102.20

O sacrifício do herói ou o nascimento da garra uruguaia

Hilário Franco Junior 20 de dezembro de 2017

Na última parte do segundo turno do campeonato brasileiro recém encerrado, com briga intensa na parte de cima da tabela, por vagas na Libertadores, e na parte de baixo pela manutenção na série A, tanto quanto a técnica dos jogadores e a tática escolhida pelos treinadores, revelou-se onipresente e decisivo outro componente, a garra, com os times empurrados por suas torcidas. Um caso emblemático foi o do São Paulo FC, clube que não se caracterizou ao longo do tempo por uma torcida sempre vibrante e times sempre aguerridos. Mas em 2017, tendo feito a pior campanha da sua história e só escapando do rebaixamento a três rodadas do fim, time e torcida, pressionados pela necessidade, adotaram nova postura.

O elenco, fraco, resultado de mau planejamento – durante o campeonato as saídas e chegadas de jogadores somaram perto de dois times – precisou substituir a técnica, pequena, pela vontade. A torcida, entendendo as limitações do elenco, em vez de vaiá-lo e ameaçá-lo, fatos comuns no Brasil nessas situações, resolveu apoiá-lo e indicar o único caminho possível, o do jogo com paixão. Assim, embora em termos técnicos tenha terminado em 13º lugar, em termos de público o Tricolor paulista foi o 2º colocado, apenas atrás do campeão Corinthians. As cinco partidas com maiores assistências no campeonato tiveram o São Paulo como mandante. No despertar anímico do elenco e seu pacto com a torcida parece ter tido papel importante um jogador que entrou em campo apenas doze vezes na temporada (e somente cinco no Brasileirão), o uruguaio Diego Lugano.

Conhecido justamente pela garra que o tornou ídolo da torcida na vitoriosa passagem anterior pelo clube, ele pela idade não tinha mais condição de ser titular, porém percebeu que podia desempenhar um papel na construção do estado de espírito necessário àquela situação. Como ele próprio declarou, a união de um grupo de futebolistas se dá muito pela postura dos reservas, profissionais que mesmo estando em segundo plano empenham-se, não exigem jogar, respeitam os colegas que estão no palco, estimulam-nos, vibram com as vitórias. Em nome do passado, mas também desse presente construtivo de outra maneira, a diretoria e a torcida homenagearam Lugano na partida final do campeonato, quando pela última vez vestiu a camisa do clube.

Lugano
Lugano. Foto: Jimmy Baikovicius (CC BY-SA 2.0).

O fato chama atenção porque a disposição ilimitada a lutar por bons resultados não é historicamente uma característica do futebol brasileiro. Até tempos atrás, privilegiando a técnica, ele inclusive considerava a garra como quase uma deformação do espírito do jogo, um recurso de escolas que ele tendia a rotular de inferiores, como a argentina e a uruguaia. O Maracanazo de 1950 foi uma espécie de síntese desse confronto anímico, com o resultado que se sabe. Ficou na memória futebolística nacional o apócrifo – e por isso mesmo significativo – tapa que o capitão uruguaio, Obdúlio Varela, teria dado em Bigode, impondo psicologicamente sua equipe sobre a seleção brasileira, mais refinada porém algo malemolente. Sobre tudo isso muito se falou e escreveu, sem que seja bem conhecida no Brasil a origem da garra uruguaia. No plano sociológico, ela está ligada à trajetória do pequeno país, que precisou lutar no campo de batalha para obter e confirmar sua independência, enquanto a brasileira se deu de maneira burocrática, por uma ruptura dinástica.

No plano específico do futebol, um personagem e um evento marcaram o espírito uruguaio desde o começo do século passado. A primeira Copa do Mundo foi inaugurada em Montevidéu a 13 de julho de 1930 com duas partidas simultâneas, França 4 x 1 México no estádio Pocitos (pertencente ao Peñarol e demolido em 1940) e EUA 3 x 0 Bélgica no estádio Parque Central, propriedade do Club Nacional de Football e inaugurado em 1900. Nele, a tribuna oeste leva ainda hoje o nome de um personagem tornado mítico para o clube e o futebol uruguaio, personagem lembrado a cada partida naquele estádio por uma faixa com a foto de um rosto mestiço e a inscrição “Por la sangre de Abdón”.

Quando chegou à capital do país em 1908, vindo da cidade de Libertad, Abdón Porte era um jovem cuja aparência denunciava a origem provinciana e muito pobre: a roupa era grosseira e remendada, ele era analfabeto e desconhecia mesmo sua data de nascimento. Foi trabalhar nas docas, onde participou de improvisadas partidas de futebol que marinheiros ingleses e alemães organizavam no cais durante a permanência de seus navios. Bem dotado para aquele esporte, Abdón integrou um dos poucos clubes uruguaios que aceitava trabalhadores braçais, o Colón, fundado no ano anterior. De fato, como em outros países latino-americanos o futebol estava reservado à elite local e estrangeira (cerca de metade dos 290.000 habitantes da Montevidéu da época vinha do exterior) em clubes cujos nomes não escondiam sua origem europeia: Deutscher, Dublin, Albion, Bristol.

