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Futebol e Música no Brasil – alguns exemplos de uma profícua relação

Desde as primeiras décadas do século XX, Música e Futebol se aliaram no Brasil, em parcerias muito felizes que possibilitaram a junção entre os elementos musical e verbal, envolvendo nomes como Ary Barroso, Lamartine Babo, Lupicínio Rodrigues, Jackson do Pandeiro, Tom Zé, Gonzaguinha, João Bosco, Jorge Ben Jor, Aldir Blanc, Chico Buarque, e tantos outros, verdadeiros mestres em exaltar a paixão nacional.

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Jorge Ben Jor. Foto: Divulgação / Deju Matos.

 

A ginga e o jogo ao ritmo do sambalanço

Nosso primeiro exemplo da relação entre Futebol e Música Popular Brasileira é a canção “Ponta de lança africano” (1976), do cantor e compositor Jorge Ben Jor. Conhecida popularmente por “Umbabarauma”, sem dúvida, trata-se de uma das mais belas canções dedicadas ao futebol já compostas pela MPB, lançada em 1976, no álbum clássico África Brasil.

Na letra da canção “Ponta de lança africano”, a narrativa textual parece mesclar-se ao ritmo da própria música. Na quarta estrofe, o “eu-lírico” se dirige ao jogador, produzindo, assim, textualmente um interlocutor, a personagem Umbabarauma: “Olha que a cidade/ Toda ficou vazia/ Nessa tarde bonita/ Só pra te ver jogar” (BEN JOR, 1976). Aliás, é como se a letra gingasse ao ritmo do jogador negro, que ganha corporeidade em forma de “homem-gol”.

De certo modo, já é lugar comum a associação entre samba e futebol no Brasil. Como ressalta Hilário Franco Júnior,

[…] [a]o samba, com seus movimentos livres, suas gingas e seu ritmo acelerado, corresponde o futebol brasileiro de muita improvisação e dribles. Às várias danças tribais dos africanos, muito atléticas e plásticas, corresponde o futebol feito de imaginação e força que as nações negras, apesar de grande diversificação, praticam. (FRANCO JÚNIOR, 2007: 226).

A terceira estrofe de “Ponta de lança africano” evidencia, literalmente, essa dinâmica do corpo no espaço-tempo: “Pula, pula, cai, levanta/ Sobe, desce, corre, chuta/ Abre espaço/ Vibra e agradece” (BEN JOR, 1976). Podemos, inclusive, tomar como implícito nessa sequência de gestos corporais o próprio gol.

Além disso, o “eu-lírico” não descreve o lance demoradamente, mas, sim, o apresenta como se fosse um flash de segundos, numa sequência de versos formada exclusivamente por verbos de ação – pular (2x), cair, levantar, subir, descer, correr, chutar, abrir, vibrar –, com exceção da palavra “espaço”. Enquanto linguagem corporal, ao ser captado, o futebol se afasta da linguagem escrita articulada de maneira plena e distendida no tempo. Por isso, o “eu-lirico” apresenta o lance, a dinâmica do corpo de Umbabarauma em movimento, como se estivesse presenciando a jogada.

O jogador e o poeta – modos de tratar a bola e a palavra

Outra canção selecionada para refletirmos sobre a relação entre Futebol e Música no Brasil é “O futebol” (1989), de Chico Buarque de Holanda, faixa do disco que leva como título o nome do cantor e compositor – Chico Buarque, lançado em 1989.

Composta em versos livres, a letra da canção “O futebol” evidencia um primeiro aspecto: o “eu-lírico” se defronta com a dificuldade de traduzir em palavras lances do chamado futebol-arte. Em cada uma das três primeiras estrofes há a simulação, pelo enunciado, de um interlocutor, “nêga” (2x), “minha nêga”, sua suposta companheira que ouve o lamento do poeta-personagem. Todavia, trata-se apenas um simulacro linguageiro.

