primeiro Dia, Central do Brasil etc. Este último obteve grande sucesso nacional, tendo ainda sido indicado para o Oscar de melhor filme estrangeiro e de melhor atriz (Fernanda Montenegro), em 1999. Pois bem, cerca de dez anos depois, o garoto de Central do Brasil atua como um dos protagonistas de Linha de passe, no papel de Dario, um jovem que, às vésperas de seu aniversário de 18 anos, tenta desesperadamente, ingressar na carreira de jogador de futebol. Bom, antes das considerações que seguem, vamos a uma sinopse rápida.

Dario tem três irmãos, Reginaldo, Dinho e Denis. A mãe, a empregada doméstica e corintiana apaixonada, de nome Cleuza, é o esteio da família, cujo pai (ou pais) não comparecem ou sequer são conhecidos. O mais novo é obcecado em descobrir o genitor, e procura- o entre os motoristas de ônibus negros, sua indicação aparentemente única da identidade do mesmo. Dinho é frentista e evangélico; Denis, o mais velho, também ele com um filho pequeno, tenta ganhar a vida como motoboy. Existência dura, na periferia de São Paulo. Cleuza encontra-se a espera de um quinto fillho…

Sem mais delongas, gostaria de chamar a atenção que não se trata de uma película sobre futebol, mas da utilização do futebol como uma linguagem potente para expressar uma situação social. O próprio título já é resultado disso. “Linha de passe” é termo futebolístico que se refere a uma troca de bola; à participação conjunta que torna possível que o jogo se desenrole. O filme, segundo o próprio Salles,

“sugere que mesmo no seio de uma família disfuncional não há saída fora dessa solidariedade horizontal entre irmãos, essa linha de passe afetiva que eles conseguem estabelecer contra tudo e contra todos” (entrevista concedida à Revista Época, em 30/08/2008).

Noutras palavras, a linguagem futebolística (linguagem em ampla acepção; como vocabulário e como uma gramática social) é empregada para cumprir o “papel do cinema”. Este, por sua vez, merece o seguinte entendimento por parte de Salles:

“Para começar, cinema não é sabão em pó. O papel do cinema é gerar uma memória de nós mesmos, um retrato de uma sociedade num dado momento. Eu não sei quantas pessoas viram Vidas Secas [clássico de 1963 do diretor Nelson Pereira dos Santos], Terra em Transe [de Glauber Rocha, feito em 1967], São Paulo S.A [filme de 1965 do cineasta Luis Sérgio Person] ou Iracema – uma Transa Amazônica [filme de 1976 do diretor Jorge Bodanzky]. Mas sei que esses filmes nos explicam, dizem quem somos, de onde viemos” Id. Ibd. Grifo nosso).

Isto posto, as perguntas que se impõe são claras. Qual o retrato da sociedade é pintado em “Linha de passe”? Como essa obra fílmica nos explica, nos diz quem somos e de onde viemos? Obrigado, Walter Salles, assim nosso trabalho fica facilitado; ah se todos fossem tão claros e explícitos…

O retrato não é bonito; o filme sim. O instantâneo (ou o conjunto de instantâneos) expostos à luz é duro. Numa “família disfuncional” (provavel?) da periferia de São Paulo, as alternativas buscadas, as estratégias desenroladas se mostram limitadas, fustigantes e tendencialmente frustrantes. O personagem de Dario vive um inferno. Ele apresenta talento futebolístico (uma possibilidade de saída), mas, até os 18 anos (uma idade fronteiriça para o ingresso profissional) não conseguiu passar em nenhuma “peneira”. Suas chances se esvaem e quase nada há a fazer. Será que vai conseguir mostrar seu valor? Até porque, mesmo com talento, a real é que “igual ao [Dario] há mais de mil, só que com 15 anos” (fala de um dos treinadores). Alguma dúvida aqui, que a “peneira”, outra gíria futebolística para os processos de teste/seleção de novos talentos, também não se resume ao universo esportivo? Se houver, é só seguir o percurso de Dinho, o irmão frentista e evangélico. O hino que o apresenta ao público é quase direto:

“(…) você é um ser,

você é alguém,

tão importante para Deus…

Nada de ficar sofrendo angústia e dor,

Neste complexo inferior (…)

Eu venho falar do valor que você tem…”

Dinho busca sua própria forma de ser alguém, de atestar seu valor. De se destacar e, nesse sentido, realmente atingir a salvação. Denis, o mais velho, talvez já tenha passado por tentativas equivalentes/paralelas. Quem sabe? O fato é que trabalha como motoboy, mas está sem nenhum recurso, porque tudo vai para acabar de pagar o veículo. Denis sabe que não apresenta talento especial nem ‘vocação’ religiosa. Denis quer curtir sua namorada/mulher e sua amante. Uma via hedonista, sem dúvida. Mas esta também se vê brecada pelas dívidas aparentemente impagáveis para com a mãe de seu filho e a falta de grana até pro motel. Essa via, no caso, o leva ao crime; Denis torna-se assaltante.

