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Futebol: um bastião antimoderno

Victo Silva 15 de junho de 2021

Por que o futebol é adorado pelas massas e não o xadrez? Eu meditei sobre isso por algum tempo. Claro, o futebol tem muito mais plasticidade, inegavelmente. No entanto, o surf e o skate também e nenhum deles tem a mesma popularidade. Alguém poderia mencionar que o imponderável, presente no futebol, nos fascina. E claro, se isso permite episódios marcantes como o Milagre de Berna de 1954 (representado em tela no filme homônimo de 2003), não deixa de ser uma característica presente em outros esportes também. Sempre rondou minha cabeça a ideia de que as regras do futebol é que o fazem um esporte tão popular — mais que popular: sagrado. Como articular essa ideia de que as regras é que fazem do futebol um esporte especial, diferente dos outros? Alguns casos podem auxiliar.

Milagre de Berna
Cena de O Milagre de Berna. Fonte: Reprodução

“A honra proíbe atos que a lei tolera” (Sêneca)

Quem não se lembra da mão de Luisito Suarez, atacante da seleção do Uruguai, nas quartas-de-final da Copa do Mundo de 2010? Uruguai e Gana se enfrentavam pelo direito de jogar as semifinais da primeira copa do mundo sediada no continente africano. Gana era o último dos seis países africanos vivos na competição, e tinha grande apoio da torcida local. O jogo foi incrível, com dois golaços, um de Muntari para os ganenses e um de Diego Forlan para os uruguaios e chegava ao final empatado.

Até que aconteceu aquele lance. Num bate rebate na área, a bola sobrou para o atacante de Gana cabecear. O goleiro uruguaio já estava batido. Mas aí Luiz Soares interveio, colocando a mão na bola quase em cima da linha e impedindo o certeiro gol que daria a vitória e a classificação aos ganenses. Ao juiz, coube expulsar Suarez e marcar o pênalti para Gana. O pênalti foi cobrado por Gyan que, para desespero de todo um continente, acertou o travessão. O desempate veio nos pênaltis e os uruguaios levaram a melhor. Até hoje se discute sobre a ética e o jogo limpo (fair play) com relação a este lance.

Um episódio mais recente, envolvendo o clássico de Madrid, reavivou a discussão: até onde é válido explorar as regras a favor da vitória? A final da supercopa da Espanha entre Real Madrid e Atlético de Madrid estava no tempo extra em 0–0. A cinco minutos do final, uma bola é enfiada para Morata, o atacante do Atlético. Ele tem a chance de matar o jogo e vencer a competição. Federico Valverde, defensor do Real Madrid não lhe dá esta chance. Ele faz uma falta violenta propositalmente e impede a jogada. Mais tarde ele declara: Eu pedi desculpas [para Morata]. Não é correto o que eu fiz, mas eu tinha que fazer aquilo[1]

É interessante sua declaração: Federico Valverde reconhece o mal na sua atitude individual, mas a justifica colocando-a sob um princípio superior que não o deixa escolha. Valverde ainda venceria o prêmio de Man of the Match (Jogador da partida). E o técnico do time rival declararia: Foi o momento mais importante do jogo. Eu disse a ele que qualquer um teria feito a mesma coisa em seu lugar. Acho que dar a Valverde o Man of the Match faz todo o sentido do mundo, porque ele venceu a partida com essa ação. O que estas declarações mostram são valores compartilhados entre os jogadores, técnicos e administradores do jogo (que deram a Valverde o prêmio de destaque individual). Já as reações nas redes sociais mostrariam uma divergência muito maior de opiniões, ou seja, um conflito sobre as convenções e o limite entre o possível e o esperado no futebol.

Um exemplo — do outro lado do espectro — foi a conhecida atitude de fair play do zagueiro Rodrigo Caio, então no São Paulo. No campeonato paulista de 2017, o zagueiro confessou para o juiz que tinha sido ele, e não o atacante do Corinthians, que havia pisado na perna do goleiro Renan Ribeiro. Isso fez com que o cartão amarelo ao atacante Jô fosse cancelado. O mais incrível não foi a repercussão de sua atitude para aquele jogo, mas sim os alinhamentos após o jogo. Multidões se colocaram ao lado de Rodrigo Caio, exaltando-o pelo gesto cortês e pela honestidadeOutros o criticaram.

O mesmo aconteceu no clássico de Madrid: multidões se colocaram ao lado de Valverde (incluindo os técnicos dos dois times, Zinedine Zidane e Diego Simeone), dizendo que ele fez o possível pela vitória e que aquilo foi uma falta técnica que qualquer jogador faria. Outros o criticaram, afirmando que se tratou de uma covardia e de falta de fair play. Valverde teve que tomar uma decisão dentro de campo, naqueles milésimos de segundo entre a decisão e a conclusão da jogada. Rodrigo Caio e Luiz Suarez também tiveram que tomar suas decisões. Mas diferentemente do xadrez, ou do curling, ou do golfe, em que os jogadores tomam decisões puramente racionais, no futebol este tipo de decisão vem envolvida em uma leitura de convenções, normas e, no limite, valores compartilhados.

Espaço aberto para escolhas

Meu ponto não é debater casos específicos, tampouco as fronteiras da ética na prática do futebol. Meu ponto é que a estrutura das regras do futebol suscita este tipo de dinâmica controvertida, posto que intersubjetiva.

