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Dos gramados para o mundo virtual: Gérson, um craque midiático

O dia era 21 de junho de 1970. A final da Copa do Mundo do México estava empatada. Pelé havia aberto o placar para o Brasil, mas Bonisegna tratara de deixar tudo igual no Estádio Azteca. O segundo tempo já ia quase pela metade quando Jairzinho recebeu na intermediária. A marcação chegou forte e a bola, espirrada, sobrou para o camisa 8. Ele ajeitou com a perna esquerda, tirando a marcação e acertou um tiro cruzado, sem chance para o goleiro Albertosi.

Com os olhos voltados para o céu, correu para a lateral do campo, onde foi abraçado por todo o time. Foi seu único gol naquele mundial, mas um gol de extrema importância. A cansada Itália abriu a guarda e mais dois gols, de Jair e Carlos Alberto garantiriam a posse definitiva da Taça Jules Rimet. Nos últimos quatro mundiais, o Brasil havia imposto sua superioridade no futebol mundial e conquistara três títulos: 1958, 1962 e 1970.

Gérson de Oliveira Nunes começou a chamar a atenção na sua Niterói, atuando pelo Canto do Rio. Quando foi contratado pelo Flamengo, já chegou com o status de craque revelação. Não tardou a ser titular e teve como suas principais conquistas no clube da Gávea, o Torneio Rio-São Paulo de 1961 e o Carioca de 1963. Se bem que desse último título participou bem pouco. Só atuou em três partidas. Andava às turras com o treinador Flávio Costa desde o final do ano anterior. O motivo seria a incumbência de marcar Garrincha na final do Carioca de 1962. Gérson, que nunca fora jogador de marcação, levou um baile. Mané fez três gols naquela partida (um foi contra, mas o chute desviado foi dele).

Em setembro de 1963, o Flamengo decidiu estipular um valor para o passe do “Canhota” e graças a um encontro casual com o artilheiro botafoguense Quarentinha, foi parar em General Severiano. O alvinegro depositou o valor pedido e quando o presidente Fadel Fadel se deu conta, Gérson já estava liberado para vestir a camisa da Estrela Solitária. Foi no Botafogo, aliás, que conquistou suas maiores glórias. Títulos regionais, nacionais e internacionais. Cansou de erguer taças.

Um líder em campo e exemplo para a nova geração alvinegra.

Porém, em mais um choque com os cartolas, foi parar no São Paulo, onde estava na época da Copa de 1970. Foi ídolo no Tricolor onde conquistou o bicampeonato paulista, tirando o São Paulo de uma longa fila sem títulos. Pouco antes de terminar a carreira, se transferiu para outro tricolor, o do Rio. O Fluminense era seu time de coração e lá também foi campeão. Comandando o time na conquista do Carioca de 1973.

Trocando as chuteiras pela “latinha”

Lá se vão 50 anos desde o golaço na final da Copa e quase isso desde que pendurou as chuteiras, mas Gérson está longe de ser mais um integrante de pôsteres amarelados de títulos passados. O Canhotinha de Ouro, driblou o tempo como costumava fazer com seus marcadores e em pleno Século XXI, prestes a completar 80 anos, passeia com desenvoltura pelas mídias sociais. Um fenômeno de popularidade que transpôs gerações.

Como alguns outros “boleiros”, Gérson foi para o Rádio, ainda na década de 1970. Sua leitura de jogo, fruto de quem atuou muitos anos nas quatro linhas, fez com que ganhasse respeito e público, afinal, tinha sido o “maestro” da Seleção na conquista do tricampeonato mundial, no México, em 1970. De acordo com o jornalista João Máximo: “Era respeitado, admirado, craque e líder. O próprio espírito da Seleção.”

Em seu começo, como comentarista, porém, tinha um concorrente de peso, o jornalista João Saldanha. Maior nome da Rádio Globo, principal emissora esportiva carioca durante muitos anos, Saldanha também tinha um histórico ligado à Seleção do Tri, fora ele quem montara a base daquele time para as eliminatórias do Mundial e só não fora ao México como treinador por “bater de frente” com o Presidente da República, Médici insistia para que convocasse o atacante Dario.

O estilo de Gérson e de Saldanha, como comentaristas sempre foi bastante similar. Análises informais, sem tantos tecnicismos e com uma linguagem mais popular, adotando um tom de diálogo com o ouvinte/telespectador, como lembra o biógrafo de João, André Iki Siqueira:

“João gostava do Maracanã. Quanto mais lotado melhor. E gostava mesmo da geral. Ali, o rádio era fundamental para que os geraldinos soubessem em que faixas do campo o jogo se desenvolvia. Saldanha cumpria um papel importante para eles: analisar o jogo que eles tinham dificuldade de ver. João falava preferencialmente para esse torcedor; o mais humilde, que gastou o dinheiro suado para ver a partida. Fone nos ouvidos, rosto bem próximo da janela da cabine que dá para a geral., ele falava e olhava para o torcedor lá em baixo. Gesticulava e provocava. E a galera da geral, já sabemos, respondia.”

