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Os primórdios do futebol na Alemanha (1874-1914)

No século XIX, a principal modalidade esportiva em termos de popularidade na Liga Alemã (Deutscher Bund) era o Turnen, ou seja, a ginástica conforme fora concebida pelo pedagogo e político Friedrich Ludwig Jahn (1778-1852), mais conhecido como “Turnvater Jahn”, “Jahn, o Pai da Ginástica”. Originalmente, o Movimento pela Ginástica (Turnbewegung) concebido e propagado por Jahn estava associado ao protonacionalismo alemão gerado no contexto das Guerras Napoleônicas. Assim idealizada, a ginástica destinar-se-ia à preparação da juventude na luta contra a ocupação napoleônica dos Estados alemães.

Friedrich Ludwig Jahn, litografia de Georg Engelbach (1852). Foto: Wikipédia.

Naquela época, cada vez mais, exercícios físicos eram conduzidos em grupos e associações que valorizavam a disciplina e o condicionamento nos moldes do militarismo, bem como noções como harmonia, uniformidade e comunidade, a partir do princípio dos quatro “f”s – frisch, fromm, fröhlich, frei – vigoroso, devotado, alegre, livre. Por um lado, rejeitava-se o desempenho individual e, por outro, considerava-se prejudicial a disputa orientada por desempenho. Era, pois, uma prática de atividades corporais ritualizadas e coreografadas, como uma série de fotografias registrou tal fenômeno esportivo.

XII. Festa Alemã da Ginástica em Leipzig 13 de julho de 1913 35 exercícios gerais livres – 17.000 ginastas

Foi exatamente nesse cenário que o futebol chegou à Alemanha em meados da década de 1870, praticamente apenas quatro anos após o país ter se constituído enquanto Estado Nação, fundado em janeiro de 1871, no contexto da vitória prussiana sobre a França. Em seus primórdios, o esporte bretão surgia como uma alternativa atraente ao Turnen: ao invés de um grupo difuso de praticantes entrava em cena uma equipe formada por 11 jogadores, a qual se lançava em disputa com outra equipe formada igualmente por 11 jogadores. Ao mesmo tempo, toda equipe necessitava de conjunto e de individualidades que se destacassem em relação à equipe adversária. Portanto, ao contrário do Turnen, o futebol incentivava a disputa, o que significava que, para se estabelecer como prática esportiva alternativa, seria necessário que ocorresse uma profunda mudança de visão em relação à cultura de práticas corporais e esportivas.

Aquilo que nos dias atuais nos parece óbvio, de que o futebol seria um esporte de contato físico, foi um aspecto que fascinou os primeiros praticantes em terras germânicas, pois permitia usar o corpo de uma maneira mais livre, descontrolada e intensa do que aquele modo de lidar com o corpo no Turnen. Quando os primeiros professores introduziram a prática do futebol em suas aulas, as primeiras turmas do ensino primário se mostraram encantadas com a novidade. Todavia, as turmas do ensino médio sentiam-se constrangidas ao terem de disputar uma partida trajando calça curta em público. E há vários relatos daquela época noticiam um constrangimento público causado por jogadores, quando estes atravessavam a rua vestidos com calções, indo em direção ao campo – naquela época, ainda não havia campos determinados, vestiários ou sedes clubísticas.

Assim como Charles Miller (1874-1953) figura como sendo o “pai do futebol” no Brasil, a Alemanha também conheceu um pioneiro da difusão do esporte bretão: Konrad Koch (1846-1911), um professor de Inglês que atuava no Colégio Martino-Katharineum, na cidade de Brauschweig, e que, em 1875, publicou em Alemão as primeiras regras do futebol., após ter estado uma temporada na Inglaterra. Inicialmente, a nova prática esportiva encontrou resistência entre pedagogos mais afeitos ao Turnen, pois a consideravam uma “doença inglesa”, a qual deveria ser combatida.

Por sua vez, o futebol parecia ser uma nova manifestação cultural da juventude, que assimilava as tendências que chegavam do Exterior, fato que acabou por levar as agremiações de Turnen a se abrirem e adotarem o futebol. Na virada do século XIX para o XX, o futebol permanecia um domínio masculino que pouco atraia as mulheres, e que era praticado em ambientes que não lhes permitia o acesso.

Wilhelm Carl Johann Conrad Koch.

Além de difundir as regras para a prática do futebol, Konrad Koch incluiu em sua publicação também regras para o cuidado com a saúde de seus alunos: fracos e doentes só poderiam praticar futebol mediante permissão médica; era terminantemente proibido praticar futebol sem a supervisão do professor; em condições de tempo adversas, só jogariam aqueles que se dispusessem voluntariamente; recomendar-se-ia ao aluno acometido de gripe que usasse blusa de lã em jogos de futebol durante a tarde. A iniciativa pedagógica de Konrad Koch logo se difundiu para outros colégios na Alemanha, em cidades como Göttingen, Hannover e Hamburgo.

Regras da Agremiação de Futebol do Ensino Médio Do Colégio Martino-Catharineum (1875), publicação de Konrad Koch.

