1. No começo dos anos 1990, líamos nos jornais paulistas sobre as surpreendentes campanhas do Mogi Mirim Esporte Clube. O êxito era atribuído ao perfil tático da equipe, além da reunião de bons jogadores entre os onze que começavam cada partida. Era o Carrossel Caipira. Apelido foi inspirado no famoso movimento de troca de posições da seleção dos Países Baixos na Copa do Mundo de 1974. Os méritos eram do então pouco conhecido Osvaldo Alvarez, o Vadão, treinador da equipe.

Vadão também foi técnico da seleção brasileira de futebol para mulheres. Foto: Divulgação/CBF.

Em 1993, o Corinthians foi ao mercado para trazer jogadores do Mogi, o lateral-esquerdo Admílson e os atacantes Leto, Válber e Rivaldo. Os três homens de frente haviam antes atuado juntos também no Santa Cruz, de Recife, e jogaram bem no Timão, principalmente os dois últimos. Não houve recursos para a compra do passe de Rivaldo ao final do período de empréstimo. O Alvinegro, além de não ficar com o craque, viu-o brilhar no arquirrival Palmeiras. Na final do Brasileiro de 1994, ele, aliás, marcou dois gols contra o clube em que atuara no ano anterior. Quanto a Válber, lembro-me de gols, de uma partida pela seleção brasileira, e de haver ele cavado a expulsão do goleiro Zetti em partida contra o São Paulo.

O antigo técnico mogiano rodou por vários clubes nas décadas seguintes, com seu jeito calmo de falar e andar pela lateral do campo. Alcançou bons resultados, ainda que nem sempre. Vai fazer falta, agora que um câncer no fígado o matou.

Dener, quando vestia a camisa da Portuguesa. Foto: Wikipedia.

2. Li certa vez uma afirmação de Ugo Giorgetti que me pareceu ser expressão de um homem livre, o que não é pouco. Dizia que sua atuação na publicidade lhe dava condições para fazer cinema. Sem jamais ter se rendido a uma estética publicitária, sempre fez os filmes que lhe interessavam. De sua importante cinematografia, destaco Festa (1989), Sábado (1995) e O Príncipe (2002), além de Cara ou Coroa (2012), último trabalho do grande ator Walmor Chagas.

Mas há também Boleiros: era uma vez o futebol (1998) e nele estão Azul e Naldinho. O primeiro é o personagem principal do episódio final da obra, que é uma homenagem ao talentoso atacante Denner, da Portuguesa, de seleções brasileiras, de outros clubes. O segundo é o personagem vivido pelo ator Flávio Migliaccio, o Xerife do seriado que meu irmão assistia na televisão, em preto e branco, quando éramos pequenos. Naldinho participa da mesa de conversa e recordações dos velhos boleiros. Na parede do bar, ele aparece em uma foto com a camiseta do Corinthians, em pose que lembra a dos campeões paulistas do IV Centenário da Cidade de São Paulo, em 1954. Poderia ser um dos atacantes, Cláudio, o Gerente, ou Luizinho, o Pequeno Polegar. Ao final do filme, o gesto melancólico de Naldinho mostrando as pernas frágeis do corpo cansado e sem a vitalidade de antes expressa toda uma experiência, que é a do ex-jogador. Denner morreu em 1994, aos 23 anos recém-completados, em um acidente automobilístico, Walmor Chagas decidiu pôr fim à própria vida em 2013, Flávio Migliaccio fez o mesmo há poucos dias.

3. No começo dos anos 1990, encontrei por acaso um artigo de Alba Zaluar, uma autora que eu até então não conhecia. O esporte na escola e na política pública, publicado no periódico Educação e Sociedade, se ocupava da análise de projetos sociais que ofereciam práticas recreativas, muitas delas esportivas, a crianças e jovens. Nele a pesquisadora mostra o conflito entre uma ideia de “criança carente”, para a qual “qualquer coisa estaria bom”, defendida por professores, e a expectativa de aprender bem os esportes – o futebol, por exemplo – dos alunos. Estes desejavam dominar os fundamentos e técnicas para que pudessem fruir o jogo, assim como, destaca ela, houvesse uma formação mais adequada para apreciar, sob lente estética, as competições.

