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Futebol e Narrativa – desafios para a Literatura

A relação entre Futebol e Literatura proporciona aos escritores um grande desafio: como traduzir em palavras o jogo em si, eminentemente da ordem do corpóreo? Não é por acaso que a maioria dos textos de ficção que lidam com o tema do futebol, na verdade, não versa sobre o jogo em si, mas sim sobre o extracampo, fora das quatro linhas, os bastidores do futebol. Uma narrativa sobre o jogo em si esbarraria numa questão crucial: a do tempo da narrativa (e não, necessariamente, do tempo do narrado).

A narrativa sobre uma jogada, por exemplo, efetuada de modo descritivo e detalhado, produziria, necessariamente, uma distensão temporal em relação ao tempo da cena narrada, pois dificilmente a duração da narração – pela linearidade da linguagem ao ser verbalizada, corresponderia ao momento fugaz de um lance que possa durar poucos segundos. Não é, pois, por acaso que a poesia oferece ao escritor opções muito apropriadas, pois pode subverter a linearidade da linguagem – por exemplo, através de figuras de linguagem como a elipse –, assim como um drible, como diria o cineasta e poeta Pier Paulo Pasolini, subverte a linearidade e, por que não dizer, a previsibilidade da jogada.

Não obstante tal fato, alguns escritores aceitam esse desafio e produzem textos que, por seu caráter singular, revelam-se como modos apropriados para se dar conta do próprio movimento de uma jogada ou mesmo da fluidez de uma partida de futebol.

Um desses escritores é Plínio Marcos, renomado dramaturgo, autor de famosas peças de teatro como Dois perdidos numa noite suja e Navalha na carne, censuradas durante o período da ditadura civil-militar. Em 1977, Plínio Marcos publicou o conto “O suborno”, cujo tema central é o futebol. A singularidade desse conto se situa em sua narrativa, pois esta se estrutura como se fosse a transmissão radiofônica de uma partida de futebol, em que predomina o narrador em 3ª pessoa, extradiegético e onisciente. Vejamos o início do conto:

Zero a zero, zero a zero, zero a zero, aos trinta, aos trinta e cinco, aos quarenta, aos quarenta da fase final, zero a zero aos quarenta minutos da fase final de um jogo decisão de título, decisão de título da segunda divisão, da maldita segunda divisão, zero a zero, zero a zero, zero a zero aos quarenta minutos, cinco para acabar, e a bola rolando, rolando, rolando e atrás dela músculos, nervos, sangue de vinte e dois homens, de vinte e dois homens desesperados, jogando o jogo da vida ou da morte, vinte e dois homens desesperados, jogando o jogo da vida ou da morte, vinte e dois homens rolando suas vidas atrás da bola, da bola miúda da segunda divisão, da segunda divisão do futebol do absurdo, vinte e dois absurdos profissionais dançam uma estranha dança que milhares de olhos seguem atentamente a cada lance, a cada lance, a cada lance.[1]

Como o próprio título indica, o conto transmite uma imagem do futebol envolta em falcatruas e violências, tema, aliás, mais do que atual. No texto, destacam-se três personagens: o jogador veterano, o árbitro corrupto e o agente do suborno, nas palavras do narrador, “o repelente abutre imaginador de repelências”[2]. O ápice da tensão é atingido com a marcação de um pênalti aos 40 minutos do segundo tempo: “Pênalti, pênalti, pênalti. Tiro livre direto de pequena distância, penalidade máxima. Pênalti, pênalti, pênalti. O juiz apitou, apitou, apitou e correu pra área apontando a marca do pênalti.”[3].

Todavia, o jogador veterano, assim como, supostamente, o árbitro, havia sido corrompido pelo agente do suborno. Um lance que poderia significar a glória, mesmo em final de carreira, e mesmo se tratando de uma disputa de título da segunda divisão, transforma-se, na narração, uma grande decepção. O narrador-locutor, assim, reproduz toda a tensão que envolve os segundos que antecedem à batida do pênalti, prestes a ser cobrado pelo jogador veterano, tenso como o goleiro e a torcida atrás da meta, do outro lado do alambrado:

[…] Ele olha a bola, a bola miúda da segunda divisão, a bola que para ele já foi a grande bola de craque, a bola dos grandes estádios, a bola dos grandes contratos, a bola da seleção, e agora está ali miúda, miudinha, rolando quadrada, quente, a esmo, e ele olha a bola, a bola, a bola e a trave, a trave, a meta, a meta, e embaixo da trave o goleiro, o goleiro pálido de espanto, atrás do goleiro o alambrado, a torcida pálida de espanto, […]. E ele vê, vê, vê tudo e espera a hora de chutar. [4]

Portanto, Plínio Marcos opta por uma narrativa detalhada e rápida que transforma o leitor praticamente em “ouvinte” de uma transmissão radiofônica, com toda a sua tensão, em que a visualização cede lugar à imaginação. Lidas em voz alta, essas passagens do conto de Plínio Marcos nos fazem reproduzir, ficcionalmente, o modo frenético como um locutor esportivo narra os lances da partida em uma transmissão de rádio.

