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Garrincha: a construção do mito (1958-1962) [1a. parte]

Denaldo Alchorne de Souza 27 de abril de 2023

Quando a seleção brasileira de futebol retornou da vitoriosa campanha na Copa da Suécia em 1958, Pelé não foi o único destaque das comemorações. Garrincha foi igualmente requisitado.1 Todos queriam homenagear os dois atacantes. Os outros craques também eram lembrados. Entretanto, era Pelé e Garrincha o centro das atenções gerais.2 Todos queriam vê-los, aclamá-los e, se possível, tocar-lhes e apertar-lhes as mãos. E eles correspondiam sorridentes.3

Entretanto, ao contrário do garoto de 17 anos, Garrincha já era um homem feito. Estava com 24 anos, era casado com Nair e pai de quatro filhas. Jogava no Botafogo desde 1953. Já participara de inúmeros campeonatos e amistosos no Rio de Janeiro e em outros estados. Todos conheciam Garrincha e poucos apostariam que ele seria um dos destaques da Copa, desbancando Didi ou Nilton Santos. Ainda mais grave: poucos apostariam que Garrincha conseguiria ser titular numa posição que, até a convocação, já possuía um dono: o grande Julinho Botelho. Se a admiração de Pelé era compreensível, um garoto que mal começara a jogar pelo Santos FC, que contava apenas com 17 anos, com um rosto de mais novo ainda e que, repentinamente, assombrou os brasileiros e o mundo com um desempenho que somente craques experientes possuíam; com Garrincha era tudo diferente. Até os jogos na Suécia, torcedores e jornalistas concordavam que o ponta-direita era excepcional nos dribles e nas arrancadas. Poucos zagueiros conseguiam impedi-lo de aplicar os mesmos dribles, cortando pela direita em direção à linha de fundo do campo.

Ter alguém como Garrincha num time era um trunfo indiscutível, mas também era um ônus. O jogador era acusado de irresponsável, infantil e pouco profissional, só querendo saber de mulheres, bebidas e de se divertir no povoado de Pau Grande com seus amigos de infância. Nas partidas também era um problema: não marcava o adversário, ficava muito tempo com a bola tentando um novo drible, atrasando o desenvolvimento do time. Ele poderia decidir uma partida contra fortes esquadrões, mas também poderia ser a causa da derrota contra frágeis adversários. Era um grande jogador, porém jamais um craque indiscutível, como já foram Friedenreich, Leônidas, Domingos da Guia, Zizinho e, naquele momento, Didi. Em relação à seleção brasileira, Garrincha só foi convocado porque o titular absoluto da posição, Júlio Botelho, que na época jogava no Fiorentina, da Itália, recusou o convite. Julinho era tão driblador quanto Garrincha, talvez até mais, já que possuía uma variedade maior de jogadas. Chutava e cruzava excepcionalmente bem. E ainda era muito mais profissional que o botafoguense. Não chegava atrasado aos treinos, era aplicado e seguia uma vida regrada fora de campo. Se Julinho aceitasse o convite, provavelmente a comissão técnica dispensaria um dos outros dois pontas-direitas: Joel, que era muito aplicado, ou Garrincha.

Sem Julinho, a convocação de Garrincha estava praticamente certa. Entretanto, segundo alguns jornalistas, esteve ameaçada por causa de um jogo preparatório feito na Itália, contra o Fiorentina, do mesmo Julinho Botelho. No lance mais comentado da partida, o ponteiro do Botafogo fez uma de suas habituais jogadas, partindo em direção do gol. Recebeu a marcação de um adversário e deu uma espetacular finta. Então, se dirigiu para o arco adversário, driblou o goleiro e, de frente para o gol vazio, ainda teve tempo e oportunidade para driblar outro defensor. Somente após esse último drible, chutou para fazer o quarto tento da seleção.

