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Futebol e Política: O futebol resiste!

Victor de Leonardo Figols 4 de maio de 2016

Apesar de boa parte da esquerda fazer uma leitura equivocada sobre o fenômeno de massas que era o futebol no começo do século XX, acreditando que o futebol era o “ópio do povo”, há inúmeros exemplos de clubes, de jogadores e de torcidas que usaram o futebol para resistir a governos ditatoriais, ou que usaram o futebol como ferramenta de luta.

Se por um lado, na Espanha, a ditadura de Francisco Franco criou mecanismos para controlar o futebol, do outro os clubes se organizaram para resistir aos anseios do ditador de tomar a jogo para si. Dois clubes em especial representaram uma forte oposição à ditadura franquista, o Athletic Club de Bilbao e o FC Barcelona. Enquanto o Real Madrid se aproximou, e se beneficiou do regime, o Athletic de Bilbao e Barcelona atuaram como opositores ao regime, e fizeram isso por meio do futebol.

Em linhas gerias a oposição basca ao franquismo foi mais forte do que a catalã, isso se levarmos em consideração a organização e forma de atuação dos movimentos regionalistas. No País Basco, a organização do Euskadi Ta Askatasuna (ETA), um grupo radical de extrema-esquerda que defendia a libertação do País Basco, atuou completamente diferente dos catalães, que preferiram uma via menos radical e violenta. Mas no contexto do futebol, a ação dos dois clubes foi semelhante, Athletic de Bilbao e Barcelona atuaram como catalizadores do regionalismo. Assim, a resistência desses dois clubes veio por meio do fortalecimento do discurso nacionalista separatista. Quanto mais Franco tentava sufocar as manifestações regionalistas, sobretudo por meio do controle do futebol, mais os clubes se apresentavam como representantes da sua região.

Eram nos estádios que as línguas basca e catalã podiam ser faladas, tanto o San Mamés, quanto o Camp Nou se tornaram grandes centros onde torcedores falavam euskera ou catalão sem serem coibidos ou perseguidos pelo regime. Dentro de campo, a conquista da Copa del Generalísimo era mais do que um título, era um conquista simbólica. Vale lembrar que a Copa significava uma vitória, ainda que parcial, de suas lutas separatistas, uma vez que o general Francisco Franco entregava Taça de Campeão aos clubes. Durante o período franquista, os maiores campeões da Copa foram Athletic de Bilbao e Barcelona, respectivamente. Outro embate simbólico era em jogos que envolviam os dois clubes regionais contra o clube do regime, o Real Madrid.

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San Mamés Barria, estádio do Athletic Club. Foto: Breiniak4534.

Passando pelo contexto italiano temos o caso da AS Roma. Em 1927, Mussolini lançou um projeto de criar um clube que reunisse todos os valores fascista, um clube do regime à serviço do regime. Desde a escolha do nome, passando pelas cores do uniforme e pelo escudo, tudo foi pensado para ser o exemplo fascista no futebol. Na criação da Roma, Mussolini mobilizou símbolos mitológicos – a loba amamentando os irmãos Rômulo e Remo – e símbolos fascistas, como por exemplo, a ideia do fascio, da união. A cidade de Roma possuía quatro clubes de extrema popularidade, mas futebolisticamente, eram inferiores aos times do norte da Itália, região que historicamente sempre foi mais rica que o sul. Nesse sentido, a proposta do Duce era unir os quatro clubes e transformá-los no clube do regime, entretanto, um desses clubes recusou a proposta, a Società Sportiva Lazio. Década depois, a Roma deixou de ser um clube fascista, e passou a ser vista como um clube de esquerda, graças a organização de seus torcedores, enquanto que a Lazio passou a ser vista como um reduto de fascistas. Aqui cabe uma ressalva, os três clubes que se uniram para formar a Roma eram clubes de origem operária e a suas torcidas eram formadas por trabalhadores urbanos, uma camada social que conhecia muito bem os ideais de esquerda. Do outro lado, a Lazio era um clube elitista, formado sobre tudo pela classe média romana, um setor que dialogava e compactuava com o regime de Mussolini. A guinada à esquerda da torcida da Roma foi tão natural quanto à postura conservadores que os torcedores da Lazio assumiram.

