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“Ganhar ou perder, mas sempre com democracia”: a torcida corinthiana e o processo de redemocratização da sociedade brasileira

Baltazar Gomez Ruiz Júnior 30 de agosto de 2021

A ditadura Militar ocorreu nos anos de 1964 a 1984, e a partir do governo do presidente general Ernesto Geisel (1974) iniciou o processo de abertura politica que resultara na redemocratização do país, que teve como principal movimento social `Diretas já!’. Apesar dos duros anos do governo militar, o movimento citado, adjunto ao aparecimento de forças políticas e sindicais que permitiram a renovação de uma gestão democrática do país, proporcionaram um resgate da liberdade de expressão e dos direitos retirados durante a ditadura. Apesar desse período vivido no obscurantismo, houve um movimento popular tocante e resistente à impossibilidade de participação política. Mas que relação existe entre o futebol e a democracia, e o que eles têm em comum? Ou melhor dizendo, o que a torcida corinthiana tem a ver com a redemocratização política brasileira?

A conscientização política no futebol, pode ocorrer a partir da conjuntura vivida pelo país e do conjunto de forças, que corroboram com a devolutiva à população de seus direitos políticos, de manifestações, e de participação. No final da década de 1970 e início de 1980,)) os movimentos sociais, e vale apontar o destaque para os movimentos sindicais, tiveram uma força determinante para que a redemocratização, e o movimento de contestação da não participação popular nos processos decisórios do país fossem possíveis para os diversos âmbitos do convívio social, dentre as artes, e os esportes e a vida política e social. É nesse sentido que Mariana Zuaneti Martins e Heloisa Helena afirmam que o futebol também é “o reconhecimento do jogador de futebol como cidadão e sua emergência como sujeito político.”

Por outro lado Augusto Sarmento – Pantoja, explicita a dicotomia “predileção/martírio” que compõe o futebol, no qual “Amar um clube permite que o torcedor, em nome de sua predileção, sofra pelo clube, sem considerar o sofrimento um problema.”. O outro lado da moeda também pode se revelar, em contextos simbolicamente violentos do futebol na sociedade brasileira, destacando que “para além do aspecto midiático, o modelo de gestão do clube, agora baseada na democracia, que faltava ao país e ao futebol, ganha força com os títulos de 1982 e 1983, mas se afunda em 1984, quando o título não vem.”

No período de redemocratização brasileira, houveram manifestações culturais, como o rock nacional, e as explicitações da ostensividade do braço direito da polícia, que traz o revés majoritariamente às minorias, sendo indicado por Sarmento – Pantoja, o documentário Democracia em preto e branco (2014) para desvelar-se da melhor forma outras vertentes do período de redemocratização.

Um marco importante pode tentar responder as indagações colocadas sobre o vínculo da torcida corinthiana e o período de redemocratização do Brasil, no início desse debate, é o resgate do dia 14 de dezembro de 1983, quando se disputou no estádio do Morumbi a final do campeonato paulista de futebol daquele ano; uma surpresa que marcou a entrada em campo do time do Corinthians. Ao saírem do túnel para fazer a tradicional saudação à torcida, seus jogadores traziam uma vistosa faixa com os dizeres: “Ganhar ou perder, mas com democracia”. Os jogadores que erguiam aquela faixa e representavam a Democracia Corinthiana conseguiram sintetizar o espírito e/ou anseios políticos de seu tempo. Tornou-se o microcosmo desse clima do processo da redemocratização no Brasil.

Desde o final dos anos 1970 essas haviam se transformado em espaço de exposição de faixas cujas mensagens já expressavam apelos sociais e políticos, assinalando o alinhamento gradativo do esporte com o conjunto das forças democráticas, que em consonância com os movimentos sociais, se engajaram na luta por uma participação política da população.