Todavia, esta não é, obviamente, a única possibilidade de se lidar, ficcionalmente, com o jogo em si. Um ótimo exemplo disso é o romance O drible, do escritor e jornalista Sérgio Rodrigues, publicado em 2013.

Por assim dizer, Sérgio Rodrigues torna o que poderia ser um entrave na narrativa justamente a força de seu texto. Se Plínio Marcos lança mão de uma narrativa que se assemelha à transmissão radiofônica de uma partida de futebol, Sérgio Rodrigues, logo no início do romance, opta pelo imagético do videoteipe, e por uma cena em especial: o quase-gol de Pelé na semifinal da Copa de 1970, disputada entre as seleções do Brasil e do Uruguai em 17 de junho daquele ano, numa junção entre micro e macro-história. Num drible de corpo, Pelé e a bola, cada um por um lado, ultrapassaram o goleiro uruguaio e, batendo cruzado, a bola, caprichosamente, não buscou as redes da Celeste olímpica, saindo pela linha de fundo (note-se que, nesta descrição, exemplifica-se, exatamente, a quase inevitabilidade da distensão temporal frente à plasticidade do lance e de todo movimento corpóreo de Pelé e do goleiro Mazurkiewicz, sem falar do zagueiro Ancheta que procurou, quase em cima da linha, evitar o pior –, para os uruguaios, é claro!).

Como captar o tempo da narrativa de um jogo de futebol? Foto: Jannes Glas/Unsplash.

No texto da “Introdução” do romance O drible, há toda uma digressão sobre o tempo e uma tentativa de se apreender visualmente o referido lance do quase-gol de Pelé como momento sublime que culmina com uma frustração pelo gol perdido. A distância temporal de 26 anos daquela partida, em 1996, leva a personagem Murilo, um jornalista esportivo que presenciara a partida no Estádio Jalisco, em Guadalajara, a dissecar o lance inusitado com o auxílio de um aparelho videocassete, conforme a seguinte passagem do texto:

A TV é uma velha trambolhuda de tubo de imagem.

O lance não deve ter mais de dez segundos, mas com as interrupções de Murilo enche minutos inteiros enquanto ele narra sem pressa, play, pause, rew, play, o que na época foi narrado com assombro.

O que você vê primeiro é uma imagem parada que logo identifica como a Copa de 1970 pelo short da seleção brasileira, que é de um azul mais claro que o habitual, além de escandalosamente curto para os padrões de hoje. [5]

Assim, o lance fugaz é “anatomicamente” dissecado por Murilo, desde o nascedouro da jogada até sua conclusão. Ao contrário da narrativa no conto “O suborno”, de Plínio Marcos, aqui, a distensão temporal não é, por assim dizer, minimizada, mas sim ampliada, e tal ampliação é, ficcionalmente, possível através de avanços, retrocessos e congelamentos da imagem ao se operar o videocassete, narrada pela personagem Murilo Neto, filho de Murilo, e um dos narradores desse engenhoso romance:

[…] Tostão, cabeçudo inconfundível, número 9 às costas, conduz a bola observado a certa distância por um sujeito de camisa azul-clara e calção preto. Murilo solta a imagem por três segundos, Tostão conduz a bola, e quando volta a congelá-la Pelé aponta no canto superior direito do quadro e você sente um tranco na barriga como se a velocidade do mundo desse de repente um arranque, alguém ligando um acelerador de partículas. O velho segue na sua narração caseira, aí então, diz, olha só, nós vemos aquilo que o Tostão também acaba de ver, Pelé se projetando da meia-direita feito um bicho, uma pantera com sangue de guepardo.[6]

Noutra passagem do romance, temos não só a distensão temporal do lance, mas também a própria distorção da imagem na tentativa de se segmentar o tempo em busca dos detalhes para uma cena inusitada, um “gol de placa” que não foi:

Na TV, enquanto os dois borrões lentamente se fundem, a bola, um descalabro, passa por eles. Como se eles fossem porosos, o espírito esquecido de que é carne no ato mesmo, antecipando o videoteipe.[7]

Portanto, o tempo é a categoria fundamental na produção de narrativas que procuram dar conta do jogo em si, variando desde a narrativa rápida até aquela que acentua a distensão temporal, formas de traduzir em palavras o que é da ordem do corpo em movimento.


Referência

MARCOS, Plínio. O suborno (1977). In: COSTA, Flávio Moreira da (org.). 22 contistas em campo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, p. 22-26.

RODRIGUES, Sérgio. O drible. 3. reimp., São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

Notas

[1] MARCOS, Plínio. O suborno (1977). In: COSTA, Flávio Moreira da (org.). 22 contistas em campo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, p. 22.

[2] Ibid., p. 24.

[3] Ibid., p. 23.

[4] Ibid., p. 25-26.

[5] RODRIGUES, Sérgio. O drible. 3. reimp., São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 9.

[6] Ibid., p. 9.

[7] Ibid., p. 11-12.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Elcio Loureiro Cornelsen

Membro Pesquisador do FULIA - Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, da UFMG.

Como citar

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Futebol e Narrativa – desafios para a Literatura. Ludopédio, São Paulo, v. 114, n. 16, 2018.
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