Na Alemanha Nazista não houve um clube que resistiu ao regime, mas ainda assim, o time da padaria resistiu ao Hitler e humilhou a força área alemã, a Luftwaffe, com uma sonora goleada. Em 1941, após a invasão nazista à Kiev, diversos jogadores dos clubes da capital ucraniana foram presos e obrigados a trabalharem para os nazistas. Um dono de uma padaria, e amante do futebol, conseguiu reunir vários jogadores, tanto do Dínamo de Kiev quanto do Lokomotiv de Kiev, as duas maiores equipes ucranianas daquela época, em sua pequena fábrica de pães. O dono da padaria, para evitar perseguição nazista, possuía uma relação amistosa com o alto escalão do exército nazista que ocupava Kiev, e conseguiu convencer os nazistas a organizarem um campeonato de futebol entre os times do exercito alemão e o seu time de padeiros, o Start FC.

O time da padaria ganhou todos os jogos do campeonato de goleada. Rapidamente, a população de Kiev adotou o Start como um símbolo da resistência à invasão alemã. Um dos jogos mais fáceis daquele campeonato foi contra o Flakelf, o time da Luftwaffe. O 5×1 no placar foi suficiente para irritar os comandantes nazistas, que pediram que o jogo fosse realizado novamente. Antes mesmo de começar a segunda partida, os jogadores do Start foram acuados pelo alto comando nazista, que visitou o vestiário do Start, deixando claro deveria perder o jogo. Em campo, o Flakelf abusou da violência contra os jogadores do Start, enquanto o árbitro não marcava faltas contra o time alemão. No intervalo, mais uma visita dos nazistas. Mesmo sofrendo com a violência física e psicológica, o time da padaria venceu mais uma vez o Flakelf, dessa vez por 5 a 3. Após o jogo, alguns membros da SS (Schutzstaffel) começaram a perseguir os jogadores do Start. E em poucos dias, a maioria estava em campos de concentração, enquanto outros foram presos e torturados. Todos os jogadores daquele time da padaria tiveram um fim trágico. Por outro lado, aquele time é lembrado até hoje como um símbolo de resistência ao regime nazista.

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Cartaz do jogo de revanche.

No Brasil, dentro do contexto da Ditadura Militar surgiu a torcida Gaviões da Fiel, em 1969. Os torcedores se reuniram para questionar a péssima administração do presidente Wadih Helu, um político filiado ao partido que dava sustentação política ao governo militar, o ARENA, e que fazia uso político do clube para se eleger como deputado estadual. No final da década de 1970, a Gaviões da Fiel engrossou, dentro e fora dos estádios, a campanha “Anistia ampla, geral e irrestrita”. Também, nesse mesmo período, entre 1982 e 1984 tivemos a Democracia Corintiana, um dos movimentos mais conhecidos de resistência no futebol brasileiro. Idealizado pelos jogadores Sócrates, Wladimir, Casagrande e Zenon, o movimento tinha como objetivo discutir questões internas do clube, como por exemplo, a concentração e os treinamentos. Entretanto, o movimento ganhou forma e os jogadores se organizaram em uma autogestão na qual todas as questões relativas ao time eram discutidas e votadas pelos próprios jogadores e funcionários do clube, tudo era decidido democraticamente e de forma igualitária. O movimento defendia a liberdade de expressão, sobretudo, política. O futebol passou a ser usado para questionar a liberdade dos atletas. Em 1984, Sócrates e a Democracia Corintiana se juntaram a Gaviões da Fiel para gritar por “Diretas Já!”.

Além de liderar a Democracia Corintiana e de participar das “Diretas Já!”, Sócrates tinha uma visão de mundo bem clara. Certa vez, teria dito “meu ideal é um socialismo perfeito, onde todos os homens tenham os mesmos direitos e deveres, uma concepção de mundo sem poder”, ou ainda “nós jogadores somos artistas, e os artistas são os únicos trabalhadores que têm mais poder que o seu chefe”. As ideias de Sócrates, tanto sobre futebol quanto sobre política são tão claras que podem ser resumidas em outra frase sua: “O futebol permite que o pior ganhe. Nada mais marxista ou gramsciano que o futebol”. Sócrates, enquanto atleta questionou a sua função como jogador e as suas condições de trabalho, e mais do que isso, questionou falta de liberdade e os abusos de poder. Sócrates se formou em medicina e continuou a sua luta liberdade até os últimos dias de sua vida.