Um segundo aspecto que chama a atenção na letra de “O futebol” é o emprego de gírias e de verbetes do jargão futebolístico: “filó”, “firula”, “folha seca”, “finta”, “contrapé”, “chapéu”, “gerais”, “costurando a linha”, “catimba” e “ginga” (HOLANDA, 1989). Isso permite atribuir ao “eu-lírico” traços de alguém que é amante do futebol, um poeta diante da dificuldade de expressar através de sua arte uma outra arte. Todas essas expressões parecem emanar de um ponto em especial: o “eu-lírico”, basicamente, demonstra seu fascínio pelo drible: firula, parafusar, dar chapéu. O drible é, essencialmente, movimento. E é esse movimento que o poeta lamenta não conseguir traduzir em seu poema: “Para tirar efeito igual/ Ao jogador”; “Para captar o visual/ De um chute a gol/”; “O corredor/ Na paralela do impossível/” (HOLANDA, 1989). Para isso, o poeta precisaria ser o “Rei”, numa alusão a Pelé.

Por sua vez, a terceira estrofe marca o momento em que o “eu-lírico”, após tentar dar conta, pela linguagem, da magia do drible de Garrincha em forma de parafuso ao redor de seu marcador, mais um “joão” na lateral, propõe outra imagem, a de um “chapéu”, na gíria do futebol, “[l]ance em que o jogador eleva a bola sobre o adversário e a recupera às suas costas” (MARANHÃO, 1998: 66). Diferindo, entretanto, através da linguagem, de um procedimento descritivo como esse proposto pelo escritor paraense Haroldo Maranhão no seu Dicionário de Futebol, o “eu-lírico” poetiza o movimento do corpo e da bola: “Parábola do homem comum/ Roçando o céu/ Um/ Senhor chapéu/ Para delírio das gerais no coliseu/” (HOLANDA, 1989). Porém, o que se impõe na segunda metade da terceira estrofe é o lamento do poeta-compositor diante das tentativas de criar imagens-movimento: “Mas/ Que rei sou eu/ Para anular a natural catimba/ Do cantor/ Paralisando esta canção capenga, nêga/” (HOLANDA, 1989). Não quer paralisar a linguagem, não quer a antipoesia. Luta, pois, consigo mesmo. Podemos dizer que, em “O futebol”, estamos diante de um metadiscurso, em que o poeta-compositor comenta a dificuldade de sua própria enunciação frente ao objeto – o futebol-arte – que se pretende traduzir em poesia e música.

O canto da ascensão e queda de um craque

Para a edição de hoje, dando prosseguimento à série “Futebol na Música Popular Brasileira”, selecionamos a letra da canção “Beto bom de bola” (1967), do cantor e compositor Sérgio Ricardo, o qual entrou para a história do Terceiro Festival de Música Popular Brasileira, promovido pela TV Record em 1967, ao protagonizar uma cena inusitada: Irritado com o público, que o vaiava e tentava impedi-lo de continuar cantando a canção “Beto bom de bola”, Sérgio Ricardo se dirigiu à platéia gritando “Vocês ganharam! Vocês ganharam!”, pegou o violão pelo braço e o quebrou, em seguida, atirando os pedaços do instrumento ao público. Por seu ato intempestivo, o cantor foi desclassificado do Festival.

Todavia, ficou no ar se a revolta do público foi gerada pela disputa acirrada do próprio Festival, ou se foi um modo de criticar o compositor que, em tempos de ditadura, contemplava um tema aparentemente menos “politizado”, e que não se afigurava como um canto de resistência e de enfrentamento, perdendo para as canções “Ponteio”, de Edu Lobo, e “Domingo no parque”, de Gilberto Gil. Fato é que Sérgio Ricardo já havia se destacado pela composição da trilha-sonora do filme de Glauber Rocha, o legendário Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), que lhe rendera vários prêmios.

Por sua vez, a canção “Beto bom de bola”, de início, estabelece uma relação entre futebol e samba, anunciada no primeiro verso: “Como bate batucada/Beto bate bola”. Trata-se de uma crônica da vida de um craque, da ascensão à queda. Beto se torna jogador profissional, sem dar ouvidos à cigana, abandonando a namorada e buscando proteção do cartola. Chega à Seleção Brasileira e faz o gol do título na Copa, atingindo a glória:

Nas manchetes de jornal
Bebeto entrou de sola
– Extra!
– O novo craque nacional
– É o Beto Bom de bola (RICARDO, 1967)

Mas o tempo passa e vem o esquecimento, conforme ilustram os seguintes versos da canção:

E foi-se a Copa e foi-se a glória

E a nação se esqueceu

do maior craque da história (RICARDO, 1967)

Nessa curva da ascensão à queda, daquele que chutava “bola de meia” e termina chutando “pedra”, estão presentes a felicidade e a amargura.

