98.3

“Somos contra tudo”: Çarşı, as vozes rebeldes e ensurdecedoras do futebol turco

Esta é a história de uma comunidade acústica futebolística. Um conceito interessante, já que estamos razoavelmente acostumados com o barulho associado ao futebol, dentro e fora do estádio. Mas a torcida retratada aqui conseguiu produzir um nível de sons futebolísticos que está muito acima do patamar conhecido por estas bandas.

Cabe antes um adendo. Apesar dos infames sete a um da Copa de 2014 – e mesmo em face dos inúmeros ‘um-sete-um’ aplicados semanalmente sobre os torcedores (e as torcedoras) brasileiros, muitos ainda acreditam romanticamente no poder do futebol pátrio. Se não no campo, onde andamos tropeçando bastante, talvez nas arquibancadas – afinal, quem seria capaz de suplantar a paixão e o barulho da charanga do Flamengo?

Esta certeza do ‘torcer’ como algo legitimamente brasileiro foi levemente arranhada na própria Copa, com outras torcidas como a Argentina fazendo festas incríveis durante o evento. Claro que alguns alegam que a Copa foi uma exceção, o “verdadeiro’ torcedor brasileiro não teria ido a Copa por conta dos preços, etc. Brasileiros ainda seriam os eternos e incontestes campeões mundiais do carnaval futebolístico.

Se há vários grupos de “ultras” ao redor da América do Sul e do mundo com muita energia para questionar esta verdade, a resposta derradeira vem do grupo de torcedores de um time do futebol turco, o Beşiktaş Gymnastics Club. Um dos maiores clubes do futebol turco, pelo qual já passaram alguns jogadores  brasileiros bem conhecidos, como Ricardinho (campeão do mundo em 2002) e Bobô, fora do campo o Beşiktaş conta com um dos grupos mais barulhentos – se não o mais – de torcedores ao redor do mundo. Falo do Çarşı (pronuncia-se Charshi), um grupo de torcedores famoso tanto pelas suas coreografias, pelas suas posições mais a esquerda (se consideram anti-racistas, anti-sexistas, anti-fascistas, pluralistas e ecológicos), e sobretudo pela sua maneira genuína de vocalizar seu amor e apoio a sua equipe.

Em geral, no futebol turco, os torcedores chamam seus grupos e subgrupos pelo nome do próprio clube, de uma cidade ou mesmo de um lugar na cidade. Assim nasceu o Çarşı (palavra que significa ‘Mercado’ em turco): no início dos anos 1980, vários jovens torcedores do Beşiktaş se reuniam no mercado central da sua localidade, para conversar, curtir e torcer pelo seu time. Assim, em 1982, surgia o Çarşı, um grupo que se define por ser muito mais que um amontoado de pessoas que se junta no Kapalı (Arquibancadas cobertas) do estádio: segundo o poeta Alp Batu Keçeci, Çarşı “é qualquer um que expresse amor pelo clube/pode ser uma pichação no metrô nova-iorquino/ou nos muros de Praga/ ou um quadro em preto e branco nas cidades turcas”.

besiktas

Na Turquia, torcer por um time é parte essencial da identidade de uma pessoa. Se você é turco, as pessoas querem saber em qual cidade você nasceu, de onde vem seus pais, e para que time você torce. Essa centralidade que o futebol assumiu na vida social turca data dos anos 1950, quando uma onda gigantesca de imigração levou milhões de pessoas das zonas rurais para as áreas urbanas do país. Deslocadas de suas regiões natais, desconfortáveis e isoladas nas cidades, escolher um time de futebol para torcer foi a maneira que estas pessoas encontraram para diminuir sua solidão e tentar pertencer a uma comunidade.

Com a crescente comercialização do futebol turco, e como consequência do fim da ditadura militar nos anos 1980, novos grupos de torcedores começaram a surgir. Estes grupos eram uma resposta aos anseios das novas gerações, que buscavam maior independência dos clubes e suas torcidas oficiais. Dentre estes grupos destacam-se o Genç Fenerliler (Torcida Jovem) do Fenerbahçe, o Ultraslanlar (os Leões Ultra)  do Galatasaray e o Çarşi. Se os dois primeiros clubes sempre foram associados à aristocracia turca, o Beşiktaş é o time “do povo”.

