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Futebol: fascismo e antifascismo na era neoliberal

Desde o início dos anos 70, o neoliberalismo avança no Ocidente como uma nova formação hegemônica que articula a democracia liberal com o capitalismo financeiro. Como um conjunto de práticas políticas e econômicas que visam impor regras de mercado – desregulamentação, privatização, austeridade fiscal – o modelo neoliberal limita o papel do Estado à proteção dos direitos de propriedade privada, livre mercado e livre comércio (MOUFFE, 2020). Para Michel Foucault, o modelo

“representa dois processos, um que poderíamos chamar de incursão da análise económica num campo até então inexplorado e, segundo, a partir daí e a partir dessa incursão, a possibilidade de reinterpretar em termos econômicos e em termos estritamente econômicos todo um campo que, até então, podia ser considerado, e era de fato considerado, não-econômico.” (FOUCAULT, 2008: 302).

Dessa forma, o neoliberalismo organiza-se como um conjunto de práticas que são constitutivas de uma forma de sociedade e de um novo sujeito (DARDOT e LAVAL, 2019). O esporte, especialmente o futebol,  certamente seria um alvo dessa nova racionalização.

Os megaeventos esportivos

No atual sistema de acumulação neoliberal, os fluxos de capitais nacionais e estrangeiros, em busca de maior rentabilidade e vantagens fiscais, migraram para novas cidades e países onde, normalmente, o poder público encontra-se fragilizado e disposto a alterar suas legislações em busca de uma maior acomodação deste capital. Os megaeventos esportivos possuem a capacidade de catalisar este movimento, gerando transformações radicais em poucos anos, o que pode ser observado em experiências pioneiras como, por exemplo, a Olimpíada de Barcelona em 1992 (MARICATO, 2014; WHITAKER, 2014).

A partir dos anos 1970 e 1980 foram priorizados os aportes de recursos públicos localizados em grandes obras de infraestrutura com objetivo de atraírem investidores privados e forçar uma revitalização de regiões desvalorizadas das cidades. O resultado não foi o fim da pobreza, mas a gentrificação dos espaços urbanos acompanhado de um processo de desregulamentação, privatização e flexibilização das normativas urbanas (MARICATO, 2014), transformando o papel social da cidade em uma “máquina de produzir renda”.

Os megaeventos esportivos possuem uma característica singular importante: em geral, são populares entre os cidadãos e tendem a gerar menores contestações em comparação às operações de requalificação urbanas. Segundo João Whitaker:

“Percebe-se então que grandes eventos, sobretudo os esportivos, que movem paixões nacionais, tinham a grande ‘qualidade’ de serem popularmente aceitos. A ideia era associar esses eventos às obras de requalificação urbana desejadas. Assim, ao redor de um grande estádio, de um pavilhão de exposições, começaram a ser erguidos centros de negócios, bairros de alto padrão etc. Operações casadas em que governantes e investidores saíam ganhando, com a vantagem de apoio popular” (WHITAKER, 2014)

A partir dos anos 90, especialmente a partir das experiências posteriores a Olimpíada de Barcelona, em 1992, a situação toma outra configuração visto que as populações locais  passam a questionar os megaeventos e seus elevados custos de manutenção e baixa capacidade de utilização dos equipamentos adquiridos. Diante disso e de regulamentos urbanísticos rígidos e de resistências políticas à adoção de leis excepcionais para os eventos, paulatinamente, o COI e a FIFA, principalmente, passaram a deslocar seus eventos para países de maior permissividade às vontades dos organizadores estrangeiros, capazes portanto de garantir maiores lucros. Neste movimento, foi assim que a Copa do Mundo da FIFA foi organizada na África do Sul, no Brasil, na Rússia e, em 2022, será realizada no Catar.

No Brasil, o empenho de enormes quantidades de recursos públicos à revitalização e construção de estádios de futebol para a Copa de 2014 foi notório. A reforma do Estádio Beira Rio, por exemplo, orçada em 330 milhões de reais, contou com mais de 270 milhões de reais do BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento). Alguns estádios, inclusive, foram construídos em cidades que não possuíam equipes disputando o principal campeonato de futebol do país, como no caso da Arena Amazonas, em Manaus, e o novo Mané Garrincha, em Brasília, que evidenciaram, posteriormente, exemplos de subutilização dos equipamentos após a realização da Copa.