Na partida realizada no dia 11 de fevereiro de 1979, O Corinthians venceu o Santos por 2 a 1, mas o que foi ainda mais marcante, foi a uma faixa com a frase “anistia ampla, geral e irrestrita”. A torcida corinthiana se empoderou contra o golpe, até mesmo antes do início da abertura política, partida esta que foi realizada após o término do AI-5, o Ato Institucional que censurou todos os movimentos artísticos, políticos, estudantis e qualquer forma de reivindicação contra o governo. A cassação de direitos políticos, e torturas refletiam muito mais que a tentativa de instaurar narrativas opostas ao governo, mas de repressão profunda contra qualquer movimento social e democrático.

A participação dos torcedores nas arquibancadas atestam a plena convergência de propósitos e anseios da sociedade civil, em especial daqueles que lutavam por transformações políticas e sociais em um país ainda dominado pelo regime militar.

A maior torcida organizada do Corinthians, a “Gaviões da Fiel”, que se expressou no dramático caso da exposição da faixa em 1979 em prol da Anistia, o realizaram mesmo sem o aval do presidente do espaço da Gaviões da Fiel na arquibancada do Morumbi, com a finalidade de externar suas respectivas convicções políticas. Alguns de seus componentes indicavam que, na torcida, aquelas convicções estavam ainda longe de ser um ideal consensual.

E isso não ocorria somente no futebol. No período de redemocratização existiam ainda movimentos da autocracia burguesa, que em meio à ditadura, fomentou para além dos movimentos políticos, também um mundo da cultura, que explorava uma “politização da cultura”, que se revelou por meio da censura. No período de volta à democracia, o aspecto cultural se torna contrário ao regime político autoritário, como fundamenta José Paulo Netto.

Um dos motivos centrais que levou ao surgimento do movimento da Democracia Corinthiana foi a tentativa de Vicente Matheus, então presidente do clube, de se perpetuar no cargo, ocupado por ele desde 1972. Porém ainda tiveram muitas controvérsias nas gestões do clube que se sucederam.

No entanto, conflitos e contradições não invalidaram a importância que a Democracia Corinthiana teve na disseminação de certo ideal democrático – antes pelo contrário. Podemos interpretar que os múltiplos conflitos são sinais claros que o ideal democrático não era propagado pela torcida ou pelos jogadores de maneira orgânica e/ou homogênea, mas é da interação entre parte da torcida e parte dos jogadores que começará a se fortalecer. Essas divisões internas entre torcida e jogadores foram crescentemente superadas e o movimento acabou conquistando expressão, por não haver rupturas do regime militar, mas descontinuidades, a partir dos movimentos sociais vigentes no período de redemocratização.

Democracia Corinthiana
Reprodução: Twitter oficial do Corinthians

Personalidades ligadas à Democracia Corinthiana, como Adílson Monteiro Alves (sociólogo e diretor de futebol), Sócrates, Wladimir, Juninho, Luís Fernando e Ataliba, participaram de manifestações cívicas como os comícios que pediam “Diretas já”. Adilson Monteiro, foi um dos personagens decisivos, decidindo que as opiniões dos atletas seriam ouvidas pela diretoria. De certa forma, o clube autorizava a participação dos atletas, uma vez que o próprio diretor de futebol , Waldemar Pires, também o fazia, em gestões à frente do Corinthians, que ocorreram entre março de 1981 e março de 1985.

Adilson também foi um dos criadores do movimento democrático do Parque São Jorge junto com o jogador Sócrates. O movimento pelas Diretas-Já parece ser o maior ponto de convergência entre os jogadores participantes do movimento Democracia Corinthiana e os membros da torcida Gaviões da Fiel. Para além do próprio clube, a torcida Corinthiana também se viu enganada com o movimento político que rodeava o país. O futebol, apesar de visto então por muitos intelectuais como simples fonte de alienação, pôde se enquadrar no contexto dos novos espaços próprios à articulação de reivindicações políticas e sociais a partir de sujeitos torcedores.

Luiz Carlos Caldarone, um dos diretores dos Gaviões da Fiel, justificou a presença da agremiação no comício, realizado no dia 16 de abril de 1984, representando os torcedores em prol da democracia :

“Dentro do Corinthians resistimos a ditadores, como os ex-presidentes Wadih Helu e Vicente Matheus, e sempre lutamos pela democracia no clube defendendo o voto do sócio torcedor”.

