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Futebol Folguedo

Guilherme Trucco 19 de agosto de 2021
Maracatu
Caboclo de Lança, personagem do Maracatu de PE, e seus torcedores. Fonte: Diário de PE

 

Futebol arte? Futebol moderno? Futebol força?

Normalmente o termo futebol arte é utilizado para se opor ao futebol força, ou mesmo ao futebol de resultado. Acontece que esse tal futebol arte, como termo descritivo de uma ideia de futebol, talvez esteja desgastado, ou mesmo, seja compreendido de uma maneira simplista demais.

Se diz futebol arte em referência às Seleções Brasileiras, notadamente, da Copa de 70, ou ainda a Copa de 82. De fato foram times que ficaram conhecidos por praticar, dentro de campo, um estilo de jogo que encantou o torcedor, com jogadas de efeito, e placares elásticos. Entretanto, essa simples associação cria então uma oposição ao futebol força, termo criado no final da década de 70 e que se estendeu durante os 80 e 90, reconhecido como uma ideia de jogo que priorizava o preparo físico e a obediência tática em detrimento da arte pela arte, com a justificativa de ter melhores garantias de resultados, vitórias.

Já o futebol moderno parece querer unir todos os conceitos: obediência tática na marcação, aliada a um preparo físico que permita marcar ao mesmo tempo que propõe um jogo ofensivo, quando com a posse de bola. Um sintoma da modernidade capitalista líquida, que fragmenta o jogo em conceitos só obtidos através de muito investimento, tornando as equipes grandes cada vez maiores, e as pequenas cada vez menores.

O capital busca controlar todos os parâmetros da escala de produção, para garantir seus objetivos esperados: o lucro na operação. Ora, os corpos são uma matéria prima controlável: não só através do preparo físico de ponta, mas também de cerceamento de atividades extracampo, o zoneamento de tarefas específicas, o rigor e disciplina exagerados, como vemos em Foucault(1987), tarefas que acabam por objetificar o corpo do atleta de alta performance em detrimento do artista. Assim, equipes se tornam cada vez mais uma linha de produção de um produto, o qual torcedores irão consumir (ao invés de torcer), em estádios mais parecidos com shoppings, ou ainda em canais por assinatura.

O termo futebol arte parece então sugerir algo menor, apenas uma opção estética, um conjunto de jogadas bonitas, espetaculares, que, se não garantem o resultado esperado, podem ser emuladas, como um pôster impresso várias vezes, cópia barata de um quadro pintado à mão.

Entretanto, o tal futebol arte é muito mais do que uma estética de campo, um punhado de jogadas. Está longe de ser isso. Nunca foi isso. E este é o ponto nevrálgico da questão. Para ilustrar melhor o que considero como a ideia completa, proponho uma alteração de termo, e passo a conceituar agora o futebol folguedo.

A palavra folguedo vem do latim follicare, de follere, relacionado com follis, ou fole, instrumento utilizado para se inflar de ar, e soprar o fogo, atiçando suas chamas. Também é desta raiz que surge o termo folgar, pois follere também queria dizer “respirar, tomar fôlego depois de um esforço”.

O termo folguedo virou sinônimo de festas populares no Brasil, como os reisados, congadas, bumba-meu-boi, maracatus, marujadas, entre tantos. E ainda, os que participam destes folguedos são os foliões, estes que caem na folia, ou têm a cabeça cheia de ar, termo aliás que na França virou folie sinônimo de loucura.

Maracatu Rural
Maracatu de Baque Solto, uma manifestação folclórica com origem em Pernambuco. Foto: Wikipédia

O futebol arte compreenderia uma ideia muito mais ampla do que as jogadas de efeito. Nele está entranhado o conceito do improviso, do desimportante, da inutilidade, da desobediência de corpos que não se sujeitam a serem tratados como simples peças de reposição. O ex-jogador Afonsinho, do Botafogo da década de 70, em entrevista, comenta “com o futebol eu boto as coisas para fora. Se não fosse ele, talvez eu fosse músico. A gente sabe que é quase tudo a mesma coisa. É só botar pra fora: com pincel, caneta ou bola.” E ainda me vêm à cabeça Sócrates, o jogador da Seleção de 82, que chamava aquela equipe de “bagunça organizada”.