A leitura do texto me ofereceu uma bibliografia nova, que emoldurava e alimentava a abordagem rigorosa e livre de preconceitos que eu tinha diante de mim. Foi, naquele momento, uma referência decisiva que se aliaria anos mais tarde com o livro Cidadãos não vão ao Paraíso (1997), em que o esporte outra vez comparece. Trata-se de um estudo sobre a vida em favela, tópico que recebeu enorme atenção de Zaluar ao longo da vida, com frequência associado às questões da violência. A antropóloga que aliava atenção cirúrgica na pesquisa com compromisso social bem posicionado foi morta no final do ano passado por um câncer de pâncreas, tão maldito quanto o que matou Vadão, tão maldito como todas as versões dessa doença.

Simoni Guedes. Foto: Ivana Curi.

4. Mais ou menos na mesma época em que li o artigo de Alba Zaluar, deparei-me, ao vasculhar uma biblioteca pública, com o livro Universo do futebol (1982), organizado por Roberto DaMatta. Por meio de uma complicada operação postal, adquiri o luxuoso volume com quatro textos, mais a introdução e as belíssimas imagens de Rubem Gerschman. Aproveitei o contato com a extinta editora Pinakotek e agreguei Universo do carnaval, também de DaMatta, ao pedido. Lembro-me bem da foto e da apresentação de Simoni Lahud Guedes estampadas na bonita encadernação, onde eu li que em 1977 ela defendera um mestrado em Antropologia tendo com o futebol como tema. No mesmo ano, ainda criança, eu caminhava por Copacabana com uma prima canadense, dois anos mais velha, que me perguntou por que não havia mulheres jogando futebol nas várias partidas disputadas sobre as areias da praia. Respondi de forma simples, não sem provocar alguma surpresa nela, dizendo que no Brasil mulheres não jogavam futebol. Isso mostra um pouco do pioneirismo absoluto do trabalho de Simoni, que há mais de quarenta anos, quando sequer se permitia que mulheres fossem futebolistas, aventurou-se pelo tema.

Desde o primeiro contato com seu trabalho, passei a acompanhar o trabalho de Simoni, vindo a conhecê-la pessoalmente em 2003, na Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, em Caxambu. Encontramo-nos outras vezes, uma delas em Buenos Aires, quando fomos assistir, com o amigo Antonio Jorge, a uma partida entre Vélez Sarsfield e River Plate, em 2004. Em outras ocasiões estivemos juntos em Florianópolis: argui-me com rigor e justiça em uma Reunião de Antropologia do Mercosul (2003), compusemos uma mesa, coordenada por Carmen Rial, na Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em 2006, ela foi avaliadora externa do Programa PIBIC/UFSC anos depois. Com diferenças de posição bem marcadas entre nós, ela sempre foi cordial e respeitosa comigo. Quanto procuro um texto escrito de forma inteligente sobre futebol, os de Simoni são sempre uma evidente opção. Ademais, admiro muito seu livro Jogo de corpo: um estudo de construção social de trabalhadores. Em pouco menos de dois meses, completa-se o primeiro ano da morte dela, ocasionada pela falência dos rins.

Oswaldo Alvarez, Denner, Walmor Chagas, Flávio Migliaccio, Alba Zaluar, Simoni Lahud Guedes.

Ilha de Santa Catarina, maio de 2020.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Futebol – mais contas no rosário de perdas. Ludopédio, São Paulo, v. 131, n. 70, 2020.
Leia também:
  • 178.8

    Grandes carreiras, pequenas ideias: declarações mais que infelizes contra Vini Jr. e Aranha

    Alexandre Fernandez Vaz
  • 177.23

    Torcidas, futebolistas: zigue-zague de alegrias e tristezas

    Alexandre Fernandez Vaz
  • 177.17

    O Ninho: Vivendo e morrendo Flamengo

    Eduarda Moro, Alexandre Fernandez Vaz