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Futebol e poesia no Brasil, nas primeiras décadas do século XX

A origem da relação entre Futebol e Poesia no Brasil remonta aos primórdios do esporte bretão no país. Desde as primeiras décadas do século XX, registrou-se um crescente interesse pelo futebol no âmbito das chamadas “belas letras”. Tal crescimento, aliás, acompanhou o próprio fenômeno de popularização daquele que se tornaria uma das colunas mestras da cultura brasileira.

Um primeiro poema de que se tem conhecimento data de 1916, no tempo em que o futebol ainda era chamado de football, em que o campo era o ground, o goleiro era o goalkeeper, e a partida era chamada de match. Trata-se do poema “Match de foot-ball” (1916), de Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, mais conhecido como Apporelly e pelo falso título de nobreza como Barão de Itararé, sempre com uma marca de humor, conforme atestam os versos das duas primeiras estrofes:

O dia estava lindo. Havia gente em penca.

O juiz apitou e começou a encrenca.

 

Nossa senhora! Mas que charivari!

Tanta correria assim eu nunca vi. (APPORELLY, 1916, p. 112).

O jornalista satírico e político Apparício Torelly, autodenominado Barão de Itararé, em 1937. Foto: Wikipedia.

O jornalista e escritor Apporelly foi um dos pioneiros do humorismo político na imprensa brasileira. E, como se vê, aquele football que, cada vez mais, adentrava o cenário cultural e esportivo nas grandes capitais do país, também não foi poupado por seu humor com toque de ironia.

Composto por 16 versos distribuídos em oito dísticos, ou seja, em oito estrofes contendo dois versos cada uma, o poema “Match de foot-ball” foi publicado no volume de poesias intitulado Pontas de cigarros (1916) e apresenta um eu-lírico que expõe toda sua crítica ao nobre esporte bretão ainda em sua fase amadora, onde predominava o jargão pautado por anglicismos. Os versos que se seguem apresentam o “Match de foot-ball” como um evento em que impera a confusão:

Um jogador, feroz, deu com o pé na bola,

Que foi bater, bem certeira, na cartola

 

Dum cidadão que não contava com essa

De ver amassada a tampa da… cabeça… (APPORELLY, 1916, p. 112).

Assim, o campo de jogo e seu entorno ganham contornos no poema de Aporelly, em versos que despertam o riso, como aqueles que apresentam a assistência fora do ground:

E a louca multidão, bruta e malcriada,

Vaiou a um bom chefe de família honrada.

 

Outro caiu por terra. Deu-lhe vaia o povo.

Levantou-se fulo, mas caiu de novo. (APPORELLY, 1916, p. 112).

Para o eu lírico, além da confusão, o “match de foot-ball” não reservava fortes emoções, conforme indicam os últimos versos do poema:

Parecia aquilo, em meu pensar profundo.

Vinte e duas fúrias, perseguindo o mundo.

 

E, depois de hora e meia de combate, o juiz apitou.

O jôgo estava empate. (APPORELLY, 1916, p. 112).

Anna Amélia. Foto: Acervo pessoal.

Outro exemplo da profícua relação entre Futebol e Poesia no Brasil, nas primeiras décadas do século XX, foi registrado com muito lirismo pela poetisa e tradutora Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça, que publicou em 1922, na antologia intitulada Alma, o soneto “O salto”. Trata-se de uma autêntica ode a seu futuro esposo, Marcos Carneiro de Mendonça, lendário goleiro do Fluminense Football Club e primeiro arqueiro da história da Seleção Brasileira nos anos 1910 e 1920. Seguindo a estrutura clássica do soneto, com 14 versos distribuídos em quatro estrofes, sendo dois quartetos iniciais e dois tercetos finais, “O salto” expressa um enobrecimento do football, como se esta modalidade, que cada vez mais se popularizava, recebesse uma espécie de “pedigree” da elite fluminense:

Ao ver-te hoje saltar para um torneio atlético,

Sereno, forte, audaz como um vulto da Ilíada,

Todo o meu ser vibrou num ímpeto frenético,

Como diante de um grego, herói de uma Olimpíada. (MENDONÇA, 1922, p. 109).

Para tal enobrecimento, nota-se que a alusão à Grécia antiga é recorrente, com referência à Ilíada e à Olimpíada como berço do esporte na tradição ocidental, uma estratégia discursiva que, aliás, já era muito difundida por Coelho Netto em suas crônicas de futebol na década de 1910, um dos expoentes do Parnasianismo, membro da Academia Brasileira de Letras e figura proeminente do Fluminense Football Club. No poema “O salto”, o eu-lírico se emociona com o salto daquele ao qual a ode é dedicada. O corpo em movimento de salto em um “torneio atlético” expressa-se por elementos eufóricos: serenidade, força e audácia. E o atleta decantado nos versos pelo eu-lírico é comparado a “um vulto da Ilíada” e a um “herói de uma Olimpíada”. E essa estratégia discursiva prossegue na segunda estrofe do poema “O salto”:

Estremeci fitando êsse teu porte estético.

Como diante de Apolo estremecera a dríada.

— Era um conjunto de arte esplendoroso e poético

— Enrêdo e inspiração para uma helioconíada. (MENDONÇA, 1922, p. 109).

