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Futebol em tempos de pandemia – “Por que a pressa?”

Victor de Leonardo Figols 19 de junho de 2020

Acho que já está claro para todo mundo o que significa uma pandemia global de um vírus desconhecido e mortal. Bom, quero dizer, para quase todo mundo, já que para Bolsonaro e seus seguidores, a crise do coronavírus é só uma “gripezinha”. Mas com o receio de que um desavisado chegue aqui por acaso, vou deixar claro: é um surto mundial de um vírus que se espalha rapidamente; a humanidade tem pouco conhecimento sobre o vírus; as pessoas não têm imunidade e não existe um remédio, muito menos uma vacina. E, claro, um vírus que coloca milhares de pessoas em leitos de UTI com insuficiência respiratória e que mata!

A única solução que conhecemos, e que se mostrou eficaz em vários lugares do mundo, é o isolamento social, a quarentena e, no limite, o lockdown. Isso evita o contágio em massa, evita que um número absurdo de pessoas fique doente ao mesmo tempo e evita o colapso do sistema de saúde. E, no caso brasileiro, evita o colapso do SUS, que já tem uma demanda altíssima normalmente. Aliás, se não fosse o SUS – um sistema de saúde pública universal e gratuita –, os números de vítimas do Covid-19 seriam muito mais assustadores do que estamos vendo. Hoje, o Brasil é “pior país na pandemia neste momento, com aquase 1 milhão de infectados e um total de 47.869 mortes.

Diante disso, qualquer argumento que tente diminuir os efeitos do vírus ou a eficácia da quarentena é simples e puramente malabarismo retórico. No caso do Brasil é discurso genocida e eugênico. A falta de medidas para combater o coronavírus fez do Brasil o epicentro da epidemia mundial. Dito isso, eu poderia encerrar o texto aqui, pois os argumentos contra volta do futebol estão dados. Todavia, mesmo com esse cenário de mais de mil mortes diárias, ainda existe gente defendendo a volta do futebol.

O presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, por exemplo, é um desses que defende a volta imediata do futebol. Inclusive, a equipe principal voltou a treinar, mesmo sem o aval da prefeitura do Rio de Janeiro. 

No último dia 9 de junho, no programa Bem Amigos, da SporTV, Walter Casagrande questionou o presidente do Flamengo sobre o retorno dos campeonatos: “Por que a pressa?). Antes de fazer a pergunta certeira, Casagrande expõe o cenário atual, no qual não temos um Ministro da Saúde e onde um clube defende a volta dos jogos pensando apenas nele: “o futebol brasileiro não é só o Flamengo”. A pergunta de Casagrande é precisa, tão precisa que Landim não conseguiu sequer articular uma resposta minimamente convincente. É óbvio que a resposta de Landim não poderia ser pública, para ele – e tantos outros – a pressa pela volta do futebol é porque os clubes estão perdendo dinheiro. A pressa é porque o futebol – enquanto negócio – está ameaçado.

https://www.facebook.com/watch/?v=1427762277413310

Ainda que de maneira não expressa, mas de olho no cenário europeu, a volta do futebol brasileiros está baseada nas experiências de outros países. O futebol já voltou na Alemanha (no dia 18 de maio), na Inglaterra (18 de junho), na Espanha (11 de junho) e na Itália (12 de junho), sendo que os dois últimos países chegaram a ser considerados o epicentro mundial da pandemia de coronavírus, título que o Brasil carrega desde o final de maio.

Apesar dos problemas enfrentados por esses países, a forma como conduziram o combate à pandemia é complemente diferente do caso brasileiro. As medidas alemãs, por exemplo, vêm sendo apontadas como as mais eficazes no combate à pandemia. O primeiro caso registrado em solo alemão foi em 28 de janeiro. A política adotada foi o isolamento social, seguido de uma testagem em massa, até chegar em uma quarentena mais rígida – quando o país estava no período mais dramático da pandemia. Além disso, os alemães buscaram identificar, isolar e mapear toda a rede contatos de pessoas com suspeita de Covid-19. O futebol só voltou em solo alemão no dia 18 de maio, quando os números de infectados diários eram baixíssimos e as mortes diárias estavam próximas de zero.

Diante do receio de que a volta do esporte poderia expor as pessoas ligadas ao futebol ao risco de se contaminarem, foi montada toda uma infraestrutura para que ninguém – jogadores, comissão técnica, árbitros, repórteres e equipe de televisão – fosse contaminado. Além disso, existe todo um esquema de testagem dos profissionais envolvidos, higienização dos locais de treino e jogo, e até mesmo restrição dos jogadores de se reunirem para além do seu círculo familiar. E, obviamente, os jogos estão sendo realizados sem torcida no estádio.

