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Futebol: entre o lúdico e o profissional

Uma vez por semana, o torcedor foge de casa e vai ao estádio. Ondulam as bandeiras, soam as matracas, os foguetes, os tambores, chovem serpentinas e papel picado: a cidade desaparece, a rotina se esquece, só existe o templo. Neste espaço sagrado, a única religião que não tem ateus exibe suas divindades. (…) Aqui o torcedor agita o lenço, engole saliva, engole veneno, come o boné, sussurra preces e maldições, e de repente arrebenta a garganta numa ovação e salta feito pulga abraçando o desconhecido que grita gol ao seu lado. Enquanto dura a missa paga, o torcedor é muitos. Compartilha com milhares de devotos a certeza de que somos os melhores, todos os juízes estão vendidos, todos os rivais são trapaceiros. É raro o torcedor que diz: “Meu time joga hoje”. Sempre diz: “Nós jogamos hoje”. Este jogador número doze sabe muito bem que é ele quem sopra os ventos de fervor que empurram a bola quando ela dorme, do mesmo jeito que os outros onze jogadores sabem que jogar sem torcida é como dançar sem música.

– Eduardo Galeano

O futebol é uma paixão carnal

O Futebol é uma paixão mundial. Seja em seu berço de origem britânica ou nas terras mestiças de Eduardo Galeano, ele exacerba paixões físicas, demonstrando ser algo além da bola em si. Para Galeano (2009), o Futebol deve ser jogado e sentido sem as amarras a ele impostas, sem a presença de um árbitro e seu relógio, sem motivo.  Sua beleza é a prática descompromissada e que materializa o prazer. Teoricamente, não há espaço para dissonâncias dentro do esporte. Como afirma Johan Huizinga (2000), o jogo possuí características específicas, sendo parte delas a de que ele possui sua prática livre, joga quem quer, além de que ele é uma evasão da vida, uma válvula de escape do nosso cotidiano. Não há espaços para as questões utilitaristas, ou ao menos assim deveria o ser. O próprio escritor uruguaio, um dos maiores aficionados ibero-americanos do Futebol, reconheceu que a pureza – no sentido de se jogar sem compromisso – foi perdida, perdeu-se espaço para aqueles que impuseram o dever ao esporte, retirando-lhe o seu primordial, o prazer. Galeano afirma que

Ao mesmo tempo em que o esporte se tornou indústria, foi desterrando a beleza que nasce da alegria de jogar só pelo prazer de jogar. O jogo se transformou em espetáculo, com poucos protagonistas e muitos espectadores, futebol para olhar, e o espetáculo se transformou num dos negócios mais lucrativos do mundo, que não é organizado para ser jogado, mas para impedir que se jogue. A tecnocracia do esporte profissional foi impondo um futebol de pura velocidade e muita força, que renuncia à alegria, atrofia a fantasia e proíbe a ousadia (2009, p. 14).

As disputas, o mercado e o interesse tomaram conta do jogo e, consequentemente, do Futebol. Ele agora se tornou a representação de lutas diárias e de suas dores carnais. A paixão dói. 

Para se somar a esse entendimento, Huizinga (2000) define mais categorias no esporte além das já citadas; o jogo tem um limite de espaço e tempo, sendo jogado em determinado lugar, como os campos de Futebol e marcado por um limite temporal, como as partidas de noventa minutos do mesmo, além de trazer a regra, criando a ordem, fazendo com que o jogo seja um ambiente controlado e não fique à revelia da vontade de seus praticantes de fazerem o que bem entenderem, sendo que, quando se foge à regra, o praticante é punido.

Crianças Futebol
Crianças brincam de futebol. Foto: Sérgio Settani Giglio.

