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Futebol, ideologia e dominação: potencialidades e limites do referencial teórico de John B. Thompson

Na Europa, as teorias críticas do futebol começaram a consolidar-se a partir do fim dos anos 1960, com o desenvolvimento de vários trabalhos que enunciavam e denunciavam as relações (umbilicais) entre futebol, poder e capitalismo (BRACHT, 2011). Entre outros argumentos, esses trabalhos defendiam que o futebol pode ser considerado o “ópio do povo”, possuindo uma “função ideológica” nas sociedades capitalistas. Afinal, ele contribuiria para legitimar as relações de dominação de classe, fazendo crer que essas relações são justas e dignas de apoio. Além de legitimar o capitalismo, o futebol, de acordo com tais teorias, tende a fragmentar a classe trabalhadora, minando sua capacidade de fazer frente às forças dominantes. Afinal, ele a dividiria em torcedores rivais – corintianos e palmeirenses; flamenguistas e vascaínos; cruzeirenses e atleticanos; colorados e gremistas; bugrinos e pontepretanos etc. Ao mesmo tempo, contribuiria para interligar, no plano simbólico e afetivo, oprimidos e opressores, que passariam a compartilhar identidades coletivas (clubísticas e nacionais) e interesses comuns (vencer os adversários e conquistar títulos). O futebol também ajudaria a mistificar a realidade social, distraindo a classe trabalhadora com a contratação de jogadores, debates sobre escalações do time, polêmicas do jogo etc. e encobrindo as opressões, injustiças e problemas que ela enfrenta no dia-a-dia.

Na América Latina, as teorias críticas do futebol também encontraram adeptos, como o ensaísta argentino Juan José Sebreli (1998) e o autor brasileiro Roberto Ramos (1984). No entanto, ainda na década de 1980, diversos trabalhos – oriundos, principalmente, do campo antropológico – começaram a questionar a tese do “opio do povo” e as “funções ideológicas” do futebol. Não é meu objetivo retomar, aqui, esses questionamentos, que já foram amplamente discutidos pela literatura especializada. Mas, sim, indicar de que modo o conceito de ideologia pode, ainda hoje, ser útil para a análise das relações entre futebol e dominação. Mais exatamente, retomando discussões realizadas em outras ocasiões (LOPES, 2016), neste texto, objetivo desenvolver uma (breve) reflexão sobre as potencialidades e os limites do conceito de ideologia de John B. Thompson para a compreensão das relações de dominação que caracterizam o universo do futebol. Meu interesse nesse autor específico deve-se ao fato de ele ter contribuído (e seguir contribuindo) para a renovação das teorias sociais críticas, servindo de alicerce teórico e metodológico para trabalhos desenvolvidos nas mais diferentes áreas das ciências humanas e sociais, tais como: a psicologia social, a comunicação, a sociologia e a linguística.

I – O conceito de ideologia de John B. Thompson

Thompson é um sociólogo e professor da Universidade de Cambridge, localizada na cidade de Cambridge (Reino Unido). Ainda que seus estudos mais recentes abordem o mercado editorial no século XXI, ele possui uma sólida e influente produção acadêmica sobre o debate intelectual em torno do conceito de ideologia, dialogando com diversos autores, tais como: Karl Marx, Louis Althusser, Hans-Georg Gadamer, Max Weber, Pierre Bourdieu, Theodor W. Adorno, Jurgen Habermas, entre tantos outros. Ao debruçar-se sobre as controvérsias e reviravoltas presentes na história desse debate, Thompson (2000) distingue duas concepções gerais de ideologia: primeira, a que engloba aquelas definições que consideram que a ideologia não é, necessariamente, um fenômeno negativo, isto é, que consideram que ela não é sempre ilusória, errônea ou está a serviço dos interesses dos grupos dominantes. A partir dessas definições, a ideologia equivale a uma visão de mundo, a um ideário, podendo estar a serviço tanto da dominação quanto da transformação social. Aqui, o fascismo, o anarquismo, o liberalismo, o comunismo, a social-democracia… seriam exemplos de ideologia.

Segunda concepção: aquela que é composta pelas definições que consideram que a ideologia é um fenômeno intrinsecamente negativo e que, por isso mesmo, deve ser condenado. Ele deve ser condenado porque constitui um corpo de ideias errôneas, ilusórias, abstratas, impraticáveis, que expressa os interesses dominantes e/ou que sustenta relações de dominação. Inserindo-se nesse segundo tipo de concepções, Thompson (2000) define ideologia como o sentido a serviço da dominação. Em outras palavras, para ele, uma forma simbólica (uma obra de arte, um discurso político, um seriado televisivo etc.) pode ser considerada ideológica quando, em um contexto sócio-histórico específico, estabelecer e sustentar relações de dominação, isto é, quando contribuir para produzir e reproduzir relações de poder que são sistematicamente assimétricas.

Da perspectiva do Thompson (2000), nenhuma forma simbólica pode, portanto, ser considerada intrinsecamente ideológica. Na verdade, isso vai depender da forma como ela é (res)significada e apropriada por determinados indivíduos e grupos sociais, ou seja, vai depender da forma como é socialmente utilizada. Por esta razão, podemos dizer que, seguindo sua linha de raciocínio, uma forma simbólica pode ser considerada ideológica em um contexto e em outro, não. O futebol, por exemplo, pode servir, em determinadas situações, para legitimar regimes ditatoriais e seus governantes (como o Videla, na Copa de 1978, ou o Médici, na Copa de 1970) e, em outros, proporcionar uma experiência democratizante. Mais ainda, pode, num mesmo contexto, possuir aspectos potencialmente ideológicos e aspectos potencialmente subversivos. Por exemplo, o discurso contra o processo de hiper mercantilização do futebol, chamado por torcedores-militantes de “futebol moderno”, pode, eventualmente, desafiar relações de dominação de classe e, ao mesmo tempo, reafirmar a xenofobia contra jogadores estrangeiros. Vale recordar, aqui, que uma das pautas do primeiro manifesto contra o “futebol moderno” era a limitação de jogadores estrangeiros, porque ocupariam o lugar de jovens jogadores nacionais (GOMES, 2020).

