Na infância, meu interesse pelo esporte era alimentado e saciado pela televisão aberta, pelos jornais e pela revista Placar (e um pouco pela Manchete Esportiva). Se comparados aos atuais, eram meios precários em sua lentidão, mas, a verdade é que as coberturas, se a memória afetiva não me trai em demasia, eram de muito boa qualidade. Por meio de comentários detalhados, mas sem o tecnicismo que eventualmente se confunde com precisão e ciência, sabíamos do que acontecia na cidade, nos grandes centros do Brasil e algo do que se passava no exterior. Não acompanhávamos as coisas em tempo real, como hoje fazemos com nossas próteses receptoras de imagens e sons instantâneos, que são os smartphones (os “telefones espertos”). Não era raro apenas no dia seguinte soubéssemos que algo ocorrera ou como tinha se desenrolado, tempo que podia até mesmo se estender por semanas. Na maior parte dos casos, no entanto, pouca ou nenhuma diferença fazia, e a ansiedade do excesso, suponho, era menor.

Nesse contexto, líamos aqui e ali sobre o boicote mais ou menos generalizado às competições realizadas na África do Sul, bem como a respeito do veto a suas equipes esportivas em eventos em outros países. O motivo era a existência de um regime odioso, chamado Apartheid (1948-1994), que segregava violentamente a maioria negra em favor de uma minoria branca que “herdara” o país que fora colônia inglesa. Os Jogos Olímpicos de 1976, em Montreal, ficaram marcados pelo boicote de duas dezenas de nações africanas, em protesto à não exclusão da Nova Zelândia da lista de participantes. Sua equipe nacional de rúgbi realizara uma excursão no país proscrito. O esporte é tradicional e jogado em alto nível por neozelandeses e sul-africanos.

Embora a África do Sul estivesse, no mais das vezes, fora da agenda esportiva, prevaleciam, às vezes, outros interesses, como os da Fórmula 1, que lá realizava uma de suas corridas, e do surf, que levava seus atletas a Durban, para uma das etapas que compunham o circuito mundial da modalidade. Não eram todos os surfistas que compareciam, mas, entre eles, estavam alguns brasileiros que aproveitavam a ausência de muitos dos melhores, para pontuar e subir no ranking mundial. Sim, era isso mesmo o que acontecia, e não era diferente com a maioria dos pilotos nacionais, como Emerson Fittipaldi, Nelson Piquet, e Ayrton Senna. Em 1985, o Grande Prêmio de Kyalami, disputado pelos dois últimos, foi realizado um dia depois do enforcamento do poeta Benjamin Moloise, em Pretória, levado a cabo a despeito de toda a pressão internacional.

Fechar os olhos para regimes ditatoriais e que desrespeitam os direitos humanos é prática partilhada também pelo futebol, a exemplo da Copa do Mundo de 1978, jogada sob violenta ditadura na Argentina. Enquanto o Mundial se viu desfalcado de um ou outro jogador, e foi alvo de protestos externos e mesmo de futebolistas que para lá viajaram – os holandeses não subiram ao pódio para receber suas medalhas de prata –, a imprensa foi censurada e teve muita dificuldade em falar com opositores ao regime. Estes, aliás, seguiram sendo ameaçados, perseguidos, presos e torturados, tudo em nome de mostrar que o país vivia a normalidade de uma vida civil. Não, não vivia.

Supomos que agora vivemos outros tempos, e que já não há lugar para um dirigente capaz de dizer que o conceito de democracia na América do Sul não seria o mesmo que o europeu: foi assim que Hermann Neuberger, então presidente da Federação Alemã (Ocidental) de futebol, contemporizou a realização do Mundial de 1978 na Argentina. Mas, talvez algo continue sendo como há quarenta e tantos anos. Estamos às vésperas de mais uma Copa e já sabemos, faz muito, que ela será jogada em um país em que os direitos humanos – essa doutrina tão ocidental, destaque-se – não são respeitados como devem ser.

Copa Catar
Foto: Reprodução / Fifa / Twitter

Antigo protetorado britânico e aliado importantíssimo dos Estados Unidos da América, riquíssimo em petróleo e gás natural, o Catar é governado de forma absolutista. Recentemente veio a público a condenação inicial (que incluía cem chibatadas), depois suspensa, de uma economista mexicana que estava no país atuando na organização da Copa. Ao denunciar uma agressão, acabou sendo acusada de adultério – o agressor declarou que mantinha com ela um relacionamento amoroso. O processo foi devolvido pelo Juiz porque considerado inconsistente, e está novamente com a Promotoria, sendo provável que seja arquivado[1].

À parte os mal-entendidos por conta do idioma e da falta de amparo à mulher, que já não se encontra no país, e do provável desfecho não de todo infeliz, a situação choca nossa sensibilidade e é intolerável para quem se orienta pela doutrina dos direitos humanos. Esta tem no caráter universal um dos seus principais pilares.  O esporte, por sua vez, é um fenômeno ocidental e globalizado, mas que nem sempre coincide, em sua radicação histórica, com ideais iluministas e libertadores.

O Catar é uma nação soberana, com lugar privilegiado na economia e na geopolítica internacionais. Tem suas leis orientadas por princípios que, segundo a interpretação que lhes parece a melhor, colidem com o que entendemos como defesa dos direitos humanos. Devemos acatá-las se estamos de visita, mas precisamos aceita-las em nome do relativismo cultural e do respeito às diferenças? De minha parte, prefiro uma posição que, sem deixar de ser autocrítica, esteja do lado das garantias de autodeterminação, com a defesa da pessoa e de sua integridade como um valor inviolável. Seria tolo esperar que a FIFA se manifestasse de forma aguda a respeito de situações que possam violar direitos que vemos como alienáveis, mas não deixa de chamar a atenção, como efeito de comparação, sua fúria nas exigências econômicas e garantias de seus lucros, como aconteceu no Brasil em 2014. Bem, sabemos o que de fato vale mais para a entidade máxima do futebol mundial.

Ilha de Santa Catarina, maio de 2022.

Notas

[1] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60998506

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Futebol e Direitos Humanos. Ludopédio, São Paulo, v. 155, n. 23, 2022.
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