Mas voltemos ao barulhento Çarşi. Fundado por um punhado de jovens do bairro de Beşiktaş, esta torcida em muito se assemelha a alguns grupos ultras da Europa: são superdedicados ao time, se reúnem informalmente para criar bandeiras, faixas, danças e músicas para levar ao estádio; organizam atividades comunitárias como doação de sangue, rifas para levantar dinheiro para entidades assistenciais, encontro de jogadores e crianças com necessidades especiais. Assim como seus pares europeus, o Çarşi tem uma postura de confronto em face das autoridades estabelecidas. Segundo a socióloga turca Sema Tuğçe Dikici (autora de um livro sobre o grupo, do qual ela faz parte), as faixas do grupo geralmente expressam solidariedade a um grupo que necessita ajuda – operários, aposentados, negros, armênios – mas também se manifestam contrariamente aos fascistas, a guerras, a pornografia infantil, ao aquecimento global. Sarcasmo e ironia fazem parte da identidade do grupo: eles já demonstraram seu apoio a Plutão quando este foi desclassificado enquanto planeta; também já se manifestaram veementemente contra o… Çarşi!

carsilogo1

Este sarcasmo também é visto nas letras de alguns de seus cânticos, como a Fener Opera. Criada depois que palavrões e palavras ofensivas foram proibidas nos estádios, e cantada sobre a melodia de “Those were the days” (Mary Hopkin), a música faz uma “homenagem” aos torcedores do Fenerbahçe , os Feners, seus grandes rivais:

Nós torcemos pelo Beşiktaş, nos somos contra xingar e ofender

Futebol é amizade, futebol é companheirismo

Vamos ser educados e esquecer o passado

Mas pela ultima vez, venham chupar meu pau, seus Feners!

Mas o que impressiona no Çarşi, como já disse, é o seu volume sonoro. É praticamente impossível andar pelas redondezas de Beşiktaş – um bairro de Istambul localizado as margens do estreito de Bósforo – e não sentir a presença sonora do Çarşı.

Os torcedores – na maior parte homens entre 15 e 35 anos – se encontram no mercado para ensaiar as velhas canções e testar as novas criações. Em dias de jogo, com sua cervejinha nas mãos, eles se reúnem por lá várias horas antes da partida para cantar, beber e entrar nocoşmak, no clima da partida.

Quem não vai ao estádio se reúne no Kazan pub, mas também entra no pique da brincadeira. A torcida presente no pub acompanha os cânticos e o ritmo dos torcedores no estádio; mais do que apoiar o time (que obviamente não pode ouvir estes torcedores no bar), o objetivo aqui é fazer parte desta comunidade acústica, ajudando a criar o clima carnavalesco do ambiente.

Já dentro do estádio[i] o ambiente de Carnaval é intenso. A torcida já faz barulho bem antes do jogo começar, e quando os jogadores estão se aquecendo, grita o nome deles um a um; o jogador chamado chega então perto da torcida, acena, e recebe gritos de ‘Oley! Oley!Oley!’. Há cantos festivos e vibrantes; há os chamados cantos em “ziguezague”, quando uma parte da torcida fala uma coisa e o resto responde com a segunda parte do canto; mas há também musicas quase ‘românticas’, que falam do amor da torcida pelo clube, como “Em um dia chuvoso”, cantada em uma melodia melancólica:

Eu te vi em um dia chuvoso

Você vestia uma camiseta listrada

De repente, eu fiquei apaixonado

O sentido da vida virou branco e preto

A linha que separa a vida e a morte

Não consegue separar o branco e o preto

Mesmo que a morte seja o fim da jornada

Ninguém consegue separar aqueles que se amam

Faixas no estádio alertam quem assiste aos jogos pela TV para não ajustar o som do aparelho, pois o volume que se escuta é exatamente aquele que vem do campo, não há distorção alguma.