Sérgio Sant´anna, escritor da geração de 70, ao iniciar sua novela Páginas sem Glória(), abre com o seguinte parágrafo:

“Beleza pura também tem função? A arte deve ser aplicada? A esfera é a mais perfeita das formas? O gol bonito junta o útil ao agradável? (Já o pênalti costuma ser apenas útil, a não ser quando o cobrador joga o goleiro para um lado e a bola de mansinho em outro canto, às vezes na trave ou para fora.) Mas útil exatamente para quê? Ganhar ou perder faz diferença diante da morte?”

A grande questão é que esta bagunça organizada, este futebol inútil (parafraseando Sant´anna), não garante vitórias. Muito pelo contrário. Ele não se importa com a vitória. Culminando nesta dicotomia entre utilidade/vitória versus desimportante/arte.

O filósofo Guy Debord cunhou o termo sociedade do espetáculo, em seu livro homônimo, no qual destaca a diferença entre ser um espectador (aquele que assiste a algo mediante pagamento), e ser um ator(aquele que efetivamente performa o ato). Este espectador, que apenas emula viver o real mediante pagamento, culmina no que Karl Marx identificou como o fetichismo da mercadoria, transformando relações sociais em objetos precificáveis, mensuráveis. Quando a festa do futebol arte, a relação social entre jogador e torcedor, se transforma em mera relação comercial com a vitória como resultado final da transação, este fetichismo da mercadoria se aplica ao futebol.

A questão que surge é: estes dois conceitos são excludentes? Para que o futebol brinquedo exista, o futebol resultado não pode coexistir, e vice-versa?

Che Guevara Madureira
Excursão Madureira a Cuba com Che Guevara. Fonte: Reprodução/Acervo Madureira

Durante as décadas de 30 a 70, o futebol brasileiro passou por um processo de reconhecimento como algo exótico, este estilo e ideia de jogo diferentes do praticado pelo continente europeu. Neste ensejo, clubes eram convidados para excursionar pelo mundo, apresentando esta novidade. De fato, muitos clubes deixaram de jogar partidas oficiais de campeonatos das federações, como o Campeonato Carioca ou Paulista, para excursionar. Claro que o objetivo ali, também era uma barganha comercial mediante apresentação de espetáculo. Entretanto, existia, nesta prática, uma ruptura com o modelo de campeonato. Era mais importante, e mais rentável, apresentar uma ideia de futebol místico pelo mundo, do que ganhar títulos. Era uma ruptura também, de certa forma, com as autoridades estabelecidas das federações, tantas vezes criticadas por calendários que esgotavam os jogadores.

Destaco, por exemplo, a excursão do Madureira E. C. à Cuba e China, em 1963, ou a do Olaria em 1971, que tinha no elenco Afonsinho e Jair Rosa Pinto, e que alterou a forma como o próprio Afonsinho enxergava o futebol. Antes ainda, na década de 30, a rivalidade entre Remo e Paysandu no norte do Brasil era forjada em festivais, com grande presença de público, que terminavam com bailes promovidos pelas charangas de suas torcidas, ou mesmo de outros clubes como o Tuna Luso.

Sonho então com um futebol folguedo, que seja jogado por times que não se propõem ao futebol útil, do resultado em si, mas que excursionem contra times pelo mundo a fora, adversários no campo, enquanto nas arquibancadas as charangas tocam, e os estandartes vibram. Jogadores que não sejam peças de reposição, e sim foliões, ou goleadores que não sejam artilheiros, mas sim brincantes.

Se as vitórias são a meritocracia do futebol resultado, proponho a meritofagia através do futebol folguedo.

Referências bibliográficas

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

SANT´ANNA, Sérgio. Páginas sem Glória, São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Guilherme Trucco

Escangalho a porosidade das palavras. Rabisco um Realismo de Encantaria e futebol. Filho de Xangô e Iemanjá.

Como citar

TRUCCO, Guilherme. Futebol Folguedo. Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 35, 2021.
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