09.1

Futebol e guerra – Bissau, Guiné-Bissau

Bissau, Guiné-Bissau

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Foto: João Henriques.

A selecção da Guiné portuguesa era forte. A mais forte de toda a África Atlântica. Não lhe metia medo o Senegal francês, nem a Gâmbia britânica nem mesmo o longínquo Congo belga. Quem vinha jogar a Bissau sabia que a derrota era o destino mais provável. “Nos anos 40 e 50, a Guiné era uma das melhores selecções africanas. As equipas e a selecção nacional tinham portugueses e guineenses que se entendiam bem dentro de campo”, diz António Moreira, 69 anos, antigo jogador da UDIB (União Desportiva Internacional de Bissau), mais conhecido por “Pacheco” em homenagem a um antigo futebolista do Sporting. Na época, os ordenados eram pagos em peixe e a principal responsabilidade do clube era encontrar um trabalho para os seus jogadores. As melhores equipas eram o Balantas de Mansôa, o Sporting de Bissau, o Benfica de Bissau, o Ténis Clube e a UDIB. O campeão da província ultramarina ia à metrópole disputar a Taça de Portugal.

 A UDIB não era um clube qualquer. Era muito mais do que isso. Na sua sede, na Avenida da República (actual Avenida Amílcar Cabral), havia um cinema, um salão de baile e uma sala de jogos. Era o ponto de encontro da elite de Bissau, o local onde futebolistas, políticos, músicos e senhoras respeitadas cruzavam histórias. “Não era qualquer um que lá entrava. Era preciso ter estatuto social”, lembra Pacheco. O médio-direito lutava, na época, pelo lugar no onze com João Bernardo Vieira, mais tarde conhecido por “Nino”, electricista de formação, que na década de 60 se viria a juntar ao PAIGC na luta armada pela independência do país e, mais tarde, a governar o país por mais de duas décadas.

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Foto: João Henriques.
Como Nino, muitos trocaram nesta altura a bola pelas armas e as suas casas em Bissau pela guerrilha no mato. Não foi o caso de Pacheco, Vieirinha, Artur Pinhel e Domingos Cá, quatro antigos internacionais guineenses que juntámos em Bissau. Eles assistiram às convulsões históricas e políticas da Guiné-Bissau com uma bola de futebol nos pés. “Nos anos 60, o futebol começou a morrer”, diz o avançado Artur Pinhel, um cabeceador célebre do Ténis Clube de Bissau. “As equipas de Bissau deixaram de poder ir jogar ao interior – a Catió, Gabú, Bafatá – porque os autocarros eram sempre atacados pelos rebeldes, como fizeram agora em Cabinda à selecção do Togo”, diz Pinhel. Artur também foi alvo das rajadas de AK-47 que mataram alguns dos seus colegas. “As equipas de futebol eram apetecíveis porque eram dirigidas por brancos”, explica Vieirinha, antigo lateral-direito do Balantas de Mansôa, clube que ficou cingido a jogar no norte do país após o início da guerra.
O campeonato dividiu-se em barricadas. De um lado, os futebolistas guineenses deixavam o desporto para combater pela libertação. Do outro, os que integravam as tropas portuguesas em troca de recompensas e com medo de represálias. Nem os que se abstinham e escolhiam o futebol podiam relaxar. A quem era chamado à selecção durante a guerra estava reservado um calvário. O PAIGC estava fortemente representado em Dakar e em Conacri e via as deslocações da selecção de Bissau ao Senegal e à Guiné-Conacri como uma excelente hipótese de recrutamento de jovens soldados: “Uma vez, na Gâmbia, estivemos quase a ser mobilizados. Estive a um passo de pegar na arma, mas não avancei”, diz Artur. “Depois, quando regressávamos a Bissau, a PIDE tentava perceber se nos tínhamos aliado ao PAIGC e ameaçava-nos”. Em finais dos anos 60, a PIDE assassinou o irmão de Artur. A necessidade de vingança possui-o mas preferiu descarregar a raiva nas balizas: “O futebol deu-me a força para não vingar a morte do meu irmão. Tinha muitos amigos e colegas brancos na equipa e não podia fazê-los sofrer”, diz Artur.
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Foto: João Henriques.
A independência chegou e com ela uma nova fase do futebol guineense. O Balantas de Mansôa, criado como 13ª filial do Belenenses (ainda hoje jogam com as cores da equipa do Restelo), sagrou-se o primeiro campeão da Guiné livre. Em 1974, a selecção nacional da Guiné-Bissau disputou o seu primeiro jogo internacional no campo pelado do estádio Lino Correia, nome de outro futebolista que se tornou herói da libertação. Com as bancadas apinhadas de gente e a nova bandeira com as cores pan-africanas a mostrar-se ao mundo, a Guiné-Bissau derrotou o Senegal por 1-0, com um golo de cabeça de José Mariano. “Vivíamos o tempo da esperança. Foi o jogo mais feliz da história da Guiné”, diz Domingos Cá, veterano da UDIB e do Portimonense, onde jogou em 1975 e 1976.
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Foto: João Henriques.
Os anos que se seguiram prometeram prosperidade ao futebol do país. Mas o golpe de Estado de 1980 deu início a uma instabilidade política que se alastrou ao futebol. A falta de fundos e de condições de trabalho resultou na estagnação dos clubes e da selecção. “O Sporting de Bissau foi a equipa que ganhou mais títulos (13) porque recebia o apoio da direcção do Sporting de Lisboa”, explica Vieirinha.