O jogo como uma representação da realidade vivida

Para Gunter Gebauer (2018) a beleza do Futebol não se caracteriza na habilidade dos jogadores, mas no produto final que a ação deles causa. Para o autor, o esporte aqui discutido se diferencia das demais artes que utilizam o corpo – como a dança ou o teatro, que necessitam de uma totalidade de movimentos para compor a obra de arte como um todo – pois uma única ação com a bola pode decidir um jogo. As artes precisam de liberdade e espaço para apresentar os desdobramentos de suas performances como um todo, por exemplo, não se coloca um quadro sobre o outro, tapando a beleza de um deles. Esse não é o caso do Futebol, ele se diferencia pois representa o contrário disto, uma vez que nele, deve-se atrapalhar os movimentos do time adversário, tenta-se impedir as habilidades estética dele, combate-se o sucesso de seu movimento e, consequentemente, sua beleza, “para dizer sem rodeios, o futebol é um jogo dirigido para o fracasso da beleza” (GEBAUER, 2018, p. 17).  Ao se combater a beleza – ou seja o jogo bonito e vistoso, que resulta em gol – se combate o produto final advindo dela – sendo ele o gol –  aos moldes do que foi expresso por Galeano: 

“O gol é o orgasmo do futebol. E, como o orgasmo, o gol é cada vez menos freqüente na vida moderna. Há meio século, era raro que uma partida terminasse sem gols: 0 a 0, duas bocas abertas, dois bocejos. Agora, os onze jogadores passam toda a partida pendurados na trave, dedicados a evitar os gols e sem tempo para fazer nenhum” (2009, p.22)

Sim, o Futebol é uma arte que é contra a beleza, não no sentido de não a possuir, mas no de modificar a percepção da mesma. O jogo bretão aqui estudado tem a dureza como sua beleza. O belo se caracteriza na dominação de um time sobre o outro. Dominação não apenas física, mas em habilidade estética, que, em linguagem coloquial, encha de lágrimas os olhos do torcedor. A beleza do Futebol é ligada ao sucesso, enquanto a derrota é amargada pelo time perdedor, recebendo apenas a estética da crueldade, recebendo apenas a negação de seu jogo por um mais objetivo e sem piedade (GEBAUER, 2018). 

Comparação colocada até mesmo por Nelson Rodrigues em suas crônicas, as seleções de futebol europeias, mesmo que jogando com dominância, não possuem a habilidade estética da Brasileira, sendo que a união entre essas duas realidades é o que o torcedor cobra. 

“A ameaça do adversário salienta uma característica fundamental da beleza no futebol: a luta, a superação da ameaça de aniquilação. Desse ponto de vista, inverte-se a relação entre arte e futebol: beleza, no futebol, não se deve mais conceber como uma variante do belo fácil e sem sentido, que possua um peso estético reduzido, na medida em que se trata de ganhar. Então o futebol se deixa compreender como uma forma de beleza mais antiga, mais séria que a arte burguesa estabelecida. Ele (futebol) conduz a um mundo de conflitos, de lutas, de riscos e perigos aos quais somos expostos” (GERBAUER, 2018, p. 18). 

Partindo da ideia de que o jogo é um dos elementos espirituais que dão base a vida em sociedade, Huizinga (2000) afirma que, ao mesmo tempo em que o jogo nos tira da realidade, criando novas regras a sua prática (tornando-o antiético, uma vez que quebra com as regras de convivência do cotidiano), ele exprime a nossa realidade vivida, representando e exacerbando as disputas do dia a dia (principalmente quando ele possui cara agonístico, ou seja, competitivo). Para o autor holandês, jogo é uma entidade autônoma, que não se define pela contraposição a seriedade. Uma vez que, a seriedade procura excluir o jogo, mas o jogo pode incluir sua opositora em sua esfera. Além disso, ele tem uma função cultural, não podendo ser explicado apenas de forma biológica ou como um fenômeno fisiológico, mas como um reflexo psicológico. O jogo tem um sentido, um fim e representa uma disputa. 

“A função do jogo, nas formas mais elevadas que aqui nos interessam, pode de maneira geral ser definida pelos dois aspectos fundamentais que nele encontramos: uma luta por alguma coisa ou a representação de alguma coisa. Estas duas funções podem também por vezes confundir-se, de tal modo que o jogo passe a “representar” uma luta, ou então, se torne uma luta para melhor representação de algo” (HUIZINGA, 2000, p. 12, grifo meu).