Sócrates (à direita) participando do movimento político Diretas Já em 1984, em São Paulo. Foto: Jorge Henrique Singh.
Sócrates (à direita) participando do movimento político Diretas Já em 1984, em São Paulo. Foto: Jorge Henrique Singh.

Antes mesmo de Sócrates, outros três jogadores brasileiros questionaram a Ditadura Militar e lutaram por liberdade. Em 1963, Fernando Coimbra, o Nando, entrou na faculdade de filosofia com 18 anos e passou a fazer parte do o Plano Nacional de Alfabetização (PNA), de Paulo Freire, enquanto começava a sua carreira de jogador de futebol no Fluminense FC. No ano seguinte, com o Golpe Militar, o jogador foi tachado com subversivo, assim como quase todos os membros do PNA, e teve inúmeras portas fechadas pelos clubes de futebol, até no Belenenses, de Portugal, onde passou a ser vigiado pelo ditadura de António Salazar. Em poucos meses de clube foi dispensado, sob a legação se ser perigoso ao Estado. Na volta ao Brasil, foi levado ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), onde ficou preso e foi torturado por cinco dias. Após a sua liberação, Nando foi praticamente obrigado a se aposentar do futebol, e evitou essa história para preservar a carreia do irmão mais novo, Zico. A Ditadura calou Nando.

Reinaldo era um jogador habilidoso e um goleador nato. Enquanto esteve no Atlético Mineiro (1973-1985), fez 255 gols e se tornando o maior artilheiro do clube, em cada gol marcado o punho em riste cortava o ar, era uma comemoração, mas também era uma forma de protesto. Durante a carreira, o jogador deu uma declaração em uma revista em que se dizia a favor da saída dos militares do governo, além disso, pedia a anistia aos presos políticos e a volta da democracia. Em 1978, quando a Seleção Brasileira encontrou com o general Ernesto Geisel, Reinaldo ouviu do militar “Filho, se dedica a jogar futebol, deixa a política com a gente” e teve que responder seco “Sim, senhor”. Devido ao seu posicionamento político, Reinaldo não foi convocado para a Seleção Brasileira que disputou a Copa do Mundo de 1982. Passado a Ditadura, o jogador explicou o que significava o punho em riste e a sua atuação como jogador de futebol: “Levantar o punho era um gesto revolucionário. Eu usava o futebol como tribuna, e sabia que os militares não podiam me agredir fisicamente, porque seria com dar um tiro no pé”. A cada gol marcado, a cada punho em riste, um soco era dado na boca do estômago da Ditadura Militar.

Afonsinho se formou em medicina enquanto atuava como jogador de futebol. Na faculdade, participou do movimento estudantil e quase fez parte da luta armada, e passou a questionar a sua profissão. Afonsinho foi um dos primeiros jogadores a questionar a estrutura do futebol brasileiro, dizia que os jogadores eram escravos dos dirigentes, dos clubes e dos empresários. A luta liberdade, pelo direito do atleta escolher em qual clube jogar e de poder ser contratado sem a presença de intermediários era uma luta por direitos trabalhistas, em plena Ditadura Militar. Em 1972, Afonsinho ganhou o direito ao passe livre na justiça, mas o passe livre só viraria uma Lei para todos os atletas em 1998.

Assim como Sócrates, Nando, Reinaldo e Afonsinho, o futebol tem vários exemplos em que jogadores questionaram o futebol ou usaram do esporte para se posicionarem politicamente:

Johan Cruyff se recusou usar as camisa da Adidas na Copa de 1974, alegando não fazer propaganda de graça. O jogador foi o único a vestir um uniforme com duas listras. Em 1978, se recusou a participar da Copa do Mundo na Argentina, dizia que não queria fazer parte da Ditadura sanguinária de Jorge Videla.

Carlos Caszely teve a mãe presa e torturada pela Ditadura Augusto Pinochet, mas tarde, em 1974, quando a Seleção do Chile se preparava para um viagem para Argentina, onde disputara as Eliminatórias para a Copa, se negou dar a mão ao ditador chileno. Já em 1988, Caszely participou ativamente no plebiscito para decidir se o ditador deveria seguir ou não no poder até 1991.

