07.4

Futebol sem véu – Casablanca, Marrocos

Nicole Matuska tinha chegado a Marrocos há pouco tempo. A norte-americana, de 26 anos, saiu da Florida, EUA, para fazer uma pós-graduação sobre futebol feminino em Marrocos. No sul do país, enquanto incentivava um grupo de meninas que jogava na rua, viu um pai ir buscar a sua filha pelo braço. “Isto é para rapazes. Tu não podes jogar futebol”, disse-lhe. Nicole não desistiu. Há três anos que trabalha com mais de cem jovens marroquinas espalhadas pelo país, tentando persuadir os seus pais a ignorar os preconceitos de gênero e a atenuar os dogmas religiosos, fomentando a paixão das meninas pelo esporte. “As miúdas marroquinas adoram jogar futebol mas anda é difícil convencer os pais. Nas zonas rurais, pensam que se jogarem futebol não vão poder tratar dos filhos e nenhum homem as vai querer para constituir família”, diz.

Quando encontrei na Internet o Projecto Zeedee, fundado por Nicole, fiquei surpreendido. Na minha primeira viagem a Marrocos, em 2007, em que percorri essencialmente o interior do país, contei pelos dedos das mãos as mulheres que andavam na rua de cabelo ao vento e nem sequer passei os olhos pelo seu tom de pele caramelizado dos punhos até aos ombros e das coxas aos tornozelos. Por isso, não conseguia compreender como é que onze mulheres poderiam entrar em campo de camiseta justa e de calções, com as bancadas repletas de homens de barba longa. Combinamos um encontro com a norte-americana às 16h15m, em Casablanca, para que nos introduzisse o futebol feminino no universo islâmico. Depois de uma manhã perdida em Rabat para tratar do visto para a Mauritânia, percorremos os 100 km que separam a capital política e o centro econômico do país. Casablanca é uma autêntica selva urbana. Abriga 3,7 milhões de pessoas no centro, a que se soma um número incógnito de migrantes que fogem das montanhas do Atlas e do deserto e se instalam em barracas de madeira e cartão nos subúrbios, em busca do milagre urbano. Nicole, loira, olhos azuis e ombros largos, já nos esperava à porta do McDonald’s do bairro cosmopolita de Maarib, quando chegamos atrás do carro de um jovem solidário que nos viu totalmente perdidos nas largas avenidas da cidade.

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A jovem Ibtissam durante um treino do NASIM. Foto: João Henriques.

“Vou apresentar-vos a equipe do NASIM, do bairro de Sidi Moumen, bastante tradicional, onde vivem muitos fundamentalistas e de onde são originários alguns dos homens bombas marroquinos”, explica, já dentro do jipe. O NASIM não é uma equipe qualquer. É formada por 25 jovens de idades compreendidas entre os 15 e os 19 anos, todas moradoras daquele bairro periférico e que ocupa a segunda posição de seu grupo no campeonato nacional. Chegamos ao campo de treinos ao cair da noite. Campo de treinos é uma expressão carinhosa. Trata-se de um terreno baldio arenoso cheio de pedregulhos e sem balizas, adjacente a um campo com piso de cimento, onde alguns rapazes trocam uns passes. Do alto da torre da mesquita, ecoa uma oração profunda e misteriosa. Imbuídas no prazer profano do futebol, as futebolistas, exibindo os seus joelhos e pernas exercitadas, ignoram o chamamento divino. Apenas três delas usam foular, o típico véu que as mulheres marroquinas usam para cobrir o cabelo. “Elas têm direito a escolher o equipamento que usam. A maioria não quer usar o véu, camisolas e calções longos”, diz Faras Adil, o treinador da equipa. O técnico, que começou a trabalhar no futebol feminino em 1998, acredita que o desporto contribui bastante para a emancipação da mulher: “Muitas das meninas não têm pais ou têm pais desempregados e vêm na equipa uma forma de esquecer os problemas. Aqui ganham a disciplina que as vai ajudar ao longo da vida. O grande problema é que não temos condições para praticar”. Já Nicole, detecta mais algumas dificuldades: “A maioria das menores joga até aos 19 ou 20 anos mas depois de casarem e terem filhos, deixam de aparecer nos treinos. Não têm tempo para evoluir”. Ibtissam Haidi está perto dessa idade. Tem 18 anos e chamam-lhe a Messi marroquina. Entende-se porquê. Com a bola a saltar nas pedras de forma imprevisível, Ibtissam consegue dominá-la com o calcanhar, levantá-la e pôr-se a dar toques com os dois pés. Já participou num pequeno estágio de futebol em Chicago e tem recebido ofertas de outras equipes marroquinas. “Quero continuar a jogar futebol e ser como o Messi ou a Marta (futebolista brasileira considerada a melhor do Mundo). Porquê o Messi? Porque sou baixinha como ele!” As jogadoras mais novas têm-na como referência: “Quando for grande quero ser como a Ibtissam”, diz Imane, 11 anos, a novata do clube.