O jogo apresenta caráter dual, ao mesmo tempo em que permite ao seu praticante a transmutação em outro, deixando de lado as regras do cotidiano e de convivência diária, ele exprime as disputas nele contidas, acentuando-as. O jogo se torna uma representação da disputa diária por espaço, poder, dominação etc. 

Um exemplo claro e prático de exacerbação de disputas diárias dentro do jogo, e aqui especificamente, dentro do Futebol, ocorreu em 1986 na Copa do Mundo de Futebol da FIFA, realizada no México. Em jogo válido pelas quartas de final da competição, Inglaterra e Argentina se digladiaram pela vaga na próxima fase do mundial. Um detalhe importante é que quatro anos antes, em 1982, a chamada Guerra das Malvinas aconteceu, em que ambos os países – sendo que a Inglaterra participou do conflito como parte do Reino Unido – disputaram o domínio sobre as Ilhas Malvinas, localizadas ao sul do Oceano Atlântico. A Guerra terminou com uma amarga derrota para a Argentina. Na Copa a história foi diferente. O primeiro gol argentino – de um jogo que terminaria 2 a 1 para os sulamericanos – foi marcado por Diego Armando Maradona e foi de mão. A vitória no jogo e o primeiro gol do mesmo representaram para a seleção Albiceleste e sua torcida um tipo de redenção pela derrota militar em 1982, além de ser um exemplo da tentativa ibero-Americana de ser autora de seu próprio modelo de modernidade, uma alternativa viável ao estilo europeu. Ao fim do jogo, Maradona afirmou sobre o gol que Lo marqué un poco con la cabeza y un poco con la mano de Dios”, denotando não uma percepção de justiça pela derrota na guerra, mas um sentimento de revanchismo e de aceitação do errado, uma vez que o mesmo é realizado contra seu inimigo para o bem maior, caracterizado de forma sentimental, para seu país. 

Maradona
“La mano de Dios“, foi como ficou batizado o primeiro gol de Maradona contra a Inglaterra em 1986. Foto: Reprodução

Huizinga (2000) analisando diferentes línguas, como o inglês, o chinês, o grego, o japonês e o sânscrito, percebeu a utilização de termos e palavras especificas para os jogos e suas funções lúdicas e competitivas, colocando-o como basilar na concepção de sociedade. Em diversos momentos, como no caos grego, o lúdico se confunde com o caráter competitivo, se tornando algo normal na vivência diária. Nas línguas conhecidas como primitivas, o autor identifica a utilização da mesma palavra para designar a vitória competitiva e a vitória militar, que assume nesse último caso, a ideia de carnificina. Nas próprias etimologias do inglês, nota-se que as palavras utilizadas para o jogo ou jogar, fazem referência a desafio, perigo, competição etc., se caracterizando como estando muito próximos do lúdico. Nas línguas anglo-saxãs e germânicas, o jogo normalmente vem acompanhado de um significado também para o combate. No Brasil e na língua portuguesa, um exemplo claro é a Capoeira, onde o momento de enfrentamento é denominado pelos seus praticantes de “jogar” .

Victoria in ludo

Se joga para vencer. Tal afirmativa tem um fim em si mesma, uma vez que apresenta o principal objetivo de qualquer competidor. Mas, diferente da afirmativa que a carrega, a vitória não tem um fim em si mesma. Ela traz consigo diversas formas de se aproveitar dela, além de comemorá-la. “A tensão aumenta a importância do jogo, e esta intensificação permite ao jogador esquecer que está apenas jogando “ (HUIZINGA, 2000, 39).

Percebe-se nas concepções de Huizinga (2000) que o caráter da competição faz parte das categorias do jogo. A ação de competir tem início e fim marcados nela mesma, sendo que o seu resultado não traz qualquer contribuição para as vivências de seu grupo, para a sociedade o resultado do jogo é insignificante e indiferente, só levando interesse aqueles que participam do jogo, seja jogando ou como espectador. Quando se afirma que a essência do jogo se apresenta na frase “há alguma coisa em jogo”, o autor afirma que tal frase não diz respeito ao resultado do jogo em si mas sim, o prazer sentido em uma vitória e o direito de se gabar. No jogo coletivo, “A ideia de ganhar está estreitamente relacionada com o jogo” (2000, p. 38). 

