Em agosto passado veio a público um vídeo gravado dentro de um avião no qual dois rapazes dançavam e cantavam, em tom de provocação, a música “Robocop Gay” em um voo de Brasília para São Paulo (veja o vídeo ao final do texto). A provocação era dirigida ao pastor e deputado federal pelo PSC de São Paulo Marco Feliciano. Como é do conhecimento dos reinos mineral, vegetal e de alguns do reino animal, Feliciano representa o pensamento conservador brasileiro e, por ironia e ônus da tal governabilidade, preside a Comissão de Direitos Humanos do Senado, mesmo com seus posicionamentos políticos distantes do que pode ser chamado, genericamente, de defesa de “minorias”. A grita internet afora foi intensa, mas aos poucos se desmanchou no ar, como tudo o que não é sólido em tempos de modernidade líquida. Aparentemente, aos poucos estamos nos acostumando com a ideia de termos o excelentíssimo deputado na presidência da referida Comissão, na Câmara, na vida política brasileira – em que pese o fato de Feliciano ser pastor e associação entre política, experiência de dimensão pública, e religião, da ordem do privado, ser no mínimo contestável.
Semanas depois disso, mais precisamente na primeira terça-feira deste setembro, dia 03, a Câmara de Vereadores de São Paulo aprovou, com 37 votos a favor e 15 contra, a Salva de Prata para o Batalhão da Polícia Militar. De acordo com a reportagem de Giba Bergamin Jr. publicada na Folha de S. Paulo no dia seguinte, tratava-se, a homenagem, de um pedido feito pelo Coronel Telhada, vereador pelo PSDB que, após comandar a Rota, aposentou-se no ano passado. O pedido do vereador Toninho Vespoli, do PSOL, de que a votação fosse nominal para que a população soubesse quem eram os favoráveis e os contrários àquela homenagem feita para uma polícia acusada de violência não impediu que a homenagem se realizasse, mesmo sob protestos. Aos ativistas de diretos humanos que estiveram presentes à votação e se manifestaram contrários à homenagem, Telhada, ao final da sessão, mandou beijos.
Outro beijo caiu como uma rajada em meio ao vespeiro que é o pensamento conservador no futebol brasileiro. Após ter atuado em jogo contra o Coritiba, o jogador do Corinthians Emerson Sheik, o mesmo ovacionado pela torcida nas recentes conquistas que têm notabilizado o time, publicou em sua conta no Instagram um foto dando um selinho em um amigo. Foi o suficiente para que a turba do pega e lincha, prováveis eleitores de Telhada e Feliciano, agissem da maneira que lhes é característica, guiados pela truculência do pensamento totalitário.
A produção sobre os impactos que a Copa do Mundo e outros megaeventos esportivos causarão no Brasil a pequeno, médio e longo prazo é intensa. Não é pra menos: exemplos históricos de diversos períodos que vão da Cidade do México de 1968 à Moscou de 2013 comprovam que “os olhos do mundo” voltados para as cidades e o país que sedia um megaevento esportivo cria na população local um sentimento de que aquela é uma boa oportunidade para dar visibilidade à questões que na conjuntura política local enfrentam dificuldades das mais variadas ordens para se estabelecer. E as discussões sobre direitos humanos e esporte é uma delas.
Futebol não é religião. Quem alimenta essa perspectiva o faz por inocência, desonestidade ou preguiça para reflexões complexas. Um dos resultados é a manutenção do senso comum de que naquele ambiente há um salvo-conduto (legitimado por um ranço conservador, diga-se) que garante ser o futebol um local livre para toda e qualquer ofensa ao outro e autoriza essas ofensas. Assim, inocentes, desonestos e preguiçosos atacam e difamam os adversários supostamente “só” para desestabilizar esse oponente. Só que esse ataque se mistura à ira de quem se sente pouco à vontade em conviver com o diferente. Como Narciso frente ao espelho d´água, mergulham em um lago totalitário menos preocupados em se afogar do que em reafirmar para si e impor para os outros que são os seus valores estéticos e morais os que devem ser predominantes, não o dos outros. Uma atitude que tem mais relação com suicídio do que com vida em uma sociedade plural.
Além dos dividendos econômicos (que, a propósito, já foram devidamente rateados para os mesmos de sempre) a Copa do Mundo de 2014 pode ser uma oportunidade para jogarmos outras rajadas em outros vespeiros. Quem sabe, fazer dessa experiência uma oportunidade para que a convivência em meio à diversidade seja um vislumbre cada vez mais possível, e pavimentar o caminho para mudanças. Mudanças que repercutam, por exemplo, na representatividade política de nossos parlamentares. Ou isso, ou continuaremos a ver pastores no congresso e homenagens à rota em nossas assembleias.