Os dirigentes acharam que Garrincha fizera uma jogada irresponsável. Ele estava de frente para o gol e, em vez de chutar, esperou o zagueiro para dar mais um drible. Era uma ameaça à equipe se Garrincha fizesse jogadas semelhantes durante a competição. Por isso que ele não fora escalado para as duas primeiras partidas contra as equipes da Áustria e da Inglaterra. Outros jornalistas diziam que o craque não participou da estreia e do encontro seguinte porque, ainda na Itália, havia desfilado pelas ruas de Milão com chapéu “Panamá” e guarda-chuva. Segundo o rigoroso regimento da comissão técnica, o atleta deveria usar somente o uniforme da CBD. As fotos foram distribuídas pela imprensa e se tornaram clássicas.4

O biógrafo de Garrincha, Ruy Castro, discorda de tais versões. Para ele, Garrincha fora cortado do jogo contra os austríacos por causa do meio-campo. Os adversários atuavam com quatro atletas nesta posição, enquanto os brasileiros com apenas dois, Dino Sani e Didi, e o ponta-esquerda Zagalo recuado. Era necessário recuar também o ponta-direita, atitude que Garrincha não faria, mas Joel sim. Contra os ingleses, a comissão técnica resolveu escalar novamente Joel porque o marcador inglês era o lateral-esquerdo Slater, considerado um dos jogadores mais violentos e desleais da Copa, principalmente se levasse um drible do oponente. Joel foi convocado com a advertência de que não prendesse a bola e que atuasse mais para o meio de campo. Apesar das advertências, Slater acertou Joel que passou a ficar sob observação médica.5 Se Garrincha foi escalado contra os favoritos soviéticos era porque seria uma partida mais condizente para o seu perfil. A estratégia definida pela comissão brasileira era jogar ofensivamente, desde o início.

E foi isso que acabou ocorrendo dentro do campo de futebol. Maravilhou os torcedores e jornalistas com seus dribles e jogadas, possibilitando a vitória brasileira por 2 a 0. Ele entrou e não saiu mais da equipe até a vitória final contra os anfitriões suecos. Após a conquista, ao receber os cumprimentos do rei da Suécia, Garrincha abaixou-se humildemente. Ele ainda não sabia, mas era um dos “reis” daquela Copa.

Garrincha
Foto: Reprodução Vímeo

No retorno da seleção brasileira, as festas em torno de Garrincha vinham de diferentes direções. Eram as autoridades querendo se aproximar para uma foto. Eram as revistas buscando uma entrevista inédita. Eram os populares que queriam estar mais perto do seu ídolo. Nesse momento, Garrincha já mostrava mais uma característica que o diferenciava. Ele não estava ao lado da mulher, ou das filhas. Às vezes, aparecia ao lado do pai ou o irmão. Porém, o que o distinguia dos outros campeões era a participação dos amigos de sua vila natal de Pau Grande. Estavam presentes mais de mil. Vieram buscar o seu pequeno rei ao canto de um frevo intitulado “Garrincha na Europa”. Eram as pessoas simples de sua comunidade que cresceram juntos, jogando “pelada”, caçando passarinho, pescando e namorando. Na comemoração, “era um grupo vibrante que atraía todas as atenções e irradiava alegria”.6

A alegria do torcedor por Garrincha não era somente por ser um jogador de um clube local. Não era somente uma alegria de botafoguense ou carioca, era na verdade uma alegria nacional. Por onde ele passava, no Rio ou em qualquer outra cidade, as pessoas iam ao seu encontro para agradecer a alegria que proporcionara. E por onde não passava era reverenciado. Em São Paulo: “O povo perguntou muito por Garrincha, que não veio”.7

Enquanto os jogadores paulistas se dirigiam ao seu destino. Garrincha se deslocava para Pau Grande junto com os seus amigos. Chegou à uma da madrugada. As luzes ainda estavam acesas e a população nas ruas, soltando fogos e dançando, resolveu carregar o herói patrício nos ombros. “Nunca pensei que fosse assim. O pessoal está entusiasmado” 8, disse o craque.

Atento ao interesse de seus leitores, já no dia 4 de julho, o Jornal dos Sports procurou apresentar a agora famosa Pau Grande, numa matéria de Sílvio Corrêa e Duarte Gralheiro, intitulada “O Mundo de Garrincha”. Pau Grande era um povoado, pertencente ao município fluminense de Magé, que surgiu à volta de uma fábrica. Quando o desenvolvimento das indústrias exigiu a concentração do operariado, os patrões tiveram de resolver o problema de acomodações. Se a fábrica mudava, o povo ia com ela. Segundo a matéria: “Ontem, quando deixamos a estrada principal e ultrapassamos aquele grande portão não imaginávamos que estávamos dentro de um terreno particular de horizontes indefiníveis a olho desarmado” e que, nesse terreno, “havia um pequeno mundo”. Era uma “espécie de reino, isolado, com a capela, o campo de foot-ball, a creche e a escola”.9