Ser vitorioso ou ganhar, a mais do que seu significado tautológico, é o mesmo que se demonstrar superior ao adversário, não só no jogo em si, mas na convivência diária, uma vez que a superioridade se manifesta de maneira geral e traz benefícios ao grupo social ao qual pertence(m) o(s) vencedor(es), além do direito de se gabar (HUIZINGA, 2000). Por exemplo: 

“[…]foi recebido de uma estudante o relato de que em uma vila da Grande Porto Alegre, a cada clássico Gre-Nal, um grupo de carroceiros faz uma aposta entre gremistas e colorados. Os torcedores que perderem devem levar os vencedores para uma volta na praça puxando uma carroça, com todos uniformizados. A cada novo clássico, renovam-se os desafios, e a chance da revanche –ou de nova vitória– é um perene mote para a interação dos homens naquela comunidade. Sem custos, sem receita, sem lucro. Somente pelo prazer de jogar, e de sofrer, e de contar histórias, e de rir, de si e dos outros” (GASTALDO; HELAL, 2013, p. 120)

Voltemos também ao exemplo já citado. La mano de Dios e o outro gol de Maradona que permitiram a vitória Argentina sobre a Inglaterra, levaram a uma série de manifestações populares, midiáticas e culturais sobre a superioridade do povo nascido às margens do Rio da Prata. Novamente, mostra-se que a beleza do jogo e, aqui, do Futebol em si, está em seu resultado final, assim como afirma Gebauer (2018) e não em sua continuidade de lances que não alcançaram o objetivo esperado. 

Retornemos a frase “há alguma coisa em jogo”. Normalmente, se liga a vitória a alguma coisa que está em jogo, seja uma taça ou troféu, dinheiro, terra, ou até mesmo a prova de superioridade de uma etnia sobre outra. César Gordon Jr. (1995) afirma que no Brasil, principalmente aos fins do Século XIX até a década de 1920, o Futebol tinha pouca presença de atletas negros em seus campos, graças ao momento de segregação dos negros que ocorria no país. Dizia-se que, naturalmente, o jogador branco seria superior ao negro por pelo menos dois motivos: (1) porque os brancos teriam criado o esporte e que (2) ele seria mais uma prova – em um momento em que o cientificismo do período procurava justificativas para tal – da superioridade dos de pele clara em relação aos negros. 

Gordon Jr. (1995) percebe que se deixava de lado uma explicação racional, baseada em um índice socioeconômico que demonstra serem as vitórias dos times compostos apenas por brancos se dava pela sua posição social alta, até então quase que uma exclusividade dos mesmos, que lhes proporcionavam uma elevada qualidade de vida e de manutenção dos times. Mas isso era deixado de lado e as vitórias eram explicadas pela hierarquia das “raças”. Coloca o autor então que: 

“Não eram os clubes cujos jogadores foram sempre bem alimentados (cujos jogadores sempre dispuseram das melhores condições para treinos e prática atlética, uma vez que não precisavam trabalhar duro para ganhar a vida) os campeões em cima de clubes cujos jogadores não vinham de famílias abastadas, sem condições materiais básicas para o esporte. Eram os “clubes de branco” os campeões em cima dos ‘clubes de preto'” (GORDON JÚNIOR, 1995, p. 81). 

Utilizasse então, o Futebol, um jogo agonístico, para se mostrar a superioridade de um grupo sobre outro. Tal narrativa se casa com a percepção de Huizinga (2000) de que em muitos mitos e fábulas, o herói adquire sua vitória com astúcia ou ajuda externa, como por exemplo, o cumprimento das provas dadas a Jasão e Teseu por meio da ajuda vinda de Medéia e Ariadne.

