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Gestos futebolísticos: celebrar, orgulhar, envergonhar

Algo que espantava os corintianos em 1978, quando Sócrates chegou ao Parque São Jorge, vindo de Ribeirão Preto, era que ele não comemorava os tentos que anotava. O Doutor alcançara um título pelo Botafogo, o do primeiro turno do Paulistão (à época o campeonato estadual era realmente magnânimo), e recebera o canudo de formatura em Medicina, na Universidade de São Paulo, com a faixa de campeão sob a toga. Apesar do antecedente, a frieza do craque era enigmática. Minimalista nos gestos, com o tempo a postura foi sendo outra. As parcerias com Palhinha, Casagrande e Ataliba, os títulos, a Democracia Corinthiana, o calor da Fiel, tudo isso o foi mudando e ele passou a celebrar os gols. Fazia isso geralmente com os colegas, e foi sempre menos efusivo que outros tantos atacantes brasileiros que se notabilizaram pela artilharia, mas também pela vibração a cada bola na rede.

Jogador que sempre mostrou sua alegria pelo gol é Reinado, o melhor centroavante que tivemos antes de Careca, Romário e Ronaldo. Craque do Atlético Mineiro e da seleção brasileira, jogou pouco tempo, condenado à aposentadoria precoce por causa das lesões no joelho, comemorou muitos dos seus gols com o braço esquerdo dobrado às costas e o punho direito erguido, forma similar à como haviam feito os corredores Tommie Smith e John Carlos em 1968, no pódio dos Jogos Olímpicos do México. Pela seleção, no empate contra a equipe sueca na Copa de 1978, na Argentina sob ditadura – assim como o país a ela vizinho, o Brasil –, foi dele o único gol brasileiro, comemorado com entusiasmo, e não muito bem recebido pela cúpula militar da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), entidade que então mandava no futebol.

Sabendo que são filmados e vistos por milhões de pessoas, não é raro que os jogadores calculem os movimentos e gestos que realizam no campo. Isso pode valer para a autopromoção, mas também para manifestações de protesto, quando a comemoração de um gol fica suspensa. Pouco antes de se transferir para o Lyon, onde fez carreira vitoriosa que o transformou em ídolo local (ele é hoje dirigente do Clube), Juninho Pernambucano ajudou ao Vasco a vencer a Copa João Havelange, o campeonato nacional de então, em final contra o São Caetano. Autor de um dos gols no último jogo do torneio de 2000, mas já em 2001, ele não o celebrou, em protesto contra a administração do cruzmaltino, então liderada por Eurico Miranda.

Há jogadores que não comemoram os gols feitos contra clubes em que viveram uma história importante. Lembro-me de um golaço de Douglas, atuando pelo Grêmio em 2010, contra o Corinthians, em que logo a seguir fez sinal para os companheiros de que não seria efusivo na celebração. O camisa 10 voltaria ao Timão para ser campeão mundial em 2012. Admiro os que assim procedem, como admirei Carlitos Tevez que em 2005, ao dirigir-se à torcida corintiana depois da bola na rede, fez com as mãos o número 6, o mesmo que Fininho levava às costas, ele que vinha sendo perseguido de forma implacável pela Fiel. Muito vaiado, o lateral-esquerdo alvinegro havia mostrado o dedo do meio para os torcedores, poucos dias antes. Não demorou muito para que tivesse que deixar o clube.

Dedos do meio foram mostrados também pelo volante Cristian, em 2009, na semifinal do Paulista, quando o Corinthians, de Ronaldo, Elias e Mano Menezes, venceu o São Paulo. Feito o gol, a corrida na direção da torcida tricolor foi com os braços cruzados e dedos em riste. A provocação parecia clara, mas o advogado do Corinthians, João Zanforlin, ao tentar amenizar o fato e livrar o jogador de uma suspensão, colocou em dúvida o sentido do gesto: talvez ele tivesse homenageado alguém, visto que levava o nome de uma mulher tatuado no antebraço, ou, quem sabe, ele significasse não uma ofensa, mas outra coisa, já que feito com os dois braços cruzados sobre o peito. A criatividade advocatícia só pode ser comparada à atração, muito masculina, pela imposição de gestos que se pretendem reafirmações fálicas. Claro, dirigidos a outros homens.

Há jogadores que fazem símbolos de armas com dedos e braços. Entre eles, o triste Felipe Melo, em recado sobre sua posição política. Por outro lado, o alegre Paulinho, atacante do Bayer Leverkusen e da seleção brasileira olímpica, usa os braços para fazer o gesto de disparar uma flecha, em homenagem a Oxóssi, orixá do Candomblé ligado à natureza, contemplação e conhecimento.

Faz uns meses, fora do campo, o centroavante Gabriel Barbosa, do Flamengo, foi flagrado na madrugada paulista em um cassino. O jogador diz ter saído com o intuito de jantar com amigos, sem saber para onde iriam e que lá haveria aglomeração, situação perigosa e ilegal, já que estávamos, como estamos, sob a pandemia do Covid-19. Não foi a explicação que me chamou a atenção, mas o gesto do jogador, de cobrir a cabeça ao ser flagrado deixando o local detido pela polícia. Lembrei-me de um depoimento do jornalista Flávio Tavares, um dos 15 presos políticos trocados pela liberdade do embaixador estadunidense Charles Elbrick, em 1969. O grupo de 14 que embarcaria para o exílio no México (o décimo-quinto seria incorporado em Manaus, em uma escala) fez pose para a foto como se compusesse um time de futebol. Tavares afirma que no momento que precedeu o disparo da máquina, sugeriu que todos erguessem as mãos e mostrassem as algemas, já que presos políticos não têm por que ter vergonha de sua condição.  Entre o orgulho de lutar contra a ditadura e a constrangedora ostentação dos futebolistas mais bem pagos, temos algo a aprender.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Gestos futebolísticos: celebrar, orgulhar, envergonhar. Ludopédio, São Paulo, v. 145, n. 63, 2021.
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