O vilarejo de Pau Grande passava a ser desenhado como um pequeno reino idílico, uma “Pasárgada” de Manuel Bandeira, um paraíso terrestre.10 E era nesse paraíso onde estavam as propriedades mais valiosas de Garrincha: a sua criação de galinhas, patos e perus e a sua vaca. “Foi um reencontro também de ternura. Como também terna foi a pelada de Garrincha com o pessoal de Raiz da Serra. Toda a população veio ver seu herói. Houve retrato em campo”.

Como todo reino, sempre há um rei. Ele nasceu Manuel Francisco dos Santos, mas no seu reino era reverenciado como Garrincha, o nome de um passarinho. Ele era o condestável do lugar. Simples e humano, via tudo aquilo com naturalidade. Gostava de “embrenhar-se pelo mato, montar em pelo, de caçar e parece imunizado, por uma força misteriosa, contra o fascínio e os vícios da cidade”. Todas as semanas, ia ao Rio para treinar e jogar no Botafogo e voltava sempre puro. “A glória e o dinheiro não corromperam sua alma simples e boa”.

Após apresentar o jogador e o seu paraíso, a matéria finalmente mostrava a sua família: “D. Nair Marques de Sousa, a esposa de Garrincha, é mulher feliz. Ainda de mão dada com Manuel”. Trazia um brilho forte no olhar e uma voz trêmula: “‘– Tudo isto me parece um sonho bom’. E olhava o Manuel com ternura. ‘– Às vezes também penso que é tudo um sonho’”. E Garrincha olhava o interior de sua casa nova, com móveis polidos e bonitos. Então, o menor dos quatro filhos agarrou-lhe as pernas tortas sem suspeitar. “Eram apenas as pernas do seu pai. Um dia saberá de tudo. Vão contar-lhe tim-tim por tim-tim os golpes decepantes e aquelas pernas tortas desferiram na Suécia”.

O coitado do jornalista ainda não sabia que Garrincha somente tinha filhas com Nair. No entanto, aqui se tentou delinear uma estratégia narrativa, de dar evidência aos pais, irmãos, mulher e filhas, que, aos poucos, foi abandonada.

Voltando à matéria de Jornal dos Sports, a descrição saía da esfera privada e retornava à recepção que a comunidade de Pau Grande deu ao craque. Era apresentado um gerente da América Fabril que conhecia Garrincha desde menino sem especificar que o próprio jogador já fora funcionário da fábrica. Finalmente o craque declarava: “– Aqui é o meu mundo e a minha vida. Enquanto jogar no Botafogo, onde estou muito bem, não deixo Pau Grande”. Sobre jogar na Europa, disse: “– Eu faria esse sacrifício, desde que fosse para assegurar de uma vez por todas a sorte de minha família”. Somente isso o afastaria de Pau Grande, já que “peixe não vive fora d’água”.11

O Cruzeiro, de 12 de julho, procurou seguir uma estratégia semelhante ao convidar o pai e os irmãos para recepcionarem Garrincha no retorno da seleção.12 Porém, o jogador se mostrava deslocado naquele novo ambiente. Procuraram fotografá-lo junto com a bailarina Margot Fonteyn e reunir numa única foto “quatro das maiores pernas de todos os tempos”. Mas o pensamento do craque estava longe. Estava nas matas de Pau Grande, “onde caçar zabelê e codorna é mais gostoso que brigar com russo e francês”. Garrincha se sentia perdido naquele ambiente apertado de gente, que estava sempre lhe pedindo autógrafos. “Parecia enforcado no colarinho, doido para voltar a Pau Grande, para ouvir passarinho cantando. Seu Manuel Garrincha é um pedaço da natureza, que os homens teimam em prender em uma gaiola”. Aparentemente, o jogador não se sentiu à vontade com a iniciativa da revista. Já outra matéria da mesma edição abordava Mané, agora, em Pau Grande. A recepção e os festejos no dia seguinte eram mostrados numa sequência de fotos: Mané carregado pela multidão, beijado pelos pais, jogando pelada com os habitantes da vila e dando alimentos para seus animais.13

Entre as duas reportagens, publicadas com uma diferença de oito dias, podia-se verificar muitas semelhanças. A tentativa de dar um aspecto familiar mostrando os pais e os irmãos de Garrincha. A inibição na grande cidade e o desprendimento em Pau Grande. Se a primeira mencionava a presença dominante da América Fabril; a segunda não fazia referência, ambas não noticiavam o seu passado operário. A imagem predominante era de um camponês, à vontade no meio rural, ainda preso a um passado idílico e puro que o Brasil estava perdendo.