Ludis

Os jogos tradicionais foram convertidos em esportes. Tal afirmação de Gastaldo e Helal (2013) diz que Johan Huizinga deixa claro que um atleta profissional não é um jogador, deixou de fazer o jogo apenas por prazer e agora o faz como profissão. Claro que as características do jogo aqui colocadas e discutidas não se perdem, apenas se somam a elas o cotidiano profissional, em que as competições são organizadas por federações, um regime de treinos é institucionalizado, arbitragem oficial, súmulas etc. O jogo se apropria do mundo do trabalho. “O espírito do profissional não é mais o espírito lúdico, pois lhe falta espontaneidade, a despreocupação” (HUIZINGA apud GASTALDO E HELAL, 2013, p. 118). 

Os esportes possuem essências diferentes. Uns se jogam com bola, outros sem; uns com tacos, outros apenas com as mãos, pés ou, em raridades, outras partes do corpo. Mas, mesmo com a ciência das particularidades de cada um desses diferentes desportos algo os une. Uma concepção geral do que seria um esporte em si é passível de colocação. 

Para Jean-Marie Bhrom (1982) existem então, características primordiais para a definição do que é um esporte: (1) um sistema institucionalizado de práticas competitivas, com enfoque em questões físicas, que são reguladas, delimitadas e codificadas; (2) tem por intenção a demonstração de superioridade daquele que vai ser chamado de campeão e o registro da melhor atuação. Tais características são exatamente a perda de ludicidade de quem o pratica, mas que se mistura, justamente, com a possibilidade de espólios vinda da prática do jogo, neste caso, na prática de um esporte propriamente dito. Além disso, o autor ainda enumera alguns princípios que norteiam os esportes como um todo: 

  1. Princípio de rendimento – O esporte é essencialmente a busca por rendimento corporal;
  2. Sistema de Hierarquização – Toda instituição esportiva está hierarquizada em todos os níveis. Coubertin (apud BRHOM, 1982) afirma que o esporte é uma elite aristocrática que tem uma função moral de ser exemplar. Os campeões são os modelos a serem seguidos e que irão puxar todo o sistema. Como afirma o autor:
  3. Princípio da organização burocrática – Ao se institucionalizar, o esporte se burocratiza, sendo essencialmente uma organização racional do trabalho, que possui um grande número de pessoas para a produção de uma manifestação esportiva. Soma-se a isso a necessidade de separação bem definida de tarefas organizacionais;
  4. Princípio da publicidade e da transparência – O esporte é, acima de tudo, um sistema de publicidade com a intenção de educar as massas em torno das atuações triunfantes da humanidade. É a função pedagógica do esporte. E por essa função, o esporte exige uma massa de espectadores. 

Todas essas questões estão postas no que Bhrom (1982) chama de Esporte Moderno e ele tem uma origem. 

A maioria dos jogos coletivos praticados na Inglaterra tiveram a sua institucionalização, e consequentemente esportivização, realizados no Século XIX ou XX, sendo por isso chamados de esportes modernos. O Football está entre eles, mas se diferenciando pela grande aceitação internacional que causou (REIS e ESCHER, 2005). Na concepção de Agnaldo Kupper (2017), o futebol foi um doutrinador de mentes operárias a serviço da aristocracia industrial britânica, em suas palavras: 

“Berço da produção industrial, o futebol significa trabalho em equipe, diferenciando a fábrica moderna da produção familiar artesanal. Pelo menos nas primeiras fases revolucionárias industriais, um jogador de futebol, assim como um trabalhador, possuía funções específicas relacionadas ao time em que atuava (ou fábrica, no caso do operário), devendo assim, especializar-se em uma posição dentro da linha de montagem. Falo isto pois, com o toyotismo, passou-se a exigir do trabalhador polivalência, assim como o futebol pós-moderno passou a esperar do jogador o cumprimento de funções diversas” (KUPPER, 2017, p. 4).

Sendo assim, já que foi na Inglaterra que a maioria dos esportes surgiu e se desenvolveu, servindo a um propósito de contato com as massas, é neste país que se deve buscar as origens do esporte moderno. A própria palavra “esporte” advém de sport, que foi importado por diversos países para designar a prática as suas atividades físicas lúdicas, a partir do momento em que se inicia a regulamentação desses diferentes passatempos, se passa a chamá-los com essa nomenclatura. 