Entretanto, a partir dessa nova lógica de grandes eventos, no Brasil, não foram somente os mercados de construção civil e infraestrutura que cresceram, lucraram e impactaram na transformação do futebol. Os megaeventos foram um divisor de águas no mercado de segurança e vigilância – aspecto essencial para a compreensão da nova estrutura do futebol enquanto um negócio super lucrativo.

Para o professor Acácio Augusto da UNIFESP, outros setores, além da construção civil, foram alcançados nessa nova configuração do esporte.

“Tem a introdução de controles securitários, seja via o clássico controle de torcida organizada – que vinha da Política Militar, Tropa de Choque e assim por diante – ou os novos controles internos dos estádios, que são: a individualização do torcedor, via câmeras de vigilância, ou a própria câmera da televisão, que desfaz aquela experiência [da massa]” (AUGUSTO, 2019).

A lógica do capital, internacional e nacional, exige que seus investimentos sejam protegidos pelo Estado que, então, desenvolve novas ferramentas de monitoramento e vigilância para coibir manifestações e garantir o ambiente mais asséptico e apolítico possível nas arquibancadas. No Brasil, cria-se a Secretaria Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos, por exemplo. A Lei Geral da Copa, promulgada em 2012, explicita o caráter de exceção sob o qual  a Copa do Mundo é construída e sob o qual posteriormente passa a reger o esporte no Brasil. A norma, caracterizada por um acordo entre Brasil e uma entidade privada (FIFA), implicou na suspensão da vigência de diversas normas constitucionais brasileiras. Grande exemplo desta suspensão é a transformação de ambientes públicos em privados, movimento realizado por exemplo nas Fan Fests, onde a venda de bebidas e comidas no espaço até então público, tornou-se exclusividade de parceiros e patrocinadores do evento.

Esse novo arranjo retirou, subitamente, as licenças de trabalhadores ambulantes em benefício da FIFA e seus parceiros. Em São Paulo por exemplo, 5.137 licenças de ambulantes foram canceladas subitamente (SOUTO MAIOR, 2014: 35). A norma que vigorou naquele momento, ainda obrigou o Estado brasileiro a indenizar a FIFA por eventuais transgressões da exclusividade de venda nestes locais oficiais do evento, além de responsabilizar a União por quaisquer danos resultantes de incidente ou acidente de segurança relacionados ao evento. Talvez a falta de clareza neste trecho tenha permitido uma abrangência sem critérios que permitiu protestos e manifestações políticas serem consideradas “incidentes de segurança relacionados ao evento”. A permissão do trabalho voluntário em atividades ligadas à Copa, especialmente à FIFA – uma entidade lucrativa – sugerem ainda o desrespeito às normas trabalhistas do país.

Protesto no Rio de Janeiro em 2012. Foto: Wikipédia

A financeirização do futebol

A cooptação do futebol pelo Neoliberalismo leva, inevitavelmente, à financeirização do esporte e, a transformação do espaço, torcedores, vigilância, experiência e legislação, têm, antes de qualquer coisa, o objetivo de rentabilizá-lo ao máximo. O futebol regido sob os novos imperativos econômicos, enfim, tornou-se um negócio promissor. Segundo Augusto,

“a grande virada neoliberal do futebol (..) é o Ronaldinho, o fenômeno (…) primeiro jogador-empresa totalmente acabado que depois vai dar em jogadores empresas como Neymar, Cristiano Ronaldo, Messi (…)” (AUGUSTO, 2019).

Vale lembrar que a gestão dos clubes e dos dirigentes também profissionaliza-se, ao mesmo tempo em que outros atores como fundos de investimento e agências de publicidade (ou gestores de imagem) – expoentes dessa nova fase de altos retornos financeiros – ascendem.

