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Futebol e Música: uma relação de placa e com muitas histórias

Luiz Murillo Tobias 23 de dezembro de 2015

“Eta, eta, eta, brasileiro quer futebol, mulher e rock’n’roll. Meu Deus como isso é bom!”… A música ´Futebol, Mulher e Rock’n’roll ‘ gravada nos anos 90 pela banda Dr. Sin – contando com a participação do mitológico narrador Silvio Luiz e suas famosas vinhetas, ilustra uma predileção, não unânime, mas comum aos homens brasileiros: a combinação futebol e música. Mulheres não a parte, pois formam hoje um grande público nos estádios. Ampliando a representação de estilos musicais além do rock’n’roll, é um fato que a mistura futebol e música fazem parte da cultura popular brasileira desde muito tempo. A inspiração para essa combinação, elemento especial para o resultado e vibração nos estádios, bares e lares, que nem sempre é de conhecimento popular. Histórias e composições acabam se perdendo com o passar do tempo. Um exemplo, de música pouco conhecida é a ´Foot-ball´ gravada pelo conjunto Lima Vieira e Cia, provavelmente em 1912, e considerada, por vários pesquisadores, como a primeira canção que uniu futebol e música. Porém, não se sabe o autor e nem mesmo sua origem ou circunstâncias de inspiração. Uma curiosidade perdida no tempo.

O pesquisador e jornalista paraibano Assis Ângelo, através do seu livro intitulado ´A presença do Futebol na Música Popular Brasileira´, faz uma organização cronológica da presença da música na cultura popular do futebol e ratifica bem esse conceito. Defensor da cultura brasileira, Assis é um dos muitos estudiosos que ajudam a preservar essa parte da nossa história e registrou em seu livro fatos interessantes relativos a várias composições praticamente esquecidas ligadas ao velho esporte bretão, tais como: ´A Copa do Mundo´ (1938), no gênero de cateretê, composta por Serrinha e Raul Torres, foi a primeira música sobre o Campeonato Mundial de Futebol; ´É Sopa, 17 a 3’ (1936), composta por Eduardo Souto, primeira marcha humorística sobre o futebol; o tricolor das Laranjeiras tem em sua homenagem o tango ´Fluminense´ composto por Américo Jacomino e ´Futebol´ (1936), composta por Alvarenga, Ranchinho e Ariowaldo Pires, inclusive, a primeira música sobre o esporte no gênero de moda de viola. Em seu livro, há curiosidades como a informação que o ex-camisa dez da seleção brasileira, Pelé, também compositor, é o jogador mais homenageado da música brasileira, seguido de perto por Zico, outro camisa 10 e ídolo do Flamengo, time mais popular do Brasil. Apesar das glórias de Pelé e Zico, o time com mais músicas escritas em sua homenagem é o Corínthians Paulista. Ouvido sobre o seu trabalho, Ângelo afirmou que “esse tema é de extrema importância na cultura popular brasileira e deve ser constantemente explorado para que grandes histórias não se percam com o passar dos anos”, comentou.

O esquecimento não é o caso de uma das músicas mais executadas nos estádios brasileiros, principalmente no Maracanã, e que conseguiu ser cantada pelas torcidas dos quatro grandes clubes do Rio: ´O Campeão´, de autoria do Neguinho da Beija-Flor. Só o fato de unir torcidas rivais já seria uma questão interessante, mas a revelação, pelo autor rubro-negro, de que o samba foi feito sob encomenda de um vascaíno, desperta maior curiosidade. Neguinho afirmou que “a música foi encomendada por um amigo meu vascaíno e fiz durante uma viagem de ônibus da Praça Mauá até Nova Iguaçu, município no qual morava”. Cantarolando, ele esclareceu que versão original começava com “domingo … eu vou ao Maracanã, vou torcer para o Vasco que sou fã”. Com o tradicional sorriso nos lábios interrompe o canto e complementa afirmando que “isso é uma verdadeira heresia para um compositor rubro-negro”, gargalha o intérprete oficial do G.R.E.S Beija-flor de Nilópolis. Porém, Neguinho logo percebeu o “equívoco” e resolveu alterar a letra “tirando o Vasco da parada”, diz ele no linguajar malandro. Assim, transformou seu samba em um hino dos estádios ao substituir ´Vasco´ pelo ´vou torcer pelo time que sou fã´, popularizado por uma estratégia que lhe custou, segundo ele, um “cascalho alto”. Conseguiu com um amigo para que tocasse a música no alto-falante do Maracanã em um jogo do Flamengo e o aluguel de uma Kombi, que circundou o estádio executando e fazendo a distribuição do compacto com a música.

O Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo foi sede, em 2004, de uma série de shows que homenageavam o grande Lamartine Babo. Esta caricatura foi feita para o material gráfico e o cenário dos shows. Acesse o blog do Baptistão Caricaturas.
Lamartine Babo. Caricatura: Baptistão Caricaturas.

Outro compositor que agradou as maiores torcidas do Rio, mas com músicas específicas, foi Lamartine Babo – que conseguiu o impressionante fato de renovar os hinos de 11 times cariocas. Segundo o radialista Gerdal dos Santos, que começou no rádio em 1942 e está na rádio Nacional desde os anos 50, “a ideia surgiu a partir do desafio do radialista Heber de Boscoli, que apresentava o programa ´Trem da Alegria´, na rádio Mayrink Veiga. Ele desafiou o compositor a criar 11 hinos em tempo bem curto”, conta. Os contemplados seriam Flamengo, Fluminense, Botafogo, Vasco, América, São Cristóvão, Bangu, Bonsucesso, Madureira, Olaria e Canto do Rio, um time de Niterói que, segundo o pesquisador Auriel de Almeida, “não recebeu um hino, mas uma canção de amor a uma paixão amorosa de Lamartine nas terras de Araribóia”, conta. A questão é que Lamartine Babo demorou a terminar o “serviço”. Então, “Heber teve a ideia de convidá-lo para seu apartamento e, ao chegar, o radialista saiu, trancou a porta e deixou o compositor com água, caneta e papel para terminar os hinos”, diz Gerdal que complementa informando que “no final da tarde tocou o telefone na redação da rádio e era Lamartine avisando ao Heber que havia conseguido finalizar as composições”, diz feliz o veterano jornalista e presidente do Instituto FUNJOR.

Os hinos caíram no gosto popular e o tradicional hino do time da Gávea “Flamengo, Flamengo, tua glória é lutar”, composta pelo ex-goleiro rubro-negro Paulo Magalhães, deu lugar nos estádios ao apoteótico “uma vez Flamengo, sempre Flamengo…” E assim, foi com a torcida do Vasco e o “vamos todos cantar de coração…”; a torcida do Fluminense enfumaçada pelo talco que imita pó de arroz canta “sou tricolor de coração…”; a torcida do Botafogo com dúvida na data, mas interpretando o “Botafogo, Botafogo, campeão desde…” e da torcida do América, liderada pelo compositor, no “hei de torcer, torcer, torcer…” Lamartine virou o compositor mais cantado nos estádios. Porém, não foi o compositor que mais se emocionou com um coro de torcida cantando sua composição.

Esta glória quem teve foi João de Barro, o Braguinha (1907-2006) – que hoje tem uma estátua na entrada do bairro de Copacabana e foi um dos responsáveis vários sucessos de Carmen Miranda. O momento mágico de sua vida aconteceu em um jogo da Copa do Mundo de 1950, disputada no Brasil, na qual mais de 152 mil pessoas, que assistiam a goleada de 6 a 1 da seleção brasileira sobre a seleção da Espanha, decidiram cantar juntas – provavelmente e até então, o recorde de pessoas em coro, sua composição ´Touradas em Madri´, escrita em parceria com Alberto Ribeiro e gravada por Almirante – ´a maior patente do rádio´, em 1938. O grande compositor da MPB, não cansava de repetir em suas entrevistas esse momento que, originalmente, não tinha nenhuma relação com futebol, da seguinte forma: “Foi uma surpresa que me marcou para sempre. Eram quase 200 mil pessoas cantando juntos e só uma chorando. Não cantei, apenas chorei. Foram lágrimas doces e suaves” (Jornal O Globo, 2000), uma manifestação cultural que unia o futebol e a música popular brasileira. O fato ocorrido com ´Touradas de Madrid´ se tornaria recorrente com outras músicas e, aos poucos as torcidas foram se apropriando de músicas populares, muitas tendo suas letras alteradas, para celebrar os jogos dos seus times. Com as torcidas organizadas, também surgiram os compositores de estádios, responsáveis pela amplificação das músicas inéditas e adaptações.

fiomaravilha
Disco de Jorge Ben: “Fio Maravilha”. Imagem: reprodução.