O conceito de esporte, principalmente durante o decorrer do Século XVII, era ligado diretamente ao divertimento da nobreza britânica, mas não isolado da realidade vivida.  Anterior a fase de esportivização, os jogos eram regidos por tradições locais, caracterizando-se por um alto grau de violência entre seus praticantes, sendo que a criação e desenvolvimento de normas para essas práticas esportivas passaram por diferentes estágios em território inglês (ELIAS e DUNNING apud REIS e ESCHER, 2005, p. 2). 

João Máximo (1999) atribui outra função ao futebol, também na Inglaterra. Retomando o chamado mass football no Século XIX, um jogo de rua, extremamente violento, onde para se fazer o goal, times de 50 pessoas ou mais, utilizavam-se de socos, cotoveladas, chutes e qualquer outra artimanha física brutal. Diz ser o mesmo uma tradição surgida após a expulsão dos dinamarqueses da Inglaterra, sendo jogado a pela primeira vez com o crânio de um dos oponentes. Para o autor, o esporte serviu a Rainha Vitória, aconselhada por Thomas Arnold, para que os jovens nobres nas escolas – que estavam sendo tomadas por uma nova classe média e promovendo sua mistura com os nobres – não se contaminassem com os assuntos reformistas e revolucionários que poderiam vir dos plebeus. Deu-se assim, o desenvolvimento das regras, materiais de esportes e a organização do jogo em si, transformando-o em esporte. Reis e Escher (2005) afirmam que as primeiras normatizações do esporte ocorreram entre 1845 e 1862, mas que o marco de criação do mesmo é tido como em 1863, com a fundação da The Football Association ou The FA, que comanda o esporte em terras inglesas até os dias atuais.  

Reis e Escher (2005) dizem que o Futebol, no Século XIX, era jogado primordialmente entre times de cidades localizadas geograficamente perto umas das outras, algo motivado pela dificuldade de locomoção pré-Revolução Industrial. Com o desenvolvimento ferroviário, as disputas locais puderam se expandir, para fora da Inglaterra, aliás. A expansão para o resto do continente europeu – que enquadrava os primeiros países no mundo a terem federações – se deu juntamente com a profissionalização do mesmo, que não tardou em acontecer, e se desenvolveu por volta de 1885. Concomitante a esse processo, a espetacularização do esporte também se deu, já que, além da exportação das vestimentas, roupas e linguajar, expandiu-se também a presença de torcedores nos jogos. “Então, é praticamente dessa forma, espetacularizada, que o futebol se dissemina por praticamente todo o mundo” (REIS e ESCHER, 2005, p. 4).  Com a fundação da Fédération Internationale de Football Association (FIFA) em 1904, o Futebol deu um passo grande em relação a sua espetacularização, tornando-se esporte olímpico em 1908 e, posteriormente, por desavenças com o Comitê Olímpico Internacional, com a criação da Copa do Mundo de Futebol, que teve sua primeira edição realizada em 1930, no Uruguai. Com a ascensão de João Havelange a presidência da entidade, a mesma deu outro grande salto, se transformando em uma indústria esportiva, expandindo sua importância para além do esporte, chegando ao comércio e a política. 

A resistência a profissionalização foi ato corrente entre as esferas nobres inglesas. Uma vez que o esporte se difundiu entre as classes trabalhadoras/ociosas, não tardou em seu desenvolvimento técnico, por grande influência dessas classes, que poderiam se dedicar a prática do Football amiúde. Para não passarem a vergonha de perder, as classes abastadas se recusavam a jogar, se dizendo contra a profissionalização (REIS e ESCHER, 2005). 

Charles Miller
Charles Miller (por Xico)

O futebol chegou ao Brasil no final do século XIX. Ao pousar nessas terras assumiu características elitistas, particularidade brasileira notada nesse quesito, sendo apropriado por classes mais abastadas, que tinham os meios financeiros necessários para sua prática. De forma intuitiva, imaginou-se que o esporte não necessitaria de muito para ser jogado, uma vez que seu instrumento mais importante é uma bola. Mas, no período destacado, a bola, assim como a vestimenta específica, deveria ser importada do país de origem do desporto. 