De blusão e chapéu pretos e calças de ganga descaídas, cabelos negros compridos e uns olhos castanhos que emanam ao mesmo tempo doçura e rebeldia, Ibtissam passeia pelo bairro de Sidi Moumen, onde vivem mais de 3500 pessoas. Na rua, processam todo o tipo de atividades. Engraxam-se sapatos, vende-se pão e assa-se carne, há fumo no ar e gritos de crianças a brincar. Os menores perseguem Ibtissam como a um ídolo do futebol mundial. As mulheres de foular na cabeça, felicitam-na. Entramos em sua casa, um humilde terceiro andar em frente à escola primária. Ibtissam vive com a mãe e a avó, numa rara casa feminina com paredes cor-de-rosa e um sofá de padrão árabe colorido a todo o perímetro da sala. Sobre uma pequena mesa, bolachas e chá. Um relógio de parede ornamentado com o desenho de um Alcorão dourado serve para pendurar as medalhas conquistadas pela jogadora. Foi aqui que Ibtissam começou a jogar com pouco mais de dez anos, usando a janela como baliza imaginária. “Nunca me opus a que ela jogasse à bola. Só vou ficar triste se ela tiver de ir jogar para a Europa”, diz Jadib Saadia, a mãe da atleta. No seu tempo, as mulheres não podiam praticar esporte. Mas as mentalidades estão a mudar. Hoje, Marrocos tem mulheres no Governo, no Parlamento e a administrar grandes empresas. Na zona de discotecas de Casablanca, adolescentes divertem-se de mini-saia, ventre descoberto e cabelos soltos, bebendo cerveja e dançando ao som de músicas ocidentais. “Nos anos 70 e 80, as mulheres tinham de jogar às escondidas, mas hoje esse tabu só persiste em zonas mais conservadoras. Marrocos dá a possibilidade de as mulheres escolherem a sua vocação”, diz Salah Ouldarbia, organizador do campeonato nacional feminino.

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Foto: João Henriques.
Para pôr em prática a igualdade de gênero, o NASIM organizou um confronto entre nós e as três melhores jogadoras da equipe: Ibtissam, 18 anos, Boukhami Siham, 18 e Jihane Elhabgui, 19. Depois de estarmos 10 minutos a correr frustrados atrás da bola, Ibtissam parou à minha frente com a esfera no pé direito. Com um movimento com a parte exterior do pé e outro repentino com a parte interior, colocou-me a bola por debaixo das pernas. O treino acabou ali, quando o jornalista português levou um nó cego da Messi marroquina. O treinador Faras Adil, talvez mostrando a sua compaixão para com aquele momento humilhante, ofereceu-se para nos hospedar em sua casa. Estacionamos em frente do seu prédio e esperamos enquanto o gentil Adil foi preparar as coisas para nos receber. Voltou cinco minutos depois, com um sorriso envergonhado escondido sob os seus óculos e boné. “Estou desolado. Estou casado há quinze dias e a minha mulher não deixou que vocês dormissem lá. Mas eu vou com vocês”, disse. Acabamos os quatro numa churrascaria pequena, a comer à mão frango assado, com dois franguinhos amarelos a olhar desdenhosamente para nós através de um quadro, enquanto pensávamos o quanto estávamos enganados ao julgar que a mulher marroquina era subjugada pelo homem. Os tempos estão a mudar em Casablanca.
*Tiago Carrasco, João Henriques e João Fontes estão rumo à Àfrica do Sul no projeto Road to World Cup. O texto foi adaptado ao português do Brasil.
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Tiago Carrasco

Tiago Carrasco é jornalista e tem 34 anos. Publicou dois livros, centenas de reportagens nos mais prestigiados órgãos de comunicação social portugueses e é autor de dois documentários. Em 2013, ganhou o Prémio Gazeta Multimédia, da Casa de Imprensa, com o projecto "Estrada da Revolução". Com uma carreira iniciada em 2014, tem assinatura em trabalhos exibidos pela TVI e RTP, e impressos pelo Expresso, Sábado, Sol, Record, Notícias Magazine, Maxim e Diário Económico, para além dos alemães Die Welt e FAZ. Em 2010, desceu o continente africano de jipe num projecto que daria origem ao livro "Até lá Abaixo" (na terceira edição) e a um documentário com o mesmo nome. Em 2012, fez a ligação terrestre entre Istambul e Tunes durante a Primavera Árabe, que originou o livro "Estrada da Revolução" e o documentário homónimo. Foi responsável pelos conteúdos do documentário "Brigada Vermelha", sobre a luta de um grupo de adolescentes indianas pelos seus direitos enquanto mulheres. Cobriu importantes eventos internacionais como a guerra civil na Síria, o pós-revolução no Egipto, Líbia e Tunísia, o Mundial de futebol em 2010, a anexação da Crimeia por parte da Rússia, o referendo pela independência da Escócia, o movimento de independência da Catalunha, a crise de refugiados na Europa e a crise económica na Grécia e em Portugal. Muito interessado em desporto, esteve presente no Mundial'2010 e no Euro'2016 e já entrevistou grandes figuras do futebol: Eusébio, Madjer, Paulo Futre, Rivaldo, Deco, Roger Milla, Abedi Pelé, Basile Boli, Ricardo, Abel Xavier, Scolari, Chapuisat, Oscar Cardozo.

Como citar

CARRASCO, Tiago; HENRIQUES, João; FONTES, João. Futebol sem véu – Casablanca, Marrocos. Ludopédio, São Paulo, v. 07, n. 4, 2010.
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