Havia mais uma diferença marcante entre as duas reportagens, a segunda não contava com a presença da esposa Nair e de suas quatro filhas. A razão, nós nunca saberemos, mas esta mudança já mostrava uma tendência das reportagens que foram feitas nos anos seguintes. Nair só era noticiada quando nascia mais uma filha. Somente em 1963, voltou a ser destaque nas matérias jornalísticas, quando se separaram em definitivo.

A ausência da família ficou mais evidente nos meses seguintes, com o “ocultamento” dos pais e dos irmãos. Os personagens que passaram a preencher as narrativas estavam fora do lar, fora da família. Eram o Botafogo e seus colegas de trabalho, de um lado, e Pau Grande e seus amigos Pincel e Swing, de outro.

Garrincha foi uma novidade para a imprensa esportiva. Mário Filho, por exemplo, admirava o jogador, mas não esperava que o seu desempenho fosse tão marcante nos campos da Suécia.14 O espanto ficou demonstrado na crônica que escreveu, quando o Botafogo ganhou do Fluminense por 2 a 1: “A fantasia foi Garrincha. Virei sueco vendo Garrincha jogar. Eu só não, todos nós. Quando Garrincha pegava na bola o Maracanã virava aquele estadinho de Gotemburgo com um povo todo de pé, tudo alegre, feliz da vida!”. Só quem não estava feliz era o zagueiro do Fluminense Dodô, que tinha a missão de marcá-lo. Já Garrincha, era um contador de anedotas inglês. “Dava os driblings sério, quase grave, como se não estivesse fazendo nada demais. […] Dentro da humildade, da simplicidade dele. Por isso, talvez, a gente se espanta mais”. Somente agora os brasileiros puderam ver Garrincha direito. “O mundo todo chamou a nossa atenção para ele. Antes o víamos fazer coisas pelo menos parecidas se não deixávamos cair o queixo. Vem o europeu e grita para o mundo: vejam o Garrincha”.15

O jogador foi uma surpresa mais para a imprensa e para os dirigentes esportivos que para os torcedores. Em eleição patrocinada pela revista Manchete Esportiva às vésperas da Copa para saber qual era o “escrete brasileiro de todos os tempos”, os leitores elegeram Garrincha entre os onze jogadores, com um total de 7.969 votos.16 Mesmo considerando que a revista deveria ser mais lida no Rio de Janeiro do que em outras regiões do Brasil, já mostrava que, pelo menos entre os cariocas, já era muito querido. A diferença era que, após a Copa da Suécia, Garrincha deixou de ser admirado apenas pelos cariocas para se tornar um mito nacional.

Garrincha
Busto do Mané Garrincha no antigo Maracanã. Fonte: wikipédia

Se ele era um mito era porque possuía algumas características que faziam com que os populares o reverenciassem como tal. Entretanto, ao contrário de Pelé, Garrincha não era mito por ser predestinado. Definitivamente Garrincha não era um predestinado. Ele já era um jogador considerado de meia-idade para o futebol. Tinha vinte e quatro anos. Já jogava pelo Botafogo há cinco anos. Foi convocado para a seleção como reserva de Joel. Para grande parte da imprensa, um jogador tão sem ambições, tão sem objetivos profissionais e pessoais, uma pessoa tão simples não podia ser um predestinado pela singela razão que não havia nada, para ele, previamente destinado.

