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Futebol, ufanismo e política no telão

Rubens Guilherme Santos 5 de novembro de 2019

Ir ao cinema no Brasil dos anos 1960 até a década de 1990 era um “programão”. Além de assistir a grandes clássicos, como O Poderoso Chefão, Laranja Mecânica e Pulp Fiction, a plateia dos telões era premiada com um aquecimento para o longa principal da sessão: um cinejornal recheado de imagens do que melhor e mais importante acontecia nos estádios de futebol e no país inteiro. Este era o famoso Canal 100. Porém, por trás daquele show de imagens existiam fortes interesses políticos…

Reprodução de imagens em câmera lenta ao som de “Na Cadência do Samba” (Que bonito é), um imaginário construído pelo Canal 100. Foto: Reprodução.

Carlinhos Niemeyer era primo de segundo grau do arquiteto Oscar Niemeyer e começou sua vida bem distante das câmeras. Levava uma vida boêmia na juventude, sendo um dos membros do chamado Clube dos Cafajestes, uma espécie de reduto de bad boys festeiros das décadas de 1940 e 1950, que viviam no Rio de Janeiro. Antes de se tornar produtor cinematográfico, o fundador do Canal 100 arriscou-se em ofícios que pouco tinham a ver com a sétima arte. No começo, foi motorista do dramaturgo e cronista esportivo Nelson Rodrigues e ainda atuou na Força Aérea Brasileira (FAB). Posteriormente, largou a aviação militar para trabalhar como piloto no setor comercial. Durante mais de 15 anos, ele sobrevoou o país de ponta a ponta. E foi num desses voos que o carioca conheceu Jean Manzon, cineasta franco-brasileiro que lhe apresentou o mundo do cinema. Depois de largar a aviação de vez e começar a produzir suas primeiras imagens em documentários com Manzon, o ex-piloto decidiu, em 1959, criar um cinejornal semanário com o objetivo de atualizar o espectador num noticiário de curta duração. E qual seria o carro chefe do projeto? A paixão nacional que se consolidava cada vez mais e caía nas graças do povo: o F-U-T-E-B-O-L.

Carlos Niemeyer em ação. Foto: Reprodução.

As produções de Carlinhos ganharam notabilidade por narrar poeticamente os grandes feitos e o brilhantismo dos craques brasileiros dentro das quatro linhas, sem ocultar o que se passava nas arquibancadas. Os acontecimentos mais importantes do país também mereciam um espaço especial, como as coberturas da inauguração de Brasília em 1960, da visita do Papa João Paulo II em 1980 e da primeira edição do Rock in Rio, em 1985. Para isso, eram produzidos três cinejornais por semana: o Canal 100 Revista, o Canal 100 Atualidades e o Canal 100 Jornal. O que era relevante para o Brasil não escapava das lentes dos cinegrafistas do periódico.

Você pode (ou talvez deve) estar se perguntando: mas por que Canal 100? De onde será que vem esse nome? A filha de Carlos, Carla Niemeyer, em entrevista ao programa Arte do Artista da TV Brasil, explica a razão da alcunha: “Naquela época, os canais de TV eram poucos e só chegavam até 13. Então, a brincadeira era esta: só no cinema poderia haver um canal 100, um canal que nunca seria superado”. Ela seguiu os passos do pai e trabalha até hoje com a distribuição e produção de filmes no Rio de Janeiro.

Momentos eternizados

Para os amantes do futebol, a proposta de Carlinhos era ainda mais singular. Numa época em que a TV não era tão popular que nem hoje, em poucos minutos, gols, malabarismos e uma explosão de sentimentos eram eternizados em preto e branco num primeiro momento e, mais tarde, “ganharam cores”. Nas películas, cada detalhe que cercava a partida era tido como elemento fundamental do espetáculo. Desde o cadarço desamarrado da chuteira de Garrincha no meio de um drible, até a feição de alegria do torcedor “geraldino” botafoguense, após um gol do Anjo das Pernas Tortas. Nada ficava desapercebido nas gravações.

As emotivas narrações de Fiori Giglioti, José Carlos Araújo, Osmar Santos e José Silvério davam lugar à locução na voz de Cid Moreira. As imagens das transmissões da TV Globo e da Band eram substituídas pelos enquadramentos e tomadas únicas captadas pela notória equipe de cinegrafistas, que contava com Fernando Torturra, Liercy Oliveira e João Rocha. E como trilha sonora, a clássica canção “Na Cadência do Samba”, do pernambucano Luiz Bandeira, com o marcante verso “Que bonito é”. Com um show de imagens, o Canal 100 provocou uma verdadeira revolução na produção audiovisual do esporte brasileiro das massas.

Além dos tradicionais periódicos semanais, o Canal 100 também produziu um acervo de documentários futebolísticos. Como a sede da produtora localizava-se no Rio de Janeiro, era mais fácil e viável a captura de imagens nos estádios cariocas. Os quatro maiores clubes do Rio foram homenageados e ganharam, cada um deles, uma produção especial. Em síntese, as obras faziam menção às histórias dos times, com imagens inesquecíveis e outras inéditas, relembrando conquistas e o passado dos clubes. O acervo ainda conta com produções sobre o aniversário de 50 anos do Maracanã, uma biografia do Rei Pelé, como se deu o título brasileiro na Copa do Mundo de 1970 no México e a decepção da seleção canarinho quatro anos mais tarde, com a eliminação na segunda fase da Copa de 1974.

Esporte e política se misturam? Digamos que sim.