Por razões financeiras e devido à guerra civil de 1998/99, não houve campeonato nacional em seis dos 37 anos de independência. Mesmo a presente temporada começou três meses atrasada por levantamentos contra a gestão da Federação de Futebol da Guiné-Bissau (FFGB) e nem a instalação do tapete sintético no Estádio Lino Correia fez calar as críticas dos opositores do presidente José Lobato. “Sem contratos de publicidade e de direitos televisivos não conseguimos obter a autonomia financeira para o futebol”, diz Lobato.

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Foto: João Henriques.

Os clubes já não pagam em peixe como nos anos 50. Muitos deles agora já nem pagam nada e nem procuram trabalho aos seus atletas. Como não há água, muitos dos jogadores tomam banho em alguidares nos balneários. Há relvado sintético, mas os atletas não têm chuteiras com pitons para não escorregarem quando jogam sobre ele. A selecção ocupa a 195ª posição na classificação da FIFA – é a 2ª pior de África e a 13ª pior do Mundo. Resta agora a esperança de que a nova geração consiga dar um novo fôlego ao país, dentro e fora dos relvados. Foi para isso que Pacheco, Pinhel, Vieirinha e Cá sempre aguentaram a bola nos pés, sem a deixar cair, desviando-se habilmente das balas da guerra.

*Tiago Carrasco, João Henriques e João Fontes estão rumo à Àfrica do Sul no projeto Road to World Cup. Foi mantida a grafia original, de português de Portugal.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Tiago Carrasco

Tiago Carrasco é jornalista e tem 34 anos. Publicou dois livros, centenas de reportagens nos mais prestigiados órgãos de comunicação social portugueses e é autor de dois documentários. Em 2013, ganhou o Prémio Gazeta Multimédia, da Casa de Imprensa, com o projecto "Estrada da Revolução". Com uma carreira iniciada em 2014, tem assinatura em trabalhos exibidos pela TVI e RTP, e impressos pelo Expresso, Sábado, Sol, Record, Notícias Magazine, Maxim e Diário Económico, para além dos alemães Die Welt e FAZ. Em 2010, desceu o continente africano de jipe num projecto que daria origem ao livro "Até lá Abaixo" (na terceira edição) e a um documentário com o mesmo nome. Em 2012, fez a ligação terrestre entre Istambul e Tunes durante a Primavera Árabe, que originou o livro "Estrada da Revolução" e o documentário homónimo. Foi responsável pelos conteúdos do documentário "Brigada Vermelha", sobre a luta de um grupo de adolescentes indianas pelos seus direitos enquanto mulheres. Cobriu importantes eventos internacionais como a guerra civil na Síria, o pós-revolução no Egipto, Líbia e Tunísia, o Mundial de futebol em 2010, a anexação da Crimeia por parte da Rússia, o referendo pela independência da Escócia, o movimento de independência da Catalunha, a crise de refugiados na Europa e a crise económica na Grécia e em Portugal. Muito interessado em desporto, esteve presente no Mundial'2010 e no Euro'2016 e já entrevistou grandes figuras do futebol: Eusébio, Madjer, Paulo Futre, Rivaldo, Deco, Roger Milla, Abedi Pelé, Basile Boli, Ricardo, Abel Xavier, Scolari, Chapuisat, Oscar Cardozo.

Como citar

CARRASCO, Tiago; HENRIQUES, João; FONTES, João. Futebol e guerra – Bissau, Guiné-Bissau. Ludopédio, São Paulo, v. 09, n. 1, 2010.
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