Garrincha também não era mito por causa da sua excepcionalidade. Era excepcional, mas diferente de Pelé. Não era completo como o craque santista que chutava com as duas pernas, cabeceava, batia falta, dava passes, fazia gols como poucos, enfim, dominava todos os fundamentos do ofício. Ele não era um atleta completo. Muito pelo contrário. Era uma pessoa que dificilmente passaria num exame médico que o habilitasse a ser um jogador de futebol. Segundo seu biógrafo Ruy Castro, o Botafogo em 1953 precisava urgentemente de um jogador para a posição de ponta-direita; por isso que o aceitaram. Quando Garrincha foi fazer os rotineiros exames médicos, ele subiu numa mesa para poderem examinar as suas pernas. Garrincha tinha o joelho direito em varo, virado para dentro, e o esquerdo em valgo, virado para fora, além de um deslocamento da bacia. Segundo os médicos, “sua perna esquerda era seis centímetros mais curta que a direita”.17

Se era excepcional, não era pela variedade de jogadas que dominava. Era mais pelo oposto. Aparentemente possuía apenas um tipo de jogada, um drible para a direita. Ele levava a bola devagar à frente do marcador e, em um movimento súbito, acelerava para a direita, buscando cruzar ou chutar para o gol. Muitas vezes, depois do primeiro confronto, dava uma parada súbita e aplicava um novo drible nos adversários. Para Mário Filho, Garrincha parecia que era lento, lerdo e indolente. E quando acabava não havia jogador mais rápido do que ele. Quando saia com uma bola era a duzentos quilômetros por hora. Os outros precisavam engrenar, passar da primeira para a segunda marcha. Ele saia de primeira. Parecia um bobo e não havia ninguém mais esperto do que ele. Talvez fosse mais apropriado chamar a sua excepcionalidade de não excepcional.

Mas, voltamos a repetir, Garrincha não era considerado um mito pelos trabalhadores porque era excepcional ou extraclasse. Se Garrincha se tornou um mito nacional foi porque ele possuía uma identificação total e absoluta com os trabalhadores que o escolheram como mito. Foi porque as pessoas comuns viram que ele era outra pessoa comum, geralmente tratada com pouca importância e consideração, e que merecia ser respeitado.

Mário Filho, com a sua sensibilidade peculiar, assim tentou definir o herói Garrincha: “Estamos diante de um ídolo: Garrincha”. Entretanto, “por que foi Garrincha e não outro? Talvez tenha sido porque parece igual a todo mundo, sendo Garrincha. É o seu Mané de Pau Grande e não quer ser mais do que isso”. Qualquer outra personalidade nacional que não quisesse sair de Pau Grande ficaria logo suspeita de querer ser candidato a presidente da República e de fazer média com o povo. E a única coisa que Garrincha pretendia era continuar sendo Garrincha.18 Um ídolo assim era irresistível.

Sim, para Mário Filho, um herói desses era irresistível. Era irresistível, não porque era um simplório, um ingênuo, um camponês ou o rei de uma Pasárgada, mas porque ele dividia com os trabalhadores uma mesma visão de mundo, onde os ideais de felicidade e de justiça eram bem diversos dos oficiais. Esses ideais eram encontrados não no mundo do trabalho, como na versão oficial, mas no mundo do lazer e do convívio social.

[Continua na 2a. e última parte….]

Notas

1 O artigo está dividido em duas partes e é baseado no quinto capítulo do livro do mesmo autor, intitulado Pra Frente Brasil!. Ver: SOUZA, Denaldo Alchorne de. Pra Frente Brasil! Do Maracanazo aos mitos de Pelé e Garrincha, a dialética da ordem e da desordem (1950-1983). São Paulo: Intermeios, 2018, p. 131-148.

2 Ver: SOUZA, Denaldo Alchorne de. Pelé: a construção do mito (1958-1962)[1a. parte]. Ludopédio, São Paulo, v. 164, n. 16, 2023; e SOUZA, Denaldo Alchorne de. Pelé: a construção do mito (1958-1962)[2a. parte]. Ludopédio, São Paulo, v. 165, n. 17, 2023.

3 Jornal dos Sports, 3 jul. 1958, p. 8.

4 Jornal dos Sports, 30 mai. 1958, p. 8.

5 CASTRO, Ruy. Estrela Solitária: um brasileiro chamado Garrincha. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 152-162.