Cenas de glórias acompanhadas por uma música característica do país. No telão, o que se revelava era um povo louco por futebol e que tinha o samba no pé. Que levava a vida com um sorriso estampado no rosto. Que desfrutava de suas praias paradisíacas e das belezas naturais, sem preocupações. Que não estava nem aí para seus problemas. Ao menos era essa interpretação de Brasil que o Canal 100 tentava transmitir. Entretanto, este cenário imaginário descrito anteriormente contrastava-se com o sistema governamental que vigorava na época.

Durante praticamente toda a existência do Canal 100, a política foi controlada pelo regime militar. O sentimento ufanista e patriota, que pretendia ser propagado nos vídeos depois do Golpe de 1964, servia como artifício para camuflar interesses dos que detinham o poder sobre o povo. Para entreter e provocar o esquecimento dos graves problemas sociais que prejudicavam a população, uma medida tomada pelos militares foi reunir e exaltar as principais riquezas naturais e culturais do país. E uma vez que o futebol era um elemento cultural que atraia a atenção de boa parte da população, o esporte bretão servia como prato principal da propaganda política, na cozinha militarista brasileira.

Para Paulo Roberto de Azevedo Maia, doutor em História pela Universidade Federal Fluminense, as películas de Carlos Niemeyer eram carregadas de imagens do Brasil do ponto de vista do governo militar. “A abordagem cinematográfica do Canal 100 foi, de forma não oficial, condizente com a proposta de leitura do Brasil feita pelo projeto de propaganda política do regime militar que procurou se distanciar dos tipos clássicos de propaganda”, explica, em seu artigo “Canal 100 e a construção do imaginário”. Ainda segundo a pesquisa de Maia, os dois maiores bancos públicos brasileiros, a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil, eram as fontes do patrocínio não formal da invenção de Niemeyer.

Momentos de ouro do futebol brasileiro eram registrados pelo Canal 100. Foto: Divulgação/Canal 100.

A iniciativa do regime militar pode ser vista como uma maneira de replicação do modelo de promoção política do governo ditatorial de Vargas. Foi na gestão de Getúlio, de 1930 a 1945, que o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) foi criado, com o objetivo de promover a imagem do líder do Estado Novo substituindo o antigo Departamento Nacional de Propaganda (DNP). Através de uma radical vigilância, o órgão radicado na censura praticada pelo fascismo de Mussolini, repreendia a liberdade de pensamento e expressão da população e da imprensa comercial. As famosas campanhas de Vargas, norteadas por frases nacionalistas e ufanistas como: “O petróleo é nosso”, foram fruto do DIP. O maior legado do Departamento foi o jornal radiofônico A Voz do Brasil. Veiculado às 19 horas direto de Brasília, de segunda a sexta, o noticiário interrompe as programações das rádios até hoje para informar a população sobre as atividades presidenciais, da Câmara e do Senado.

Cartaz de divulgação do “Brasil Bom de Bola”. Foto: Divulgação/Canal 100.

O esporte também fez-se presente na promoção do período presidencial varguista. Os desportos que antes só admitiam atletas brancos e das classes superiores da pirâmide social, passaram a naturalizar a presença de negros e de pessoas de origens humildes. A construção de complexos esportivos e estádios foi fomentada e ganhou apoio do líder da Revolução de 1930. A intenção era promover a popularização com a participação do povo dentro dos campos de controle social governamentais. E foi neste momento em que o futebol passou a ser admirado, praticado e idolatrado pelos brasileiros.

Ambas as ferramentas de promoção ditatorial que exemplificamos, o DIP e o Canal 100, tiveram fim com a derrocada dos regimes que os bancavam. Em 1945, ano em que Getúlio foi deposto sob forte pressão do povo que agonizou a censura por quase 15 anos, o DIP teve seus serviços finalizados. E com o declínio do regime militar em 1985, o Canal 100 esteve diante de seu pior momento, consequência do fim da contribuição financeira do Estado, que levou ao fechamento dos escritórios de Carlos Niemeyer. Pode não ser tão nítido, mas as quatro linhas já funcionaram e ainda funcionam como terreno para a articulação dos governantes.

Política e esporte. Dois campos de interação e participação popular que estão muito mais ligados do que imaginamos. Ignorar a relação entre ambos é desprezar a história que conduziu o futebol brasileiro desde as glórias nos pentacampeonatos mundiais aos eternos fracassos, como no 7 a 1.

Dica de leitura

Em dezembro de 2014, Carla Niemeyer e a amiga Cláudia Pinheiro publicaram o livro “Canal 100: uma câmera lúdica, explosiva e dramática”, pela editora Queen Books. A obra conta a história do cinejornal que mudou a maneira do Brasil ver e rever a bola redonda.

Carla Niemeyer em participação no programa Arte do Artista da TV Brasil. Foto: Reprodução/TV Brasil.

O editor-chefe do projeto, Carlos Leonam, acredita que o jornalismo no cinema mudou de patamar com a chegada do periódico. “A história do cine jornalismo no Brasil se divide em antes e depois do Canal 100”, explica na sinopse do livro. O exemplar é acompanhado por um DVD com algumas edições do periódico. Caso queira saber mais sobre o Canal 100, vale a pena adquirir.


Publicado originalmente no Ponta de Lança.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Rubens Guilherme Santos

Estudante de Comunicação Social - Jornalismo (UFSM), apaixonado por histórias de dentro e fora da cancha. Membro do Ponta de Lança, integrante do projeto Radar Esportivo, da Rádio Universidade e UniFM, emissoras da UFSM.

Como citar

SANTOS, Rubens Guilherme. Futebol, ufanismo e política no telão. Ludopédio, São Paulo, v. 125, n. 6, 2019.
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