O futebol pôde ser visto, para além do chamado “pão e circo” que revestia as críticas ao país do futebol, mostrando também anseios da própria sociedade brasileira que lutava por seus direitos políticos de escolher seus representantes no movimento de redemocratização do Estado Brasileiro. O futebol, representa para além do esporte um ‘Fato social Total’, pela sua caracterização também cultural e de participação social abrangente em nosso país. Luís Maffei, evidencia o poema final de Onde estão as bombas, “necrobrasília”, que traz a incongruências de abandonar um país está indo em direção contrária à ditadura, mas que por outras razões colocadas – afetivas, éticas, pedagógicas. demonstravam como o futebol e as torcidas brasileiras puderam participar dos movimentos de expressão a favor da democracia.

A Gaviões da Fiel, como torcida organizada, assim como também o clube corinthiano se tornaram alvos históricos, pela sua expressão política nas arquibancadas, fomentando o movimento de Diretas já. Segundo a perspectiva histórica , outras possibilidades de construir uma narrativa através da arte e da ciência foram consideradas marginalizadas ou suas questões eram pensadas como periféricas pelos verdadeiros historiadores, e por esse motivo, considerar os movimentos da Gaviões da Fiel, é superar essa perspectiva e reconhecer o marco histórico dos eventos corinthianos nesse período. A etnografia, a observação, e a história oral podem ser instrumentos para reafirmar essa perspectiva. José Carlos Meihy e Fabíola Holanda, trazem a história oral como ferramenta de problematização e contextualização de temáticas orientadas pelas situações – De quem, como e por quê, e dessa forma, permite-se explorar marcos históricos pela fala dos próprios personagens da democracia corinthiana, e da abrangência de fenômenos ocorridos nas arquibancadas.

Democracia Corinthiana
Foto: Trecho do filme “Democracia em Preto e Branco”/Reprodução.

Entre 1979 e 1983 divide-se um legado de memória, de tradição que pode fazer de indivíduos de várias torcidas se irmanar ao pertencimento de uma classe, ou seja, ganhar, mas com democracia. O movimento político e cultural puderam ser desenvolvidos, acerca de um bem comum – a democracia do país, em um momento em que com a abertura de possibilidades de manifestações sem a coerção do Estado ditatorial, o clube corinthiano fez parte do movimento histórico do período de redemocratização do país, demonstrando que para além de um esporte, o futebol contém influências políticas de toda uma nação.

Referências

CORNELSEN, E. C.; BRINATI, F. G.; GUIMARÃES, G. C. (orgs.) Futebol: fato social total. FALE/UFMG, Belo Horizonte, 2020.

MARTINS, Mariana Zuaneti; DOS REIS, Heloisa Helena Baldy. Significados de democracia para os sujeitos da Democracia Corinthiana. Movimento (ESEFID/UFRGS), v. 20, n. 1, p. 81-101, 2014.

MEIHY, José Carlos SEBE; HOLANDA, Fabíola. História Oral: Como fazer, como pensar. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2020.

NETTO, José Paulo. Ditadura e Serviço Social: uma análise do serviço social no Brasil pós-64. 17 ed. São Paulo: Cortez, 2015.

RUIZ, Felipe ; PETERS, Renato. Conheça a história do Corinthians x Santos que representou a luta contra a ditadura. Globo Esporte. Acesso em: 30 jul. 2021,

SARMENTO-PANTOJA, Augusto Nascimento. Mais branco do que preto na ditadura militar brasileira: a Democracia Corinthiana, o sindicalismo, a rebeldia e o rock and roll. FuLiA/UFMG, v. 4, n. 3, p. 42-65, 2019.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

RUIZ JúNIOR, Baltazar Gomez. “Ganhar ou perder, mas sempre com democracia”: a torcida corinthiana e o processo de redemocratização da sociedade brasileira. Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 56, 2021.
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