102.16

Futebol feminino brasileiro entre o discurso e o bizarro

Luciane de Castro 16 de dezembro de 2017

Entra ano, sai ano e algumas bizarrices seguem como padrão no futebol das mulheres. Não, essas bizarrices não acontecem nas peladas ou nos jogos informais. O absurdo sempre rola em competições oficiais “organizadas” por federações ou pela própria CBF.

Se eu tivesse um pouco mais de paciência ou mesmo tempo, faria uma retrospectiva dos últimos dez anos – desde a primeira edição da Copa do Brasil, por que não? – com todos os casos de extrema irresponsabilidade de clubes e federações com as competições femininas.

Não acredito que em pleno 2017 ainda seja necessário martelar a questão da segurança das atletas e reforçar as linhas do Estatuto do Torcedor que vigora desde maio de 2003, ou seja, são quatorze anos de regulamento mal e porcamente cumprido especialmente quando se trata das mulheres em campo.

Já tivemos casos de cerca de dez atletas desmaiando em razão do forte calor, graças a falta de senso ao se escolher o horário de um jogo. Já tivemos atleta convulsionando em campo e sendo atendida por uma enfermeira solitária na arquibancada. A situação no geral é a ausência de ambulância e médico nos jogos.

Belo Horizonte - MG - 17/02/2016 - BRASILEIRÃO CAIXA 2016 - ESPORTES - Jogo 35 (Quinta Rodada) do Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino “Brasileirão Caixa 2016” entre, América MG x Rio Preto, realizado no Estádio Mario Guimarães em Belo Horizonte,MG; válido pelo grupo 02 do Brasileirão feminino 2016. Foto: DANIEL OLIVEIRA / ALLSPORTS
Lance do Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino. Foto: Daniel Oliveira/ALLSPORTS.

Seria fácil afirmar que no Brasil pós golpe, qualquer orientação legal é tratada como nada, mas o dar de ombros para a lei quando falamos de futebol feminino, é prática antiga, própria de pessoas que dizem que o futebol praticado pelas mulheres não dá lucro, mas não larga o osso e tampouco cumpre o mínimo necessário.

Não acredito que em pleno 2017 ainda seja necessário martelar a questão da segurança das atletas e ter que ouvir frases como “o futebol é um esporte de contato, logo passível de acidentes”, como argumento desqualificador da necessidade de cumprir a lei em jogos oficiais.

Voltarei dois anos e poucos meses no tempo para relembrar fato ocorrido no campeonato mineiro. Atleta convulsiona aos 42 minutos do segundo tempo e não tem médico em campo para o atendimento. No mesmo 2015, durante um dos encontros do Ciclo de Debates que mediei no Museu do Futebol, o coordenador de seleções femininas da CBF, Marco Aurélio Cunha, usou do argumento citado no parágrafo anterior quando questionei qual o papel da CBF em situações como estas.

Quando temos este posicionamento da entidade que se diz autoridade máxima do futebol brasileiro, não dá pra esperar outra coisa senão outros casos de falta de cumprimento do Estatuto do Torcedor.

Não acredito que em pleno 2017 ainda estamos lendo notícias sobre falta de médico e ambulância em jogos de futebol feminino. Pois é, mas estamos. A mais recente aconteceu novamente no Piauí, na final do estadual. Duas atletas se chocaram de cabeça num lance e, só para variar, onde estavam médico e ambulância? Em campo é que não estavam.

A notícia pode ser lida neste link.

Não vou retomar a seleção feminina principal como assunto porque não há nada de relevante até o momento que justifique gastar meus bytes. Quanto a este assunto especificamente, aguardo o desenrolar das competições oficiais, quer seja mundial de 2019. Me abster de acompanhar uma seleção que foi sabotada é questão de saúde, primordialmente, e de lealdade aos meus sentimentos. E eles não são sublimes em relação aos que ocupam os cargos por lá, portanto, não merecem minha atenção, sequer minha deferência.

Antes de fechar este texto, recebo a notícia de que a FIFA afasta Marco Polo Del Nero de qualquer atividade futebolística por 90 dias. Já não era sem tempo. O que lamento profundamente, é que há muita gente abaixo dele que seguirá desfrutando do ambiente do futebol sem acrescentar nada de novo, de responsável, de respeitável. Ao contrário, seguirá com conchavos, com uma pretensa pressão sobre os que questionam seus atos tão distantes do discurso e acariciando o ego e a vaidade de dois ou três que esquecem que a vida é roda gigante.

O presidente da CBF, Marco Polo del Nero participa da entrevista coletiva depois do anuncio dos jogadores que participarao dos jogos contra Argentina e Peru pelas eliminatorias da Copa do Mundo 2018, na Barra, Rio de Janeiro, Brasil, Setembro, Quinta-feira 22, 2015. A selecao jogara em Buenos Aires e Salvador dias 12 e 17 de novembro respectivamente. Foto Alan Lima/Mowa Press
O presidente da CBF, Marco Polo del Nero foi afastado do futebol. Foto Alan Lima/Mowa Press.

Entre o discurso e o bizarro, há toda uma rede de interesses e manutenção do status quo. Há quem se submeta por puro comodismo, há quem refute, por honra e dignidade.

Entre o discurso e o bizarro, há pessoas que juram que a CBF é o Brasil que deu certo. Há quem declare pública e desavergonhadamente, que a gestão de Marco Polo Del Nero é de uma lisura ímpar.

Entre o discurso e o bizarro, há atletas que seguem correndo sérios riscos.

Entre o discurso e o bizarro, o bizarro se destaca e o discurso fica gravado para ser cobrado  e este é o meu papel. Desagradável, muitas vezes, mas necessário.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Lu Castro

Jornalista especializada em futebol feminino. É colaboradora do Portal Vermelho e é parceira do Sesc na produção de cultura esportiva.

Como citar

CASTRO, Luciane de. Futebol feminino brasileiro entre o discurso e o bizarro. Ludopédio, São Paulo, v. 102, n. 16, 2017.
Leia também:
  • 178.22

    De beijos forçados a desequilíbrios de poder, a violência contra as mulheres no esporte é endêmica

    Fiona Giles, Kirsty Forsdike
  • 177.31

    A necessidade de se provar: misoginia e racismo no futebol

    Nathália Fernandes Pessanha
  • 177.30

    Marielle, Robinho, Daniel Alves e a eternização do machismo estrutural brasileiro

    Leda Costa