Todavia, para além do âmbito dos colégios, o fascínio pelo futebol cresceu rapidamente no Império Alemão. Logo se formaram alguns centros em que o futebol passou a ser praticado, sobretudo aqueles que possuíam laços estreitos com a Inglaterra: Munique, Karlsruhe e Berlim. Em 1890, foi fundada na capital do Reich a Liga Alemã de Jogadores de Futebol (Bund Deutscher Fußballspieler). Entretanto, o desejo de se ter um órgão central que organizasse a prática do futebol no país levou à criação da Liga Alemã de Futebol (DFB – Deutscher Fußballbund) em 28 de janeiro de 1900.

Primeira representação do futebol em Berlim (1892), ilustração de Ernst Limmer: Disputa entre uma seleção de Berlim e o Dresdner Fooball Club.

Desde o início, o futebol esteve envolvido com questões políticas. No tempo do Império (1871-1918), as tensões entre a Alemanha e outras nações, sobretudo a Grã-Bretanha, atingiram também o âmbito do futebol. Naquele período, o futebol era interpretado como parte de estratégias de educação física para elevar o potencial de combatividade dos jovens, bem ao estilo do militarismo alemão da época, que via nos esportes coletivos tal potencial. Assim, as equipes surgiam como mimetizações de dois exércitos que se combateriam no campo de jogo (Spielfeld), igualmente como mimetização do campo de batalha (Schlachtfeld), em movimentos de defesa (Verteidigung) e ataque (Angriff). Tais tensões chegaram a atingir também o âmbito lingüístico: puristas da Língua Alemã criticavam o amplo uso do jargão futebolístico em Inglês.

Não é por acaso que, em seus primórdios, o futebol tenha se difundido entre as camadas sociais mais abastadas, que possuíam tais contatos através de universidades, escolas ou ambientes profissionais, contando com estudantes, comerciantes e engenheiros britânicos que queriam manter os laços com a terra natal através da prática esportiva que mais se popularizava à época.

Entretanto, não demorou muito até que o futebol se tornasse, igualmente, popular entre as camadas operárias. Um exemplo patente desse fenômeno no contexto alemão foi a fundação do Fußball-Club Gelsenkirchen-Schalke 04 em 04 de maio de 1904, até hoje, um dos clubes mais populares do país, por jovens operários em Gelsenkirchen, uma das principais cidades do Vale do Ruhr, região de produção de carvão e de indústria pesada, e, portanto, distante de centros comerciais ou mesmo universitários.

Assim, o futebol se tornou uma prática esportiva em franco desenvolvimento na Alemanha, evidenciado pela crescente importação de equipamentos para sua prática, como camisas, bolas e chuteiras. Além disso, equipes inglesas que excursionavam pelo país atraiam a atenção de um bom público, e o jargão do futebol em Inglês começou a se estabelecer em solo alemão como índice de modernidade. Da mesma forma, no início o século XX, equipes alemãs excursionaram pela Inglaterra e por outros países da Europa. O Sport Club Freiburg, por exemplo, viajou para a Itália em 1914 e disputou partidas em Gênova. No ano anterior, a equipe do sul da Alemanha já havia excursionado pela Suíça, apresentando-se nas cidades de Olten e da Basiléia.

A rápida ascensão do futebol como esporte popular na Alemanha deveu-se ao sucesso da organização da DFB, bem como à criação de um campeonato alemão em 1903, à formação de uma seleção nacional que, a partir de 1908, passou a disputar jogos internacionais, e à criação de associações estaduais e regionais. A iniciativa pioneira de Konrad Koch, de meados dos anos 1870, passados quase 150 anos, resultou em inúmeros frutos que tornaram a Alemanha uma das potências do futebol mundial, tetracampeã de 1954, 1974, 1990 e 2014. Nos dias atuais, a Bundesliga – Campeonato Alemão da primeira divisão – é um dos principais campeonatos do planeta.

Referências

BRÜGGEMEIER, Franz-Josef. Anfänge des modernen Fußballs. Informationen zur politischen Bildung. n. 290, p. 7-13, 1º Quartal 2006.

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Sentimento e política no futebol alemão: construções da “nação” em 1990 e 2006História: Questões & Debates. Curitiba, n. 57, p. 73-99, jul./dez. 2012. Acesso em: 29 abr. 2019.

CORNELSEN, Elcio Loureiro; CURI, Martin; HOLLENSTEINER, Stephan. Kleines Wörterbuch zum deutschen und brasilianischen Fußball. ed. bilíngue português-alemão, Rio de Janeiro: DAAD, 2014.

GÜLDENPFENNIG, Sven. Frisch, fromm (?), Freiheit, Frieden. In: LIENEN, Ewald et al. (org). Oh!Lympia: Sport, Politik, Lust, Frust. Berlin: Elefanten Press, 1983, p. 165-167.

RÜRUP, Reinhard. Organized Sports in Germany. In: RÜRUP, Reinhard (org.). 1936: Die Olympischen Spiele und der Nationalsozialismus. 2. ed. bilíngue alemão e inglês, Berlim: Stiftung Topographie des Terrors, 1996, p. 20-27.

Site do Deutscher Fußballbund (DFB).

Site da Enciclopédia Alchetron.

Site do Los Angeles Turners.

Site da cidade de Braunschweig.

Site do jornal Berliner Zeitung.

Site da Upclosed.


Artigo publicado originalmente em História(s) do Sport.


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Elcio Loureiro Cornelsen

Membro Pesquisador do FULIA - Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, da UFMG.

Como citar

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Os primórdios do futebol na Alemanha (1874-1914). Ludopédio, São Paulo, v. 140, n. 6, 2021.
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