O Çarşi é invejado e admirado pelos seus rivais por ser um grupo que jamais vira as costas para seu time, e que torce entusiasticamente mesmo em momentos de crise ou derrota do clube. O grupo faz questão de levar a sua comunidade acústica para os estádios dos adversários, mesmo que isso signifique viajar longas distâncias. Sua paixão e volume sonoro já foram realçados até no New York Times, em uma matéria de 2009 a qual destacava o show do Çarşi em um jogo contra o Manchester United no estádio rival: “O time do Beşiktaş foi encorajado pela vibração constante da sua torcida, um pequeno grupo de 4.500 fãs que superaram de longe o barulho feito pela maioria dos 75.000 torcedores locais presentes no estádio. Eles não pararam de cantar durante um segundo sequer da partida”.

https://www.youtube.com/watch?v=P-ErW9oA1Rw

Claro que acontecimentos como estes são motivos de muito orgulho para a turma do Çarşi. No seu fórum online eles vibravam com sua vitória nas arquibancadas sobre os torcedores rivais: “A torcida do BJK fez a diferença. Os 80.000 ingleses em Old Trafford estavam quietos, apenas nos escutando!”.

O carnaval ensurdecedor do Çarşi é aclamado mundialmente. Em um jogo entre Liverpool e BJK, o comentarista, maravilhado com o som, disse que a torcida estava produzindo um barulho de 132 decibéis – barulho equivalente a uma decolagem de um jato escutada a uma distância de 100 metros. Orgulhosos, os membros do Çarşi declararam que aquilo devia ser um recorde mundial digno de entrar no livro dos recordes!

Todo este barulho traz poder. Ao longo da ultima década, muitas vozes se levantaram reclamando que o Çarşi estava ficando maior e mais importante que o próprio BJK. Para por fim a esta polêmica, na primavera de 2008, Alen Markaryan, um dos líderes (“amigos” em turco) do grupo, apoiado por outros membros fundadores da torcida, fez um discurso muito sentimental em que declarava o grupo extinto, e que todos dali em diante seriam apenas torcedores do BJK. Entretanto, a falta da música e do barulho do Çarşi mexeu com a identidade dos torcedores, fazendo com que esta decisão fosse revista; deste modo, o grupo prosseguiu com sua presença não apenas na cena futebolística, mas também no cenário político da Turquia, sendo um dos principais protagonistas da resistência popular a intensa repressão da polícia as manifestações de rua de 2013.

Por fim, uma pergunta: o que um texto sobre o futebol turco está fazendo em uma coluna sobre esporte na Oceania? A resposta é simples, a solução complexa, mas penso que o Çarşi[ii] talvez tenha algo a ensinar as torcidas brasileiras, australianas – e ao resto do mundo.

NOTAS

[i] O İnönü Stadyumu, localizado as margens do estreito de Bósforo, foi o estádio nacional turco entre 1940 e 1980, onde os melhores times e os jogos principais aconteciam. O Beşiktaş alugou este estádio em 1998, e ficou com ele ate 2013, quando ele foi demolido para dar lugar a uma ‘arena’.

[ii] Referências:  Kytö, M. (2011). ‘We are the rebellious voice of the terraces, we are Çarşı’: constructing a football supporter group through sound. Soccer & Society, 12(1), 77-93.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Jorge Dorfman Knijnik

Nasci em Porto Alegre, cresci em São Paulo e brinquei carnaval em Pernambuco. Filhos, Frevo e Futebol. Tardes com meu pai assistindo o Pele jogar no Pacaembu. Recentemente publiquei o livro "The World Cup Chronicles: 31 days that Rocked Brazil", um passeio histórico e etnográfico sobre o Brasil antes, durante e depois da Copa de 2014 (https://amzn.to/2An9bWS). Atualmente moro em Sydney, na Austrália, onde sou professor da Western Sydney University - venha fazer doutorado comigo! Mas já aviso: continuo São Paulino! e um pouco gremista também.

Como citar

KNIJNIK, Jorge Dorfman. “Somos contra tudo”: Çarşı, as vozes rebeldes e ensurdecedoras do futebol turco. Ludopédio, São Paulo, v. 98, n. 3, 2017.
Leia também:
  • 132.35

    Futbolera: mulher e esporte na América Latina

    Jorge Dorfman Knijnik
  • 113.18

    Furacões, maremotos – e um relâmpago! Cenas do futebol Australiano

    Jorge Dorfman Knijnik
  • 109.32

    Divididos pela camisa amarela: o legado político e esportivo da Copa de 2014 na América do Sul

    Jorge Dorfman Knijnik