6 Jornal dos Sports, 3 jul. 1958, p.11.

7 Folha da Manhã, 4 jul. 1958. Assuntos Gerais, p. 9.

8 CARINHO e ternura marcaram a volta (ao lar) dos campeões. O Cruzeiro, 12 jul. 1958. Extra, p. XXV.

9 CORRÊA, Silvio; GRALHEIRO, Duarte. Mundo de Garrincha. Jornal dos Sports, 4 jul. 1958, p. 5.

10 “Vou-me embora pra Pasárgada / Lá sou amigo do rei / Lá tenho a mulher que eu quero / Na cama que escolherei. // Vou-me embora pra Pasárgada / Vou-me embora pra Pasárgada / Aqui eu não sou feliz / Lá a existência é uma aventura / De tal modo inconsequente / Que Joana a Louca de Espanha / Rainha e falsa demente / Vem a ser contraparente / Da nora que nunca tive. // E como farei ginástica / Andarei de bicicleta / Montarei em burro brabo / Subirei no pau-de-sebo / Tomarei banhos de mar! / E quando estiver cansado / Deito na beira do rio / Mando chamar a mãe-d’água / Pra me contar as histórias / Que no tempo de eu menino / Rosa vinha me contar / Vou-me embora pra Pasárgada. // Em Pasárgada tem tudo / É outra civilização / Tem um processo seguro / De impedir a concepção / Tem telefone automático / Tem alcaloide à vontade / Tem prostitutas bonitas / Para a gente namorar. // E quando eu estiver mais triste / Mas triste de não ter jeito / Quando de noite me der / Vontade de me matar / — Lá sou amigo do rei — / Terei a mulher que eu quero / Na cama que escolherei /Vou-me embora pra Pasárgada”. BANDEIRA, Manuel. “Vou-me embora pra Pasárgada”. In: BANDEIRA, Manuel. Bandeira a Vida Inteira. Rio de Janeiro: Alumbramento, 1986, p. 90.

11 CORRÊA, Silvio; GRALHEIRO, Duarte. Mundo de Garrincha, op. cit., p. 5.

12 O mesmo pode ser dito do presidente Juscelino Kubitschek, quando convidou o pai de Garrincha para assistir o jogo contra os franceses. Ver: A Gazeta Esportiva, 27 jun. 1958, p. 7.

13 “SEU” MANUEL, caçador. O Cruzeiro, 12 jul. 1958, p. 49.

14 Antes da Copa, Mário Filho via em Garrincha, na sua simplicidade, o ideal do jogador brasileiro capaz de suplantar os traumas das Copas de 1950 e de 1954. Porém, nunca achou que Garrincha seria tão decisivo na conquista do título como foi, ou mesmo ser um substituto a altura de Julinho Botelho.

15 RODRIGUES FILHO, Mário. Todos nós viramos suecos vendo Garrincha jogar. Jornal dos Sports, 15 jul. 1958, p. 5.

16 A eleição foi feita através de cartas mandadas pelos leitores à redação da revista. O resultado final foi: “Castilho, 6.800; Djalma Santos, 7.000; Domingos, 7.800 e Nilton Santos, 8.900; Danilo, 7.600 e Bauer, 7.865; Garrincha, 7.969, Zizinho, 8.000, Leônidas, 8.760, Jair, 8760 e Ademir, 9670”. In: Manchete Esportiva, 31 mai. 1958, p. 30-31.

17 CASTRO, Ruy. Estrela Solitária, op. cit., p. 67.

18 RODRIGUES FILHO, Mário. Garrincha, o herói à minuta. Jornal dos Sports, 16 jul. 1958, p. 5.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Denaldo Alchorne de Souza

Denaldo Alchorne de Souza fez pós-doutorado em História pela USP, doutorado em História pela PUC-SP e mestrado, especialização e graduação em História pela UFF. É autor dos livros Pra Frente, Brasil! Do Maracanazo aos mitos de Pelé e Garrincha, 1950-1983 (Ed. Intermeios, 2018) e O Brasil Entra em Campo! Construções e reconstruções da identidade nacional, 1930-1947 (Ed. Annablume, 2008), além de diversos artigos publicados em revistas, jornais e sites. Atualmente é pesquisador do LUDENS/USP e Professor Titular do Instituto Federal Fluminense, onde leciona disciplinas na Graduação em História.

Como citar

SOUZA, Denaldo Alchorne de. Garrincha: a construção do mito (1958-1962) [1a. parte]. Ludopédio, São Paulo, v. 166, n. 27, 2023.
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