Alguns acreditam ver em Beto a trajetória do craque Mané Garrincha. Fato é que, em 1967, Garrincha estava longe de ser aquele jogador que encantara o mundo na Copa de 1962. Sua carreira estava em franco declínio, muito comprometida pelo alcoolismo. Em 1983, quase esquecido e pobre, morreu Mané. Por assim dizer, a canção de Sérgio Ricardo assume, a posteriori, um tom premonitório.

O Futebol ao ritmo do RAP – espaço de crítica social

Como mais um exemplo da relação entre Futebol e Música no Brasil, selecionamos a letra da canção “Brazuca” (1999), do álbum Nádegas a Declarar, de Gabriel, o Pensador, nome artístico de Gabriel Contino, um dos principais cantores e compositores do Rap e do Pop brasileiro.

Uma das marcas da carreira de sucesso de Gabriel, o Pensador, são as letras de crítica social e moral, como acontece no Rap, abreviatura para Rhythm And Poetry (ritmo e poesia), um dos elementos estéticos da cultura Hip Hop que surgiu nos Estados Unidos, na década de 1980, além do break dance e do grafite. Na língua portuguesa, a sigla adquiriu também um outro significado: Revolução Através das Palavras. Assim, no contexto brasileiro, o Rap se tornou uma espécie de música de protesto, cujas letras narram sobre a dura realidade das periferias nos centros urbanos do país. Marcadas por um ritmo rápido e acelerado, as canções de Rap possuem letras compostas por linguagem das ruas, pouco formal, mas que, por isso mesmo, possuem uma comunicabilidade inegável, pois toca diretamente na realidade de muitos que apreciam esse ritmo musical.

Com relação à canção de Gabriel, o Pensador, a letra de “Brazuca” evidencia seu caráter de protesto. A diversidade é marcada pelos irmãos “Brazuca” e “Zé Batalha”, que trilham caminhos contrários: enquanto o primeiro é um jogador de futebol de sucesso, o segundo fracassa, embora trabalhe muito, conforme os versos do refrão:

Bazuca é bom de bola
Brazuca deita e rola
Zé Batalha só trabalha
Zé Batalha só se esfola (GABRIEL, O PENSADOR, 1999)

A letra se vale da metáfora do futebol como “o jogo da vida”: Enquanto Brazuca é campeão, marcando o gol do título e jogando com a camisa da Seleção Brasileira, Zé Batalha representa os inúmeros anônimos que sucumbem nesse “jogo” desigual, marcado pelo preconceito, pela violência e pelo descaso:

Sem reclamar pra não levar cartão vermelho
Zé Batalha sob a mira da metralha de joelhos
Tentando se explicar com um revólver na nuca:
Eu sou trabalhador, sou irmão do Brazuca!
Ele reza, prende a respiração
E lá na copa, pênalti a favor da seleção
Bola no lugar, Brazuca vai bater
Dedo no gatilho, Zé Batalha vai morrer
Juiz apitou… tudo como tinha que ser:
Tá lá mais um gol e o Brasil é campeão
Tá lá mais um corpo estendido no chão (GABRIEL, O PENSADOR, 1999)

Assim, a canção “Brazuca” assume um tom de denúncia frente a um Brasil em que impera a injustiça e todo tipo de mazelas, conforme os seguintes versos:

É campeão da hipocrisia, da violência, da humilhação
É campeão da ignorância, do desespero, desnutrição
É campeão da covardia e da miséria, corrupção
É campeão do abandono, da fome e da prostituição (GABRIEL, O PENSADOR, 1999)

O Futebol e o humor – quando o time deixa a desejar…

Como um último exemplo da relação entre Futebol e Música no Brasil, selecionamos a letra da canção “Time perna de pau” (1956), de Vicente Amar, que se tornou sucesso nas vozes do grupo paulistano Demônios da Garoa, em 1969.

