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Futebol e narcotráfico IV: o caso do árbitro Álvaro Ortega e o campeonato que não terminou na Colômbia (1989)

Eduardo de Souza Gomes 19 de outubro de 2020

No texto de hoje, irei abordar mais um capítulo da história que relaciona o narcotráfico com o futebol na Colômbia, notadamente nos anos 1980 e início da década de 1990. Depois de passar pelas possíveis influências de Pablo Escobar em Medellín (texto 1), dos irmãos Rodríguez Orejuela em Cali (texto 2) e de Gonzalo Rodríguez Gacha em Bogotá (texto 3), buscarei problematizar alguns pontos que se relacionam com o Campeonato Colombiano de 1989, que não teve um término devido o assassinato do então árbitro Álvaro Ortega.

Primeiro, é válido entendermos o cenário exposto na ocasião: Em um dos quadrangulares semifinais do campeonato nacional daquele ano, América e Independiente de Medellín (equipe que, como explicitado no texto 1, contava com a torcida de Pablo Escobar) se enfrentaram em Cali, em jogo que terminou com vitória dos donos da casa pelo placar de 3×2. A torcida do time visitante, entretanto, questionou um gol anulado da agremiação, o que gerou grande revolta contra o árbitro assistente Álvaro Ortega.

Posteriormente, as equipes se encontraram na cidade de Medellín, em partida dessa vez válida pela fase final da competição. Estavam em um grupo que também contava com as equipes do Atlético Nacional e do Unión Magdalena. E mais uma vez, Álvaro Ortega estava escalado para fazer parte da equipe de arbitragem do jogo. Nessa partida, ocorrida pela quarta rodada da fase, América e Independiente empataram em 0x0. Porém, a problemática veio depois da partida: Álvaro Ortega foi assassinado, tendo esse caso sido apontado pela imprensa como uma vingança dos narcotraficantes de Medellín contra o árbitro, que teria errado a favor do América de Cali no jogo realizado anteriormente contra o Independiente.

Alvaro Ortega, árbitro assassinado em Medellín em 1989. Foto: Reprodução Twitter

A morte de Álvaro Ortega logo foi ligada tanto às ações do cartel de Medellín, como de apostadores. E com isso, Pablo Escobar acabou sendo um dos principais suspeitos de ter liderado o crime como mandante. Guillermo Ruiz Bonilla destaca, entretanto, que o cenário de perseguição aos árbitros de futebol já vinha se desenhando naquela década no país:

“Tudo começou no ano anterior (1988), com o enfrentamento entre o governo e a Dimayor durante o octogonal, quando o primeiro iniciou a exigir garantias para o espetáculo e jogo limpo no campo, depois do sequestro do árbitro antioquenho Armando Pérez. O juiz apareceu com uma mensagem na qual anunciava que se os árbitros mantivessem uma conduta parcial, alguns deles poderiam ser ‘borrados'” (RUIZ BONILLA, 2008, p. 223, tradução nossa).

É válido destacar, também, que 1989 foi um ano marcado pelo acirramento das perseguições e guerras ocasionadas entre Escobar e o governo colombiano. Na luta contra a política de extradição, em que o governo colombiano buscava impor para que os principais narcotraficantes presos cumprissem pena nos Estados Unidos, Escobar chegou a organizar posteriormente um acordo onde ficou detido em uma prisão própria, conhecida como La Catedral. Mesmo em cárcere, continuou ditando as regras do jogo do narcotráfico entre 1991 e 1992.

O América de Cali foi cinco vezes campeão colombiano entre 1982 e 1986, além de finalista da Libertadores por três anos seguidos (1985/86/87). Foto: reprodução Twitter

Foi também em 1989 que Gonzalo Rodríguez Gacha, “El Mexicano”, foi morto em confronto contra o grupo de busca organizado pelo governo colombiano. Era esse o contexto em torno do cenário da morte de Ortega, ocorrida em novembro de 1989. Sobre esse fato, explicita Galviz Ramírez que

Em 15 de novembro de 1989 o árbitro Álvaro Ortega, de 32 anos, oriundo de El Roble, povo do departamento de Bolívar, porém residente de Barranquilla, economista e tesoureiro do Colégio de Árbitros do Atlântico, foi assassinado acerca do Hotel Nutibara, no centro de Medellín […]. O crime contra Ortega obedeceu a um gol que anulou do Independiente Medellín como juiz central da anterior partida contra o América de Cali, quando esta equipe ganhava por 3×2. Um grupo de apostadores aproveitou a oportunidade que se brindou ao ser designado árbitro da mesma partida, em Medellín (2008, p. 134, tradução nossa).

O caso de Alvaro Ortega chocou todo o país e também os organizadores e dirigentes da División Mayor (Dimayor), entidade representativa que organiza o Campeonato Colombiano desde sua profissionalização em 1948. Como consequência e devido as pressões sofridas, o certame de 1989 foi interrompido pela Dimayor, ficando esse ano sem um clube campeão.