John B. Thompson
John B. Thompson. Fonte: divulgação

II – Potencialidades e limites do conceito de ideologia de John B. Thompson

Uma vez apresentada a conceituação de ideologia de Thompson (2000), cabe, agora, discutir seu potencial e seus limites para a análise das relações de dominação que caracterizam o universo futebolístico. Começo pelo seu potencial. Em primeiro lugar, tal conceituação evita a tendência de alguns estudos marxistas de vincular a ideologia, exclusivamente (ou principalmente), à dominação de classe. Notemos que, para Thompson (2000), uma forma simbólica pode ser caracterizada como ideológica quando ela servir a qualquer forma de dominação (de gênero, raça, idade, nacionalidade etc.), e não apenas a de classe. Por conseguinte, a partir dela, é possível discutirmos como o futebol pode estar a serviço das mais diferentes formas de assimetrias sociais. Mais ainda, é possível fazer isso de forma contextual. Afinal, para o autor, não há um eixo de dominação e de desigualdade a priori mais relevante do que outros. O peso de cada forma de dominação e o modo como ela irá se articular com outras formas irão depender sempre do contexto analisado.

Em segundo lugar, a conceituação de ideologia de Thompson (2000) permite cortar o elo, também estabelecido por alguns estudos marxistas, entre ideologia e falsidade epistêmica. Isso significa que, para o autor, a ideologia pode, eventualmente, dissimular a realidade social, desviando a atenção dos oprimidos das condições que os subjugam cotidianamente. No entanto, ela não, necessariamente, precisa operar desse modo. Trata-se de algo contingente; não necessário. Isso permite que Thompson escape de uma posição epistemológica realista, que faz crer que, por um lado, há pessoas que conseguem enxergar o “todo social”, que seriam capazes de desvelar os “segredos” ocultos da realidade; e que, por outro, há pessoas que simplesmente acreditam em ideias falsas e absurdas. No caso do futebol, as primeiras seriam os analistas (críticos) do esporte, que compreenderiam seu caráter alienante; e os segundos, seus amantes, que, inversamente, não conseguiriam compreender esse caráter. Como nos recorda Terry Eagleton (2013), essa posição, no entanto, incorre num velho problema: a partir de qual posição se formula o juízo daquilo que é considerado verdadeiro? Afinal, se há apenas um juízo verdadeiro (o dos analistas críticos), ele não pode ser formulado por esses próprios analistas, já que isso apenas evitaria a questão. Ao mesmo tempo, ele tampouco pode ser formulado de um ponto de vista que seja externo a esses analistas, justamente porque apenas eles deteriam o conhecimento verdadeiro.

Em relação aos limites da conceituação de ideologia de Thompson (2000) para a análise das relações de dominação no universo do futebol, destaco que, seguindo as próprias reflexões do autor, podemos dizer que essas relações podem ser estabelecidas e sustentadas não apenas pela mobilização do sentido, mas, também, de outras formas: por meio da força bruta, do cansaço, do hábito, da rotina, da indiferença, da apatia etc. Apenas para ficar com as duas últimas: é possível supor que a estrutura de poder do futebol se mantenha, ao menos em parte, pelo simples de que os torcedores não se interessam em participar da vida política de clubes e federações. Sendo assim, para uma análise mais completa dessa estrutura, é preciso ir além da identificação dos efeitos ideológicos potenciais do futebol e abordar também outras formas de manutenção das relações de dominação que se fazem presentes nesse universo.

Referências

BRACHT, Valter. Sociologia crítica do esporte: uma introdução. 4 ed. Ijuí: Editora Unijuí, 2011.

EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. São Paulo: Editora Unesp; Editora Boitempo, 1997.

GOMES, Vitor. A militância político-torcedora no campo futebolístico brasileiro. 138 f. (Dissertação em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 2020.

LOPES, Felipe Tavares Paes. Futebol, ideologia e cultura de massa: repensando a perspectiva crítica. Tríade: Comunicação, Cultura E Mídia, v. 4, 2016, p. 89-108.

RAMOS, Roberto. Futebol: ideologia do poder. Petrópolis: Vozes, 1984.

SEBRELI, Juan José. La era del fútbol. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1998.

THOMPSON, John. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social e crítica na era dos meios de comunicação de massa. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Felipe Tavares Paes Lopes

Graduado em Comunicação Social (ESPM) e em Filosofia (USP). Mestre (PUC-SP) e doutor (USP) em Psicologia Social. Pós-doutor em Sociologia do Esporte (Unicamp). Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da Uniso e pós-dourando no CPDOC-FGV. Realiza pesquisa sobre o movimento de resistência ao "futebol moderno" com auxilio da Fapesp.

Como citar

LOPES, Felipe Tavares Paes. Futebol, ideologia e dominação: potencialidades e limites do referencial teórico de John B. Thompson. Ludopédio, São Paulo, v. 168, n. 8, 2023.
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