Contrariando essa tendência de denominação e revelando o orgulho localista, em 1899 nasceu o Club Nacional de Football, cujo perfil, porém, era elitista como o da maioria das agremiações futebolistas, por ter sido fundado por estudantes universitários. Uma década depois, contudo, na época em que Porte chegava à capital, aquele perfil estava em plena transformação, decorrência do próprio sucesso do clube. Tendo conquistado o bicampeonato invicto em 1902 e 1903, a popularidade do Nacional crescera muito, ainda mais porque em setembro de 1903 a seleção uruguaia, composta unicamente por jogadores do clube, venceu a seleção argentina em Buenos Aires. Quando a epidemia de varíola de 1905 matou os craques do time, os míticos irmãos Céspedes (que haviam marcado os três gols da vitória uruguaia sobre a Argentina), começou uma fase difícil para o clube até a presidência ser assumida em 1911 por um jovem de 27 anos, médico e poeta, José Maria Delgado, que decidiu democratizá-lo e abrir suas fileiras para gente de outras categorias sociais. Dentre os novatos estava Abdón Porte.

Consciente de que era preciso aproveitar a oportunidade e de que não seria fácil ser aceito por aquela torcida exigente, El Indio, como se tornou conhecido, jogava com enorme disposição, não recuava diante de lances perigosos. Logo se tornou capitão da equipe, em 1912 conquistou seu primeiro campeonato pelo clube, depois o tri em 1915, 1916, 1917, mesmos anos em que ganhou a Copa do Uruguai. Jogando pela seleção, em 1917 ele participou da primeira Copa América ganha pelo país. Enquanto isso, o presidente Delgado, apenas seis anos mais velho, ensinou-o a ler e escrever, transmitiu-lhe as regras da boa etiqueta seguida pela alta sociedade. O ex-provinciano saboreava o sucesso dentro e fora de campo.

Uruguai
Bandeira uruguaia. Foto: Jimmy Baikovicius (CC BY-SA 2.0).

Mas o tempo inevitavelmente passava, o corpo não conseguia mais realizar os mesmos esforços que antes. Abdón perdeu a faixa de capitão, foi para a reserva por vários jogos, o clube contratou um substituto. A 4 de março de 1918 ele foi novamente escalado como titular em um confronto tranquilo no Parque Central, 3 a 1 diante do pequeno Charley. Como de costume, depois da partida os jogadores foram à sede social do clube, no centro da cidade, para comemorar a vitória. Mas Abdón sabia que o sentimento de alegria, de glória, estava chegando ao fim. Deprimido, apesar do casamento marcado para o mês seguinte, deixou a festa por volta de uma hora da manhã dirigindo-se ao Parque Central. Caminhou até o círculo do meio-campo onde tinha imperado durante anos como primeiro volante, colocou o chapéu de palha no chão com duas mensagens dentro, uma privada para um familiar, outra pública para Delgado. Pegou então a pistola e deu um tiro no coração. Tinha talvez 28 anos.

Na mensagem ao amigo presidente havia escrito cinco curtos versos: “Nacional aunque en polvo convertido / y en polvo siempre amante. / No olvidaré un instante / lo mucho que te he querido. / Adiós para siempre.” E fazia um pedido, ser sepultado “no cemitério da Teja, com Bolivar e Carlitos [Céspedes]”. Dias depois, quando da emotiva celebração fúnebre, Delgado desenvolveu o tema: “O Nacional era seu ideal. Ele o amava como um crente ama sua fé, como um patriota ama sua bandeira. Abdón Porte é um herói que morreu de amor por suas cores. Que as gerações futuras se impregnem de seu sacrifício na busca desse ideal.” Do qual Lugano foi um legítimo representante, tendo curiosos pontos comuns com El Indio: nasceu a somente 60 km da cidade deste, ambos foram formados no Nacional, um defendeu o Tricolor uruguaio por 207 vezes, o outro o Tricolor paulista por 213. Se na aparência o loiro descendente de europeus contrasta com o mestiço moreno, se ambos deixaram seus clubes do coração com quase um século de distância, estão ligados pelo essencial – a garra charrua, o futebol-sacrifício.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Hilário Franco Júnior

Professor aposentado do Departamento de História-USP, autor (além de vários títulos de História Medieval) de A dança dos deuses. Futebol, sociedade, cultura (2007) e Dando tratos à bola. Ensaios sobre futebol (2017), ambos publicados pela Companhia das Letras.

Como citar

FRANCO JUNIOR, Hilário. O sacrifício do herói ou o nascimento da garra uruguaia. Ludopédio, São Paulo, v. 102, n. 20, 2017.
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