É evidente que o Brasil não é a Alemanha e que nem de longe estamos adotando uma postura semelhante no combate ao vírus. Por aqui, a gestão do coronavírus é uma questão política, ou melhor, necropolítica, discurso de que menospreza a vida e tem a morte como política de Estado. O presidente da República, com todo o seu anticientificismo e negacionismo, diminuiu a crise do coronavírus, desrespeitou todas as recomendações da OMS e de especialistas. O país não faz nem a metade dos testes recomendados e segue fazendo uma quarentena bem meia boca. O Brasil já teve dois Ministros da Saúde em um intervalo de menos de um mês e hoje tem um interino. Deixou os cidadãos à própria sorte e, diante disso, os governadores estaduais (e prefeitos) assumiram de maneira mais enérgica a gestão da crise. É justamente por essa condução criminosa da crise por parte do Governo Federal que, há pelo menos um mês, estamos vivendo o pico da epidemia.

Além disso, Bolsonaro ainda conseguiu politizar e polarizar a pandemia, justamente porque o bolsonarismo só sobrevive nessa lógica. Ao colocar aqueles que defendem a quarentena como sendo de “esquerda” e os que defendem a reabertura como sendo de “direita”. O presidente ainda conseguiu politizar o uso da cloroquina, um remédio comprovadamente ineficaz no combate à Covid-19.

O discurso de quem defende a volta do futebol encaixa-se perfeitamente no discurso da necropolítica do governo federal. Com a parada do futebol, os clubes deixaram de receber receitas, sejam elas de televisão ou de bilheteria (pensando as principais fontes de receitas dos clubes, para além dos patrocinadores). Por exemplo, em 2019, a receita de televisão do Flamengo representava 24% do total e a receita de bilheteria, 16%, em um ano que o clube foi multicampeão. Sem os jogos de futebol, o clube não está arrecadando nem com televisão, nem com bilheteria. Outra receita significativa travada devido à crise do coronavírus foi com as transações de jogadores. Assim, resta apenas a porcentagem dos patrocinadores, sócios e entradas menos significativas (em termos de valores).

A pandemia impõe o isolamento social, e isso implica que os jogos sejam realizados sem a presença das torcidas. Nesse ponto, o clube não pode exigir a volta do futebol com torcidas; assim, a pressão cai sobre a televisão, uma fonte de renda importante para os clubes. O futebol precisa voltar, pelo menos na televisão, para que os clubes mantenham as suas receitas.

Quem é a favor do futebol voltar? E quem é contra do futebol voltar? Autor: Francisco Nascimento.

Mesmo nos outros lugares do mundo onde o futebol voltou, o que voltou não foi o futebol, foi o negócio. O esporte sem a torcida é apenas um produto genérico para preencher a grade televisiva. E esse futebol-negócio está cagando para os torcedores, está cagando paras as vidas das pessoas, o que importa é colocar o espetáculo na tela da televisão. Pedir a volta do futebol agora é um desrespeito imenso com as vítimas do Covid-19, além de ser de uma grande irresponsabilidade. Quem pede a volta do futebol está visando somente o lucro e nada mais, porque o capitalismo é isso, perverso, inescrupulosos, imoral e irracional.

Diante desse cenário catastrófico que vivemos, no qual valas comuns são abertas para enterrar as vítimas do Covid-19, o futebol não tem importância. O futebol não tem pressa quando quase 48 mil pessoas já morreram e outras milhares estão internadas. A pressa agora é em salvar vidas, dar dignidade às vítimas, dar condições necessárias para que as pessoas sejam tratadas, dar condições – como uma renda básica – para que o maior número possível de pessoas fique em suas casas com o básico de higiene garantido. A pressa, agora, é controlar a pandemia.


No dia 18 de junho, o Flamengo entrou em campo pelo Campeonato Carioca para enfrentar o Bangu. Enquanto a bola rolava com as arquibancadas vazias, ao lado do Maracanã o hospital de campanha estava lotado. O placar: 274 mortes por Covid-19 nas últimas 24 horas no Estado do Rio de Janeiro.

A volta do Campeonato Carioca – Autor: Ribs
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Victor de Leonardo Figols

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) (2022). É Mestre em História (2016) pela Universidade Federal de São Paulo - Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas (EFLCH) - UNIFESP Campus Guarulhos. Possui Licenciatura (2014) e Bacharel em História (2013) pela mesma instituição. Estudou as dimensões sociais e políticas do FC Barcelona durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha. No mestrado estudou o processo de globalização do futebol espanhol nos anos 1990 e as particularidades regionais presentes no FC Barcelona. No doutorado estudou a globalização do futebol espanhol entre os anos 1970 a 2000. A pesquisa de doutorado foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Trabalha com temas de História Contemporânea, com foco nas questões nacionais e na globalização, tendo o futebol como elemento central em seus estudos. É membro do Grupo de Estudos sobre Futebol dos Estudantes da Unifesp (GEFE). Escreve a coluna O Campo no site História da Ditadura (www.historiadaditadura.com.br). E também é editor e colunista do Ludopédio.

Como citar

FIGOLS, Victor de Leonardo. Futebol em tempos de pandemia – “Por que a pressa?”. Ludopédio, São Paulo, v. 132, n. 45, 2020.
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