E o garoto Reginaldo? A sua obsessão por ser “alguém” (busca por uma identidade e caminho) tem a ver com o pai desconhecido. Muito boa, aliás, a atuação desse ator mirim. Consegue estabelecer convicção na revolta, malandragem e infantilidade do personagem. Reginaldo busca no pai que não conhece sua afirmação, valor, reconhecimento. Não é o que todos estão tentando fazer? Cada um a sua forma? Buscando alternativas a um mundo quase impossível?

Faltou Dona Cleuza. Esta parece que vê sua saída na formação de um escrete caseiro. Com quatro rebentos, encontra-se esperando o quinto filho (que, como repreende Denis, seria mais uma criança “que ninguém sabe quem é o pai”). Parece que é no esporte da alcova e no apego ao Coríntias, que essa forte mãe de família busca suas próprias formas de continuar jogando e passando a bola.

O futebol se torna pertinente para sintetizar o quadro, dentre outras, pela sua presença social. Vemos, na película, o futebol profissional no Pacaembu, fazendo a alegria e a dor de Dona Cleusa; temos várias seqüências das mencionadas “peneiras” (quase como grandes filas de desempregados que buscam uma colocação no sistema); há o futebol de quadra, no condomínio da patroa de Cleusa, cujo filho se aproxima de Dario e o chama para o seu time; temos o “racha” da escola de Reginaldo, onde o moleque joga e briga com um colega; há uma seqüência só entre os irmãos, ao chegarem em casa, numa espécie de bate bola de sociabilidade (difícil sociabilidade, inclusive) e há o futebol de divisões inferiores, nas quais Dario consegue, no finalzinho do filme, mais uma chance de prolongar suas esperanças. Ou seja, apesar, repito, de não ser um filme sobre futebol, tem muita gente jogando bola. Esse caráter multifacetado do nosso esporte mais popular justifica a adoção de sua linguagem e imagens para uma reflexão sobre nós mesmos. Para pensarmos quem somos, de onde viemos e… para onde vamos. Este último ponto é tangenciado com as seqüências finais que, em cortes, apresentam os rumos (ou falta de) dos 5 protagonistas. Dona Cleusa termina o filme exatamente como na seqüência de abertura, com dores da gravidez; Reginaldo rouba um ônibus, e sai dirigindo, amarradão, sozinho, horizonte em diante…; Dario consegue, contra todas as possibilidades, entrar no segundo tempo em um time de verdade. Sofre um pênalti e assume a cobrança do mesmo. Corre para a bola e bate… os Diretores deixam para os espectadores a definição se ele aproveitou ou não o que talvez fosse sua última oportunidade. E Denis? Denis dá a fala que intitula estes comentários. Após um desastrado assalto no trânsito e um não planejado roubo de carro e seqüestro do condutor, Denis percebe que sua vítima, apavorada, sequer consegue olhar para ele. Pateticamente, incomoda-se:

“- Olha pra mim, porra!

Você tá me vendo, playboy? Abre essa porta, some daqui, vai!”

Denis não rouba o carro, nem os bens do motorista, apenas foge. Ele queria era ser visto.

Acho que é isso. A dupla Salles/Daniela Thomas fotografou “um retrato de uma sociedade num dado momento”, e, da mesma forma que Denis, estão pedindo pra gente não virar a cara e olhar pra essa porra toda na qual nos encontramos imersos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Luiz Carlos Sant'ana

Professor, pesquisador do SPORT – Laboratório de História do Esporte – UFRJ/IFCS/PPGHC. Doutor em história comparada (UFRJ), com a tese O Futebol nas telas: um estudo sobre as relações entre filmes que tematizaram o futebol, duas ditaduras e promessas de modernidade, no Brasil e na Espanha – 1964/1975 (contato: [email protected]).

Como citar

SANT’ANA, Luiz Carlos. Futebol e Cinema I. Ludopédio, São Paulo, v. 20, n. 2, 2011.
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