Gérson acabou herdando esse público após a morte do comentarista gaúcho durante a Copa da Itália, em 1990. A informalidade e a passionalidade de suas análises, inclusive refletindo os sentimentos do torcedor (tanto a satisfação, quanto a indignação), garantiram seu sucesso.

Esse papel de comentarista/torcedor o levou a protagonizar cenas inusitadas, como a do dia em que tirou a camisa para comemorar uma vitória do Botafogo na Libertadores, em 2014, em plena cabine de transmissão. Um episódio que, contudo, não causou nenhuma estranheza por parte de seus admiradores, acostumados com as reações extremas do comentarista e que, ainda por cima, gerou enorme repercussão do meio esportivo.

Espontaneidade e irreverência: marcas do “Canhota”.

Em uma “tabelinha” de sucesso, formou dupla com o locutor José Carlos Araújo, não apenas na Rádio Globo, mas também em outras emissoras de rádio e nos programas televisivos comandados pelo “Garotinho”. Durante um bom tempo também manteve uma coluna no Jornal dos Sports.

A imagem positiva de Gérson fez com que superasse, até mesmo uma infeliz associação do ex-jogador com a corrupção. A propalada “Lei de Gérson” se refere a uma frase dita por ele em um antigo anúncio de cigarros: “Gosto de levar vantagem em tudo, certo?”. Logo ele, um dos craques de história mais coerente do futebol brasileiro.

Canhotinha 70

Atual e atuante, e na busca de renovação de seu público, desde o ano de 2019, leva suas análises das partidas para as mídias sociais. Um campo promissor para o tema futebol se levarmos em consideração o número crescente de ações de clubes e torcedores nesse segmento.

No YouTube e no Instagram, proliferam canais e perfis voltados para o dia a dia dos clubes, com noticiário, entrevistas, análises e lives. A condução, feita por torcedores inclui, em alguns casos, até mesmo transmissões de jogos.

De olho nesse mercado e em seu crescente retorno comercial, os clubes também desenvolveram seus próprios canais, uma ligação direta com o público-alvo sem a necessidade de um meio de comunicação formal como intermediário. De acordo com os números divulgados pelo IBOPE Repucom, em outubro de 2020, os 6 clubes com maior número de seguidores em redes sociais já somavam um público de mais de 100 milhões de pessoas.

Os resultados da iniciativa do “Canhota” também são bastante expressivos. Gérson mantém um canal no YouTube, com mais de 250 mil inscritos; um perfil no Instagram, com cerca de 70 mil seguidores e uma conta no Twitter, com outros 45 mil fãs. Um fenômeno, se levarmos em conta que muitas dessas pessoas não tiveram a oportunidade de vê-lo em campo e o “seguem” justamente por seu desempenho midiático.

Alguns números são espantosos. No canal de YouTube, por exemplo, há um vídeo sobre o Flamengo, no auge do clube, na Copa Libertadores de 2019 que alcançou 375 mil visualizações. Até outubro de 2020, já eram quase 370 vídeos disponibilizados.

A equipe de produção é pequena e quase familiar. A ideia, aliás, veio da neta. Incialmente o canal se dividia em quatro quadros: “Comentários de jogos”, “Resenha do Canhota”, “Canhota responde” e “Baú do Canhota”, porém a demanda de tempo era enorme e hoje o canal se restringe, basicamente, às resenhas de partidas.

Em um setor concorrido e dominado, em sua maioria, pelo público mais jovem. Os resultados consistentes dos canais disponibilizados pelo quase “oitentão” Gérson no meio digital merecem registro. O “Canhota”, mesmo em um campo tão adverso mostra, mais uma vez, o que nunca lhe faltou nos gramados, sabedoria para entender o jogo e categoria para “dar tratos à bola”.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Rafael Casé

Jornalista e professor universitário. Autor de sete livros sobre o mundo do futebol, mais especificamente sobre a história e ídolos do Botafogo de Futebol e Regatas. E com um novo projeto em andamento, o livro Hoje é dia de Botafogo, a ser lançado no final de 2020.

Como citar

CASé, Rafael. Dos gramados para o mundo virtual: Gérson, um craque midiático. Ludopédio, São Paulo, v. 137, n. 24, 2020.
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