Mais uma vez, o atleta é enaltecido como um verdadeiro deus, um Apolo venerado pela ninfa, fonte de inspiração para uma competição em homenagem ao deus Hélicon. Dessa forma, o atleta (no caso, o goleiro) surge como uma figura mítica, conforme evidenciam as duas estrofes finais:

No cenário sem par de um pálido crepúsculo

— Tu te lançaste no ar, vibrando em cada músculo

Por entre as aclamações da massa entusiástica.

 

— Como um deus a baixar o Olimpo, airoso e lépido

Tocaste o solo, enfim, glorioso, ardente, intrépido,

Belo na perfeição da grega e antiga plástica. (MENDONÇA, 1922, p. 109).

É interessante notar que o desafio de representar o corpo em movimento é assumido no poema a partir de uma associação à plasticidade de estátuas gregas, alçando, assim, ao status de arte, uma escultura esculpida com palavras repletas de devoção e enaltecimento do corpo atlético: “glorioso, ardente, intrépido, / Belo na perfeição”.

Oswald de Andrade. Foto: Wikipedia.

Por fim, apresentaremos o terceiro e último exemplo da presença do tema do futebol na poesia brasileira, nas primeiras décadas do século XX. O futebol, que já se encontrava em franca popularização na década de 1920, não passaria despercebido pelo Movimento Modernista. Um de seus principais expoentes, o escritor Oswald de Andrade publicou em 1924 o romance Memórias sentimentais de João Miramar, no qual incluiu um poema intitulado “Bungalow das rosas e dos pontapés”, no qual o futebol aparece como parte de um cenário urbano:

Bondes gols

Aleguais

Noctâmbulos de matches campeões

E poeira

Com vesperais

Desenvoltas tennis girls

No Paulistano

Paso doble. (ANDRADE, 1924, p. 123).

De acordo com o historiador Bernardo Borges Buarque de Hollanda,

Oswald de Andrade registra com seus versos livres, em forma de instantâneos fotográficos, a mesma presença do futebol na cidade moderna de São Paulo. Ao lado dos bondes eletrificados, elemento simbólico do progresso […], bem como da eletricidade de modo geral, que possibilita as primeiras partidas noturnas na cidade, em princípio dos anos 1920, os gols integram-se a esse novo tempo de agitação e frenesi que contagia as grandes metrópoles sob o influxo da modernização. (HOLLANDA, 2015, p. 26-27).

O poema “Bungalow das rosas e dos pontapés” é composto por uma única estrofe que contém 8 versos livres, ou seja, com métricas variáveis. Em seu segundo verso, composto apenas pela palavra “Aleguais”, temos uma gíria do jargão do futebol nos anos 1920: de acordo com o dicionário Aulete, tal expressão teria sido um dos primeiros “cantos de guerra” da torcida brasileira, que teria origem no enunciado “Allez! Go! Hack!”, transformado em “Aleguá-guá-guá”. E segundo o historiador Bernardo Borges Buarque de Holanda,

[a] palavra “Aleguais”, por exemplo, era um grito usual no período, abrasileiramento de uma expressão francesa. Com ela, o torcedor paulistano tradicionalmente comemorava o gol de sua equipe. A bem dizer, tratava-se de uma interjeição similar a outra bem comum á época, ‘hip, hip, hurrah’, dos torcedores no Rio de Janeiro. (HOLLANDA, 2015, p. 27).

No poema, há algo também de bailado relacionado com o futebol, através da referência ao “Paso doble” no último verso, estilo musical de origem espanhola, do século XVI, que se popularizara na década de 1920. Num mesmo espaço, estariam as “rosas” (“Desenvoltas tennis girls”) e os “pontapés” do futebol a levantar “poeira”.

Com a franca popularização do futebol brasileiro a partir das décadas de 1920 e de 1930, mais poetas se dedicariam a tratá-lo com todo lirismo em seus versos, colaborando para que o futebol, como fenômeno cultural, também adentrasse o âmbito das “belas letras”.

Referências Bibliográficas

ANDRADE, Oswald de. Bungalow das rosas e dos pontapés (1024). In: PEDROSA, Milton (Org.). Gol de letra: o futebol na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Gol, 1967, p. 123.

APPORELLY. Match de foot-ball (1916). In: PEDROSA, Milton (Org.). Gol de letra: o futebol na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Gol, 1967, p. 112.

AULETE. Aleguá (verbete). Acesso em: 9 jul. 2020.

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. “Ecos da Semana de Arte Moderna? A recepção ao futebol em São Paulo e o movimento modernista nas décadas de 1920 e 1930”. In: CORNELSEN, Elcio; AUGUSTIN, Günther; SILVA, Silvio Ricardo da (Orgs.). Futebol, linguagem, artes, cultura e lazer. Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2015, p. 17-26.

MENDONÇA, Anna Amélia de Queiroz Carneiro de. O salto (1922). In: PEDROSA, Milton (Org.). Gol de letra: o futebol na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Gol, 1967, p. 109.


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Elcio Loureiro Cornelsen

Membro Pesquisador do FULIA - Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, da UFMG.

Como citar

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Futebol e poesia no Brasil, nas primeiras décadas do século XX. Ludopédio, São Paulo, v. 135, n. 34, 2020.
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