Cristiano Lucarelli se identificou tanto com a postura dos torcedores do Livorno que passou a fazer parte das arquibancadas. O jogador, que já era declaradamente comunista, ajudou a fundar a torcidas Brigate Autonome Livornesi, em 1999. A BAL, como é conhecida, é uma torcida de extrema-esquerda que combate os ultras de extrema-direita com o lema “Fronte di resistenza ultras”.

Oleguer Pressas se recusou a defender a Seleção Espanhola, pois acreditava na independência da Catalunha. Já aposentado, Oleguer se filiou ao partido Candidatura de Unidad Popular (CUP), um partido de extrema-esquerda que defende a independência da Catalunha. Em 2012 e 2015 se candidatou ao Parlamento de Cataluña.

Didier Drogba, além e doar o dinheiro que ganha de patrocinadores para a construção de hospitais na Costa do Marfim, o jogador ainda é embaixador da ONU na divulgação de campanhas contra a AIDS. Após a Costa do Marfim se classificar para a Copa do Mundo de 2006, Drogba fez um discurso pedindo tolerância religiosa entre cristãos e mulçumanos de seu país e o fim da guerra civil que vivia o país: “Povo da Costa do Marfim, por favor, coloquem suas armas no chão, organizem eleições, e as coisas vão ficar melhores”.

Drogba em ação na Copa do Mundo de 2014. Foto: Danilo Borges / Portal da Copa.
Drogba em ação na Copa do Mundo de 2014. Foto: Danilo Borges / Portal da Copa.

Lilian Thuram afirma que as suas condições o fizeram de esquerda. Nascido em Guadalupe, nas Antilhas, neto de escravos, Thuram convive com o racismo desde os nove anos de idade, quando chegou a Paris e foi apelidado de Noiret (“negrinho” em francês), desde então, a luta contra o racismo faz parte da vida de Thuram. Durante a Copa do Mundo de 1998, se recusou a cantar o hino francês, mais tarde, teve que ouvir do político de extrema-direita Jean-Marie Le Pen, que a Seleção Francesa “tinha negros em demasia”. Em 2001, quando ainda estava no Parma, se recusou a assinar com a Lazio e foi categórico: “Eu não jogo para fascistas!”.

Robbie Rogers assumiu a homossexualidade aos 25, enquanto era jogador de futebol, e consequentemente se aposentou dos gramados quando viu os clubes fechando as portas. A redenção veio meses depois, quando o LA Galaxy dos EUA ofereceu um contrato. Mesmo após as lesões, que o afastaram dos gramados, Rogers voltou a jogar futebol profissionalmente e se tornou um orgulho para comunidade gay.

Carli Lloyd, Alex Morgan, Megan Rapinoe, Becky Sauerbrunn entre outras que entraram com ação contra a agência do governo americano que regulamenta o futebol. Elas exigem equiparação salarial, uma vez a seleção masculina dos EUA ganha mais de quatro vezes em relação às mulheres.

Sissi, Michael Jackson, Formiga, Rosana, Cristiane e todas as mulheres que ousam a jogar futebol no Brasil, uma luta diária por reconhecimento.

Na última parte da série falaremos dos torcidas que atuam politicamente para construir um futebol mais justo e inclusivo, e consequentemente, um mundo melhor para se viver.

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Victor de Leonardo Figols

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) (2022). É Mestre em História (2016) pela Universidade Federal de São Paulo - Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas (EFLCH) - UNIFESP Campus Guarulhos. Possui Licenciatura (2014) e Bacharel em História (2013) pela mesma instituição. Estudou as dimensões sociais e políticas do FC Barcelona durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha. No mestrado estudou o processo de globalização do futebol espanhol nos anos 1990 e as particularidades regionais presentes no FC Barcelona. No doutorado estudou a globalização do futebol espanhol entre os anos 1970 a 2000. A pesquisa de doutorado foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Trabalha com temas de História Contemporânea, com foco nas questões nacionais e na globalização, tendo o futebol como elemento central em seus estudos. É membro do Grupo de Estudos sobre Futebol dos Estudantes da Unifesp (GEFE). Escreve a coluna O Campo no site História da Ditadura (www.historiadaditadura.com.br). E também é editor e colunista do Ludopédio.

Como citar

FIGOLS, Victor de Leonardo. Futebol e Política: O futebol resiste!. Ludopédio, São Paulo, v. 83, n. 2, 2016.
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