É válido destacar que a nível internacional, o futebol de clubes da Colômbia estava em evidência nesse mesmo ano. Depois de consecutivos vice-campeonatos do América de Cali, foi também em 1989 que o Atlético Nacional, acusado por muitos de receber investimentos de Pablo Escobar, consagrou-se campeão da Copa Libertadores da América, sendo até então o primeiro título de um clube colombiano na história da competição mais importante do continente (posteriormente, o Once Caldas em 2004 e o próprio Nacional em 2016, também foram campeões do torneio).

Pablo Escobar é acusado como um dos possíveis mandantes do assassinato de Ortega. Foto: Reprodução Twitter

Muitas dúvidas  rondam o caso do assassinato de Ortega. Teria sido mesmo Pablo Escobar e o cartel de Medellín os mandantes de mais esse crime? Ou um crime gerado por disputas entre apostadores? Até hoje, não há comprovações e respostas concretas para tal questão, por mais que todos os indícios levem para o primeiro caminho. É válido destacar, como já explicitei no texto 1 desta série de artigos sobre “Futebol e narcotráfico na Colômbia”, que poucas são as evidências materializadas em fontes que comprovem  um investimento mais direto de Escobar nos clubes de futebol da cidade de Medellín, diferente dos casos também já por mim destacados do América de Cali e do Millonarios.

Porém, ressalto que mesmo relativizando tais investimentos por parte de Escobar, é inegável que o pai do narcotráfico em Medellín mantinha certas relações com o mundo do futebol. Um exemplo notório foi o fato de ter estabelecido contato com diversos jogadores de futebol do país (dentre eles o famoso goleiro René Higuita), tal como se consolidado como um torcedor do Independiente de Medellín. Entretanto, seu filho, Juan Pablo Escobar, negou a participação do pai em atos de violência envolvendo o esporte:

“Nada disso é verdade. Já ouvi muito essas histórias. Meu pai não interviria no esporte dessa maneira, a esse extremo. Não utilizava sua violência para isso. É claro que ele foi responsável por centenas, milhares de assassinatos. Veja bem. Falar de um morto a mais não mudaria muito seu “currículo”, não se trata disso”.

Para a produção deste texto, busquei entrevistar Jesús Díaz, atual presidente da Asociación Colombiana de Árbitros de Fútbol (ACOLARFUT) e antigo amigo de Álvaro Ortega. O mesmo respondeu destacando que prefere não proferir declarações na atualidade sobre o tema. Também busquei contato com Hegel Ortega, jornalista colombiano e irmão de Álvaro Ortega, mas sem obter sucesso. É visível que falar sobre o tema, tal como muitas outras questões relacionadas ao narcotráfico na Colômbia, são até hoje tratadas com grande tabu na sociedade colombiana.

Porém, levando em consideração tais fatos, a hipótese que aqui levanto é que, mais que uma vingança pelo resultado negativo da equipe que Escobar torcia, o Independiente de Medellín, o assassinato de Ortega levantou uma outra questão central: a disputa entre os cartéis de Medellín e Cali pelo poder do narcotráfico nacional na Colômbia. Defendo que, considerando a possível influência do narcotráfico na consumação da morte de Ortega, tal crime teria ocorrido por motivos que vão muito além dos resultados dos jogos em si. No caso de Escobar, ver seu time sendo derrotado por uma equipe de Cali, onde estava seu cartel rival e sendo a equipe adversária liderada pelos irmãos Rodríguez Orejuela, pode ter sido um atenuante para que essa disputa do futebol se tornasse uma briga maior entre os cartéis.

Portanto, mesmo carecendo de maior pesquisa com fontes primárias e independente das relações diretas ou indiretas do cartel de Medellín com os clubes de futebol da cidade, o assassinato de Álvaro Ortega a cada dia mais se materializa como um crime que esteve muito mais ligado às disputas do narcotráfico daquele contexto, do que uma vingança relacionada simplesmente aos resultados de um jogo.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Edu Gomes

Historiador, professor e pesquisador do esporte. Doutor e mestre em História Comparada, com ênfase em História do Esporte, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com período sanduíche na Universidad de Antioquia (UdeA), Colômbia. Graduando em Educação Física (Claretiano). Atua como pesquisador do Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer (UFRJ). Professor na Educação Superior e Básica. Editor e colunista de esportes do Jornal Toda Palavra (Niterói/RJ), além de atuar como repórter e comentarista da Rádio Esporte Metropolitano. Autor dos livros intitulados "A invenção do profissionalismo no futebol: tensões e efeitos no Rio de Janeiro (1933-1941) e na Colômbia (1948-1954)" (Ed. Appris, 2019) e "El Dorado: os efeitos do profissionalismo no futebol colombiano (1948-1951)" (Ed. Multifoco, 2014). Organizador da obra "Olhares para a profissionalização do futebol: análises plurais" (Ed. Multifoco, 2015), além de outros trabalhos relacionados à História do Esporte na América Latina.

Como citar

GOMES, Eduardo de Souza. Futebol e narcotráfico IV: o caso do árbitro Álvaro Ortega e o campeonato que não terminou na Colômbia (1989). Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 43, 2020.
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