O resultado foi o aumento vertiginoso dos preços das arenas que substituiu a figura política que historicamente frequentou o futebol, o povo. O processo de elitização é atrelado ao processo de grandes empreendimentos espetaculares que estão cada vez mais distantes do que é um sujeito popular (AUGUSTO, 2019).

 Outro aspecto derivado da presente temática de transformação e financeirização é o papel e presença da multidão – invariavelmente ator primordial na experiência do futebol. Era na massa, segundo Elias Canetti, que os sujeitos eram dissolvidos e fundidos como que no interior de um único corpo em movimento, em um mesmo fluxo. Segundo Acácio Augusto,

“A característica fundamental da massa como força política no século XX é a dissolução da individualidade. O neoliberalismo é hiperindividualista, então, ele vai querer oferecer para o sujeito específico, uma experiência dentro da arena, então, por isso, vai numerar, (…) ter carteirinha (…) e essa assepsia bloqueia qualquer tipo de experiência popular como uma manifestação antifascista”.

Concomitante e no bojo do processo de individualização, securitização e segregação  observamos a recente escalada de casos de intolerância e violência, costumeiramente de cunho racial, no futebol mundial. De acordo com Augusto, a manifestação do racismo e fascismo no Brasil é

“bem mais velada (…) o racismo estrutural se manifesta, por exemplo, na cor dos dirigentes, na cor dos técnicos de futebol, na cor dos comentaristas. Quando se faz essa pergunta no Brasil, bom… a maioria dos jogadores, os melhores jogadores, o rei do futebol é negro no Brasil. Só que quando você liga uma televisão num programa de debate, raramente você tem um negro ali sentado, quando você olha para o campo de futebol raramente você tem as posições de futebol, que são mais “cerebrais”, raramente são ocupadas por negros, nomeadamente goleiro e técnico, treinador. (…) Dirigente, então, nem se fala, não me vem na cabeça um dirigente negro.” (AUGUSTO, 2019)

O futebol atual, produto de massivos imperativos neoliberais, portanto, demonstra ser um veículo que expressa o fascismo entranhado na conjuntura do país, pois, primeiro, de acordo com Acácio,

“o futebol não está isolado da sociedade. Então, se a gente tem um crescimento deste tipo de manifestação social, é “natural” que o futebol expresse isso também. (…) por exemplo, a Democracia Corinthiana era em um clima de abertura, agora é outro.”, segundo, porque  a profissionalização promoveu a domesticação do jogador de futebol e, portanto, semeou um terreno fértil para esse tipo de manifestação fascista via futebol que permite interpretar, segundo o professor, que “quanto mais empresarial ele [futebol] se vira, quanto mais supostamente bem gerido ele [futebol] se torna, mais campo para o fascismo ele [futebol] ganha. Então existe uma ligação, sim, do fascismo ser uma espécie de radicalização das políticas liberais ou, no nosso caso, neoliberais”.

Didier Drogba. Foto: Wikipédia

Resistências

Embora o atual contexto de pandemia tenha deflagrado, ainda que em diferentes contextos, o racismo estrutural, o futebol mostrou-se, mais uma vez, palco de resistência. Jogadores notórios passaram a sustentar publicamente, por exemplo, sua indignação contra médicos franceses que sugeriram testar vacinas contra o coronavírus no continente africano, como o astro senegalês Demba Ba que, por Twiter, comentou: “Bem-vindos ao ocidente, onde um branco se crê tão superior que o racismo e a debilidade se tornam banais. É hora de nos levantarmos!”. Sobre o mesmo episódio, Samuel Eto’o e Didier Drogba, respectivamente, replicaram:

“Que filhos da p….” e “É inconcebível que continuemos aceitando isso. A África não é um laboratório. Eu denuncio fortemente essas observações sérias, racistas e desdenhosas! Ajude-nos a salvar vidas na África e impedir a propagação deste vírus que está desestabilizando o mundo inteiro, em vez de nos considerar como cobaias. Isso é um absurdo! Os líderes africanos têm a responsabilidade de proteger as pessoas dessas tramas hediondas”.