A música é uma realidade nos estádios de futebol. Entre o já distante ano de 1950 até os dias de hoje, quando a torcida do Flamengo canta o funk “acabou o caô (SIC) o Guerrero chegou!”, muitos sucessos foram parar nos estádios e muito da inspiração dos compositores saiu dos gramados, possibilitando sucessos populares de artistas celebrando feitos de atletas, clubes e seleção. Um caso clássico é o de Jorge Ben, hoje Jorge Benjor. Uma das suas muitas músicas sobre futebol foi ´Fio Maravilha´. Lançada originalmente no disco ´Bem´ e eternizada na voz de Maria Alcina, deu glória ao atacante rubro-negro João Batista de Sales. O lance inspirador aconteceu em 15 de janeiro de 1972 quando o Flamengo enfrentava o Benfica pelo Torneio Internacional de Verão, dentro do Maracanã. O ´anjo´ mineiro, vestindo camisa 14 em vermelho e preto, saiu do banco e, aos 33 minutos do segundo tempo, entrou com inspiração, muito amor e emoção para fazer uma jogada celestial em direção ao gol. Driblou dois zagueiros, deu um toque que enganou o goleiro e com explosão em gol só não entrou com bola e tudo porque teve humildade em gol. Um verdadeiro gol de placa que fez a magnética (e agradecida) torcida do Flamengo cantar na vitória por 1 a 0. Porém, a festa da música teve uma alteração de percurso quando a partida foi parar na justiça devido a uma má orientação feita ao jogador que resolveu cobrar pela homenagem. Dessa forma, o compositor alterou a letra da música para ´Filho Maravilha´. Um tiro que atingiu seu próprio pé e manchou sua despedida dos gramados para entrar na história da música brasileira.

As conquistas da seleção brasileira de futebol também são celebradas em verso e prosa na Música Popular Brasileira desde a gravação do choro de Pixinguinha, parceiro de Braguinha em ´Carinhoso`, intitulado ´1 a 0´. A música faz referência a uma partida da seleção brasileira contra a uruguaia realizada em 29 de maio de 1919, no estádio das Laranjeiras, pela a final da Copa Sul-Americana. O time pioneiro do Brasil empatava por 0 a 0, durante a prorrogação, até que, aos três minutos, o ponta direita Neco foi até a linha de fundo fez um cruzamento para Heitor, que chutou para o gol. Saporiti, goleiro uruguaio, deu rebote e Friedenreich, o primeiro craque brasileiro, marcou o gol da vitória. A primeira grande conquista do futebol sendo celebrada por um camisa 10 da MPB. O interessante é que, por muitos anos, a música ficou apenas no instrumental. Somente no ano de 1993, recebeu letra de Nelson Ângelo que a gravou juntamente com Chico Buarque.

Outros sucessos foram cantados de norte a sul do país como o hino do tricampeonato mundial ´Prá frente Brasil´, composta por Miguel Gustavo, originalmente eram “noventa milhões em ação, prá frente Brasil, salve a seleção…” Seguindo a trilha de Pelé, outros jogadores se aventuraram a cruzar a linha do meio de campo entre o futebol e a música. Um dos mais bem sucedidos foi o lateral esquerdo do Flamengo Leovegildo Júnior, ´o maestro´ que, com samba no pé em gramados espanhóis fez mais de 300 mil torcedores irem as lojas, em 1982, para comprar o compacto de ´Povo feliz´, conhecida popularmente como ´Voa Canarinho, Voa´. Ao invés de chuteira de ouro, o titular da seleção de Telê Santana ganhou disco de ouro. A música tornou-se tão importante no futebol que a FIFA – entidade máxima do futebol mundial, decidiu lançar, a partir dos anos 90, cds oficiais em cada uma das edições das Copas do Mundo.

Voltando ao rock e o futebol, uma das músicas mais executadas – e que está no cd oficial da Copa do Mundo de 1998, realizada na França, é ´Uma partida de Futebol´, composta pelo cruzeirense Samuel Rosa em parceria com Nando Reis, torcedor do São Paulo, em 1996. Como bola na trave não altera o placar e precisa de bola na rede para fazer o gol, o filósofo da arte futebolística Ronaldo de Assis Moreira, que já teve seu nome exaltado em música e é profundo conhecedor da relação futebol, mulher e rock’n’roll (em ritmo de pagode) foi procurado para falar do tema e deu o tom definitivo, como um gol de placa: “Futebol e música andam lado a lado”, diz o pentacampeão R10. O resto são muitas histórias a se descobrir para serem perpetuadas.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

TOBIAS, Luiz Murillo. Futebol e Música: uma relação de placa e com muitas histórias. Ludopédio, São Paulo, v. 78, n. 10, 2015.
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