Se atribui a Charles Miller a introdução do esporte em terras brasileiras. Filho de ingleses, Miller se formou na Inglaterra, era burguês e conhecedor do football in natura. Diz-se que chegou em São Paulo com duas bolas, um livro de regras, um jogo de uniforme e os conhecimentos necessários à sua prática aprendidos na Banister Court School (REIS e ESCHER, 2005). João Máximo afirma então que: 

“Daí, sempre entre a elite, foram surgindo os primeiros times de verdade. Em 1896, o São Paulo Athletic Club, Fundado oito anos antes, seria o primeiro a aderir ao novo esporte, logo seguido do Sport Club Germania (1889), de Mackenzie Athletic Association (1898), Sport Club Internacional (1898), Clube Atlético Paulistano (1900), já com nome aportuguesado. […] Vale ressaltar que há apenas um ponto comum entre todos os momentos dessa gênese: aqui e ali o futebol brasileiro nasceu como brinquedo de menino rico. Ou quase” (1999, p.182, grifo meu). 

Em outros contextos sociais a elitização do futebol não ocorreu. O Uruguai, por exemplo, passou por um processo de formação futebolística diferente do Brasil, sendo ela de origem popular, assim como os seus grandes ídolos. Destaca-se um de seus grandes ídolos, com carreira iniciada no início dos anos 1920 e finalizada nos anos 30, José Leandro Andrade, conhecido como A maravilha negra, ou Isabelino Gradín e Juan Delgado, que representaram o Uruguai no Campeonato Sul-americano de 1916. 

Sendo assim, o futebol chega ao Brasil em um momento em que a sociedade aqui presente – que se tornava cada vez mais urbana, com um encontro múltiplo de culturas, o recente fim do trabalho escravo e o aumento de imigrações – se virava para um direcionamento baseado em uma tentativa de cópia, encabeçada pela elite nacional, do estilo de vida estadunidense e europeu, focado principalmente em França e Inglaterra (LUCENA apud REIS e ESCHER, 2005, P. 5). Valorizava-se tudo que advinha desses lugares e tentava-se deixar de lado um passado permeado pela que era considerado o atraso, como a dominação portuguesa e a presença de indígenas e negros na composição genética da população. Portanto, em terras brasileiras, o negro demorou a alcançar o mínimo de reconhecimento pelos seus feitos no esporte, chegando perto de tal realização apenas no início da década de 1930.

Referências Bibliográficas

BHROM, Jean-Marie. Sociología Política del deporte. Editions Universitaires: México, D.F.1982.

GALEANO, Eduardo. O Futebol ao sol e a sombra. São Paulo: LeM Pocket, 2009. 

GASTALDO, Édison; HELAL, Ronaldo. Homo-ludens e o Futebol espetáculo. In: Revista Colombiana de Sociología: Bogotá, 2013. Pp. 111 – 122.

GEBAUER, Gunter. Sobre a beleza do Futebol. São Paulo: Revista USO, n.117, 2018. Pp. 13-24. 

GORDON JÚNIOR, Cesar C. “Eu já fui preto e sei o que é isso”. In: Pesquisa de Campo, revista do Núcleo de Sociologia do Futebol, UERJ, nº 3/4, 1996, pp. 65-78.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva S.A., 2000

KUPPER, Agnaldo. O Brasil dimensionado pelo futebol. XXIX Simpósio Nacional de História: Brasília, 2017.

MÁXIMO, João. Memórias do Futebol Brasileiro. São Paulo, Estudos Avançados: USP 1999. Pp. 179 – 188.

REIS, Heloisa Helena Baldy dos; ESCHER, Thiago Aragão. A relação entre Futebol e sociedade: uma análise histórico-social a partir do processo civilizador. IX Simpósio Internacional de Processo Civilizador: Ponta Grossa, 2005.Pp. 1-8;

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Como citar

SOUZA, Sérgio Henrique Soares de. Futebol: entre o lúdico e o profissional. Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 25, 2021.
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