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Futebol, homofobia, saída do armário: por que Justin Fashanu é tão atual?

Wagner Xavier de Camargo 8 de março de 2020

No dia 19 de fevereiro passado, Justin Fashanu foi indicado ao Hall da Fama do Museu Nacional do Futebol (National Football Museum), em Manchester/Inglaterra, uma homenagem feita no dia em que ele completaria 59 anos. Sua nomeação coincide com o lançamento de um tour LGBTI+ dentro do Museu, o qual traz objetos que contam a história dessa população no contexto do futebol. E por que tal fato é importante para o futebol e sua história? Porque Justin foi o primeiro jogador dessa modalidade a se declarar “homossexual” nos anos 1990, ainda em plena atividade.

Se você gosta de futebol, assiste jogos e lê notícias sobre esse esporte, já percebeu que, vez ou outra, algo sobre sexualidades de jogadores aparece em meio a resultados e tabelas. Isso diz respeito a como tais mudanças têm sido percebidas por pessoas envolvidas com o futebol.

Naqueles anos, a revelação de Justin para um jornal sensacionalista inglês (o The Sun) foi um escândalo, apesar da homossexualidade já estar despatologizada à época – uma das últimas instâncias nesse sentido foi a decisão da Organização Mundial de Saúde (OMS) em retirar a homossexualidade da lista de doenças mentais em maio de 1990. Entretanto, apesar disso, atletas gays no esporte profissional era algo raro, constituindo-se como tabu. Ser homossexual e estar no esporte era incompatível com o “ser esportista” no senso comum de então.

Justin Fashanu no Norwich City. 19 de fevereiro é o dia em que Justin Fashanu nasceu e, em homenagem a ele, o dia em que foi lançada a campanha Football v Homophobia, no ano de 2010. Foto: Reprodução/Facebook.

Em que pese os tempos difíceis em que vivemos atualmente e as ondas conservadoras com respeito às livres expressões de sexualidade ou mesmo contra identidades de gênero não heteronormativas, há mudanças importantes em curso, relacionadas ao modo como futebolistas encaram suas vidas privadas (e, sobretudo, suas identidades sexuais) dentro ou fora dos gramados.

Se no Brasil ainda paira um silêncio sepulcral em torno dessas questões no futebol profissional, em outros lugares do mundo há casos surgindo que nos mostram uma lenta e gradual transformação de comportamento e opinião.

No mês do orgulho LGBTI+ de 2018, o meia Collin Martin, do Minnesota United (dos Estados Unidos), assumiu-se gay e se tornou, portanto, o primeiro jogador da Liga Americana de Futebol (Major League Soccer – MLS) em atividade. Vale lembrar que em 2013, Robbie Rogers, outro jogador de futebol daquele país, também se identificou abertamente como gay, porém ele estava sem contrato e, na mesma ocasião, declarou sua aposentadoria dos campos.

Robbie Rogers atuando pelo Los Angeles Galaxy em 2013. Foto: Wikipedia.

Contra as ondas de conservadorismo em que vivemos nas diversas sociedades (e se pode dizer, em termos globais), cada vez mais jogadores de futebol anunciam suas “saídas dos armários” da sexualidade, indicando que se reconhecem como gays, bissexuais e ainda simpáticos a uma situação de menos opressão e fobias instituídas em espaços futebolísticos.

Nesse sentido, importante comentar o apoio à causa por parte de Olivier Giroud, atacante francês que atualmente joga no Chelsea F.C. Integrante do escrete nacional francês que venceu a Copa do Mundo de Futebol Masculino da Rússia-18, Giroud comenta que mesmo sendo “quase impossível” se colocar como jogador homossexual nos espaços hegemônicos do futebol profissional, ele acredita que vale o esforço na direção do debate e aceitação. Quando ainda na equipe Montpellier (antes de ser transferido para o F.C. Arsenal), o jogador aceitou posar para a famosa Têtu, uma revista francesa voltada para o público gay.

Olivier Giroud foi capa da revista gay francesa Têtu em 2012. Foto: Reprodução.

Esses anúncios de “saída do armário” no mundo do futebol, independente se aparecem ainda irregularmente e como casos esporádicos, acabam trazendo a questão da sexualidade para dentro do esporte, como uma dimensão que também faz parte da vida (de esportistas e de quem aprecia o mesmo).

Quando se presencia jogadores como os citados, ou ainda outros de divisões mais baixas (por exemplo, Nicolás Fernandéz, que joga na Liga Cultural da 4ª divisão do futebol argentino), buscando anunciar uma condição de corpo sexuado distinta da heteronormatividade é porque há o que mostrar de algo sintomático em processo.

Se a sexualidade fosse, de fato, nada importante no meio esportivo, é de se imaginar que não haveria incômodo entre as pessoas em como se joga (ou se torce) pelo futebol. Mas tais casos mostram que o não alinhamento à heterossexualidade, além de político, é igualmente deflagrador de uma situação interessante: em espaços como vestiários, campos de aquecimento, alojamentos e concentrações, o desejo sexual é, então, múltiplo, polimórfico e polissêmico.

Bandeira da campanha Football v Homophobia. Foto: Reprodução/Facebook.

Por isso o ato de bravura de Justin Fashanu lá dos anos 1990 ainda é atual e paradigmático de outra (talvez nova) condição de tratar o corpo no esporte.

Como Justin foi um jogador profissional de grande envergadura, ainda permanece como o único dessa elite a não se reconhecer como heterossexual e pactuar com as prerrogativas instauradas por essa estética. Ele inspirou a The Justin Campaign, uma campanha contra a homofobia no futebol, que acabou sendo renomeada na atualidade para Football v Homophobia, em desenvolvimento no continente europeu.

Como o mundo sexista e machista do futebol masculino hegemônico global pouco se dá conta do que significou Justin Fashanu para sua trajetória, é de se louvar a atitude do Museu Nacional de Futebol da Inglaterra em homenageá-lo e pensar estratégias de contar outra história, reposicionando-o (não apenas como futebolista, mas como pessoa) dentro do corredor da fama do futebol internacional.


Para saber mais

CAMARGO, Wagner X. Justin Fashanu: jogador profissional de futebol, negro e gay! Ludopédio, São Paulo, v. 98, n. 06, 06 ago. 2017. Acesso em: 23 fev. 2020.

‘É impossível se revelar homossexual’, lamenta Giroud.  UOL/Futebol. Acesso em: 18 fev. 2020.

Jogador da MLS se torna o primeiro a se assumir gay publicamente na liga. UOL/Futebol, 20 jun. 2018. Acesso em: 20 ago. 2018.

Justin Fashanu inducted into the NFM Hall of Fame. National Football Museum. News, 18 fev. 2020. Acesso em: 20 fev. 2020.

PARROTINO, Roberto. ‘Cuando en la cancha me gritan puto, me doy vuelta y me río’. Tiempo/Argentina. Acesso em: 18 fev. 2020.

ROSA, Thiago. Futebol e homofobia: a triste história de Justin Fashanu. Ludopédio, São Paulo, v. 23, n. 15, 13 set. 2019. Acesso em: 23 fev. 2020.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Futebol, homofobia, saída do armário: por que Justin Fashanu é tão atual?. Ludopédio, São Paulo, v. 129, n. 8, 2020.
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