Mineiro radicado no Rio de Janeiro, funcionário do departamento musical da Rádio Nacional, Vicente Amar (1929-2012) teve dezenas de músicas gravadas por cantores do rádio. A canção “Time perna de pau” foi gravada, primeiramente, por Fafá Lemos e seu Conjunto, em 1956, e posteriormente, em 1961, pela dupla Ouro e Prata.

Todavia, foi no final da década de 1960 que “Time perna de pau” alcançou notoriedade pela interpretação do grupo paulistano Demônios da Garoa. Em 1969, o grupo gravou um compacto simples contendo as músicas “Time perna de pau”, de Vicente Amar, no lado B e “Timão”, de Samuel Andrade e Paulo Gallo, no lado A.

Por sua vez, o conjunto musical Demônios da Garoa foi formado na década de 1940. Seus maiores sucessos resultaram da parceira com o compositor Adoniran Barbosa, a partir de 1949. Dessa parceria se originaram sucessos como “Trem das Onze”, “Saudosa Maloca”, “O Samba do Arnesto”, “Tiro ao Álvaro” e “Ói Nóis Aqui Trá Veiz”. Na mesma linha, como o próprio título da canção indica, “Time perna de pau” se configura como uma sátira de um time com desempenho futebolístico aquém das expectativas de seus torcedores.

Num preâmbulo, construído de modo dialógico, dois torcedores na porta do estádio discutem se irão entrar ou não para assistir ao jogo de seu time, mas o estádio já está cheio. Um deles diz:

Já rasguei a carteira do clube, eu não vô entrá não. A gente chega aqui, pede uma entrada de numerada e os caboclo lá de dentro do buraquinho do guichê diz assim pra gente: se quisé só no gaio. Ou no gaio ou lá no morrinho. E a gente gasta todo o salário da gente em fuguetório, fica rouco, rouco, rouco e esses cara num fazem nem um gol… (DEMÔNIOS DA GAROA, 1969)

Assim, o traço de identidade do torcedor é construída por um linguajar popular, marcado por variações linguageiras e de pronúncia do Português.

Assim nosso time de futebol, vai mau,
Nosso jogador são tudo,
São “tudo” uns “perna de pau”,
Só “contratemo”, quem “num” sabe nem “chutá”,
Parecemos “muié” de malandro,
Só “sabemo” é “apanhá”,
Mais os “curpado”, são os nosso “direto”,
Que não dão aos “jogado”,
Assistência, “morá” nem “matéria”,
Se “nós tirá” em “urtimo” lugar,
A “curpa” é do “ténico”, que “num sabe orientá”. (DEMÔNIOS DA GAROA, 1969).

Trata-se, pois, de linguagem coloquial, além do tom de humor que perpassa o texto, na composição de uma cena cotidiana de torcedores de futebol, marcada por insatisfação e sofrimento pelo baixo rendimento do time do coração.

Referências

BEN JOR, Jorge. Ponta de lança africano (1976). In: BEN JOR, Jorge. África Brasil. CD. reedição, coord. Rodrigo Faour, Manaus: Universal: encarte, 2009. (Coleção “Salve Jorge!”).

DEMÔNIOS DA GAROA. Time perna de pau (1969). Acesso em: 10 abr. 2011.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

GABRIEL, O PENSADOR. Brazuca (1999). Acesso em: 25 fev. 2013.

HOLANDA, Chico Buarque de. O futebol (1989). In: ABRIL Coleções. Chico Buarque – 1989. São Paulo: Abril, 2010, 37-38. (Coleção “Chico Buarque”; 13).

MARANHÃO, Haroldo. Dicionário de futebol. Rio de Janeiro: Record, 1998.

RICARDO, Sérgio. Beto bom de bola (1967). Acesso em: 25 fev. 2013.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Elcio Loureiro Cornelsen

Membro Pesquisador do FULIA - Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, da UFMG.

Como citar

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Futebol e Música no Brasil – alguns exemplos de uma profícua relação. Ludopédio, São Paulo, v. 117, n. 17, 2019.
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