O contexto de revolta e o protagonismo de movimentos Antifascistas intensificou-se, primeiramente, nos Estados Unidos – palco do assassinato filmado de  George Floyd: homem negro asfixiado por policial branco no dia  25 de maio nos Estados Unidos. Seis dias depois o Brasil foi palco de atos contra os assassinatos de adolescentes e crianças negras durante operações da Polícia Militar em comunidades cariocas, a exemplo do garoto João Pedro, de 14 anos. Em São Paulo, em plena avenida Paulista, apoiadores de Bolsonaro entraram em confronto direto com a Polícia Militar e com participantes de um ato organizado por torcidas organizadas de futebol, entre elas, a do Corinthians e a do Palmeiras, que criticavam Bolsonaro e pediam a defesa da democracia. Ainda, no mesmo dia 31, Marcus Thuram marcou no campeonato alemão e se ajoelhou no gramado repetindo o gesto de Colin Kaepernick, ex-quarterback do San Francisco 49ers – que ganhou projeção como ícone na luta contra o racismo nos Estados Unidos.

Torcida de papelão no Estádio Mineirão no jogo entre Atlético x Patrocinense. Foto: Bruno Cantini / Agência Galo / Atlético / Fotos Públicas

A pandemia e o futuro do futebol

Após mais de 100 mil mortes e inúmeros estudos sobre a necessidade do isolamento social, os campeonatos persistem atendendo pressões financeiras e midiáticas, ao mesmo tempo em que os casos de COVID-19 explodem entre atletas. Apenas nas duas primeiras rodadas da competição foram confirmados 40 casos entre as três principais divisões do brasileirão. A experiência do esporte tornou-se absolutamente sem sentido: times jogam de portas fechadas e o povo, eterno protagonista do esporte, tornou-se completamente descartável e padece à deriva, sob a gestão de um governo que, além de negar a gravidade do contexto, desobedece as recomendações das instituições de prestígio mundial que poderiam minimizar o sofrimento da população. A vitória do atual modelo neoliberal e de flerte  fascista pode significar a derrota fulminante da sociedade e do esporte.

 

Referências

AUGUSTO, Acácio. n.d. “Entrevista com Acácio Augusto”, Janeiro de 2020. Akira Pinto Medeiros e Felipe Veiga Barros.

CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo, Companhia das Letras, 2013 [1960].

COSTA, REBELLO, SÁ PESSOA, MELLO, Flávio, Aiuri, Gabriela e Igor. Confrontos entre atos pró e contra o governo marcam domingo tenso no país .

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Never-ending Nightmare: the Neoliberal Assault on Democracy. Trad. G. Elliott. Londres: Verso, 2019.

FOUCAULT, Michel. 2008. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes.

MARICATO, Ermínia. 2014. “A Copa do Mundo no Brasil: Tsunami de Capitais aprofunda a desigualdade urbana.” In: Brasil em Jogo: O que fica da Copa e das Olimpíadas?, 1st ed., 17–24. São Paulo: Boitempo & Carta Maior.

MOUFFE, Chantal. Por um populismo de Esquerda. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

Redação. Proposta de testes na África revolta Eto’o e Drogba: ‘Não somos cobaias.

RODRIGUES, BRUNO. Herança ativista faz filho de Lilian Thuram se unir ao pai contra racismo

SETTE WHITAKER FERREIRA, João. 2014. “Um teatro milionário.” In: Brasil em Jogo: O que fica da Copa e das Olimpíadas?, 1st ed., 7–15. São Paulo: Boitempo & Carta Maior.


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Akira Pinto Medeiros

  Mestrando em Ciência Política pela USP, Pós-graduado em “Legislativo e Democracia no Brasil” pela Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo, e Bacharel em Relações Internacionais pela PUC-SP. Corinthiano e Carbonero, Sul-americano.  

Felipe Veiga Barros

Felipe Veiga Barros é advogado, bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica, PUC-SP.

Como citar

MEDEIROS, Akira Pinto; BARROS, Felipe Veiga. Futebol: fascismo e antifascismo na era neoliberal. Ludopédio, São Paulo, v. 134, n. 44, 2020.
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