A estrutura das regras do futebol delega diretamente sobre o ombro de jogadores, técnicos e principalmente, árbitros, a tarefa de definir subjetivamente o que está dentro e o que está fora do escopo do possível. Indiretamente, a mídia e os torcedores também são coparticipantes destas decisões, delimitando uma referência de valores compartilhados. Minha hipótese, e aqui pretendo generalizar as coisas, é de que há esportes em que há predominância de espaços e regras dominados por ações racionais com respeito a fins e há esportes em que há espaços e regras dominados por ações comunicativas. Estes conceitos são de Jürgen Habermas. O filósofo alemão aprimoraria estas ideias em sua principal obra Teoria da Ação Comunicativa (1981). Mas precisamos apenas do básico, que já aparece em obras muito anteriores, como Técnica e Ciência como Ideologia (1968).

A ação racional com respeito a fins seria composta por ações instrumentais ou escolhas racionais. A ação instrumental é “regida por regras técnicas baseadas em conhecimentos empíricos”. Já a ação comunicativa “se orienta por normas obrigatoriamente válidas, as quais definem expectativas recíprocas de comportamento e devem ser compreendidas e reconhecidas por pelo menos dois sujeitos agentes”. O ponto do autor era compreender como a modernidade ocorria: sistemas orientados pela ação instrumental, visando eficiência e baseadas na linguagem universal da técnica, tomam progressivamente o espaço de sistemas baseados em crenças ou valores compartilhados, típicos de sociedades tradicionais. Chama atenção especialmente a forma de sanção sobre aquelas ações que vão contra os dois tipos de ação:

“Um comportamento incompetente, que infringe regras técnicas ou estratégias corretas está condenado per se à falta de êxito; sua “punição”, por assim dizer, encontra-se inscrita no fracasso perante a realidade. Um comportamento desviante, que infringe normas válidas, suscita sanções vinculadas às regras apenas exteriormente, isto é, através de convenções” (HABERMAS, 2011 [1968], p. 91).

A decisão de Rodrigo Caio de defender seu adversário pode ser entendida como a priorização de um valor — a honestidade — acima de outro valor — a competitividade. Ou mesmo de uma convenção/norma: o fair play, que ao ser promovido beneficiaria a todos (já que Rodrigo Caio poderia, em uma eventual jogada no futuro, beneficiar-se do mesmo trato por parte de seus adversários). As decisões de Suarez e Valverde foram tomadas sob o pressuposto de que seus times, seus torcedores e/ou nações os apoiariam e não os puniriam “externamente”, via convenções. Há um espaço em que se constrói intersubjetivamente o que está dentro da fronteira do válido e o que a ultrapassa.

Caso um jogador de xadrez jogue uma peça do seu adversário no chão e pule em cima dela, o movimento é inválido. Ele não altera o futuro do jogo, posto que suas regras não admitem aquele movimento e qualquer ação derivada dele é nula. Neste caso, sua punição deriva da “falta de êxito perante a realidade”, ou a inocuidade da ação que pretende burlar regras técnicas. No futebol, a dinâmica das regras é diferente: há espaço para “expectativas recíprocas de comportamento”. O que Suarez fez é permitido? A regra é clara: o jogador de linha não pode tocar na bola com seus membros superiores. Mesmo assim, ex-post é impossível anular suas consequências. Gana nunca teve seu gol validado e perdeu a chance de ser a primeira nação africana a chegar à semifinal de uma copa do mundo. Isso é história.

É claro que o futebol também é regido por regras técnicas. Se cinco jogadores do banco de reservas entrarem em campo para ajudar seus onze companheiros, o juiz apitará e suspenderá o jogo. Fica claro que existe um continuum, com jogos em que há muito pouco espaço para as convenções e a subjetividade interferirem (como o xadrez) e esportes em que seu espaço é muito maior. Dessa forma, o futebol aparece como uma ilha de resistência às pressões racionalizantes da modernidade, uma esfera da vida social que “obedece à lógica dos contextos de interação”. E é nestes contextos, nestes meios onde grassa a intersubjetividade, que ocorre a deliberação de temas como “justiça e liberdade, poder e repressão, felicidade e satisfação” (Ibid., p. 97). O futebol é um bastião antimoderno. E por isso é imensamente popular.

Alguém poderia pensar que a introdução do VAR é um indício de que as esferas de ação racional com respeito a fins avança sobre o futebol. No entanto, o VAR é uma ferramenta auxiliar. Ele não toma decisões, embora tenha de fato alterado a dinâmica do jogo em algumas dimensões. Por isso o futebol continua altamente popular. Seu engajamento deriva da sua estrutura ser semelhante a estrutura das organizações culturais e sociais nas quais valores e convenções importam. Por isso que não é exagero entender o futebol como uma esfera sagrada para alguns praticantes. No futebol que eles encontram comunhão de valores, ou se engajam em discussões intermináveis quanto ao mérito de uma jogada ou de um resultado. É um microcosmo que repercute categorias tais como “o triunfo e a derrota, amor e ódio, salvação e condenação” (Idem). O futebol resiste como um espaço em que valores e convenções ainda são relevantes. Ao menos dentro das quatro linhas.

Notas

[1] https://www.sportbible.com/football/foul-play-valverde-reveals-what-he-said-to-morata-after-match-winning-foul-20200113

Referências

HABERMAS, J. 2011 [1968]. Técnica e Ciência como Ideologia. São Paulo: Editora Unesp.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Victo Silva

Economista, ala direito e saudosista do palmeiras de 96

Como citar

SILVA, Victo. Futebol: um bastião antimoderno. Ludopédio, São Paulo, v. 144, n. 27, 2021.
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