113.14

Gigantesco fone de ouvido

Leandro Marçal 13 de novembro de 2018

Enquanto aguardava minha vez de ser atendido no banco, alternava entre músicas antigas e podcasts selecionados no meu celular. O fone de ouvido que ganhei de presente no último aniversário foi comprado em um desses sites de produtos chineses.

Ele forma um arco em volta da minha cabeça e é impossível não perceber minha maior preocupação com áudios que com o mundo explodindo ao redor. Para não prejudicar minha audição, evito colocar o volume muito alto. Pouco importa, ignoro o que falam perto de mim, mesmo escutando conversas bizarras, constrangedoras, vergonhosas.

O bate-papo entre uma senhora e seu filho era sobre os rumos da política nacional para os próximos anos. Ela falava de um tempo em que tudo era bom, ele rebatia com ensinamentos da escola, dos livros de História. Os olhares da mãe para mim eram com cara de quem pedia alguma aprovação. Eu só me preocupava com minha playlist, não queria arrumar problemas.

Eu era um jogador de futebol descendo do ônibus rumo ao clássico de fim de semana. O jogo pode definir a vida do time no campeonato, tanto para o título quanto para o rebaixamento. Submeti o gigantesco fone de ouvido antes de descer os três degraus do ônibus e ignorar os jornalistas e torcedores.

O fone de ouvido. Foto: Pedro Martins/Mowa Press.

Todo mundo quer saber o que tenho a falar das provocações do volante rival, que lembrou derrotas em clássicos do passado. Eu finjo que ouvia algo importante – uma música de fácil esquecimento nas próximas décadas. E daí que a torcida quer ouvir quem a representa dentro de campo? Queria apenas sair daqui e ir logo para o vestiário, arrumar as meias e entrar em campo, como quem bate cartão na firma e só espera a hora de ir embora para casa.

O mundo ao redor poderia estar acabando, derretendo, escorrendo pelo ralo. O fone de ouvido era a autorização para não ser incomodado, exceto em casos de tiroteios no centro da cidade ou se uma velhinha passar mal, muito mal, a ponto de precisarem de mais alguém para ajudá-la a subir na ambulância.

Acho até que a senhora e seu filho sabiam que eu ouvia tudo. Nem precisavam falar alto, gritar, se espernear. Eu fingia não ouvir. Eles fingiam acreditar no meu descaso com um papo tão importante para os destinos da humanidade.

Quando chegou minha vez de ser atendido pela caixa com cara de cansaço do emprego, me senti passando pela zona mista, desviando dos microfones empunhados de quem também está ali só para trabalhar, nada mais. Fui embora, coloquei o dinheiro no bolso secreto da bermuda velha, respondi mensagens pelo celular e atravessei a rua. A buzina me chamou atenção, corri, subi à calçada do outro lado.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. Gigantesco fone de ouvido. Ludopédio, São Paulo, v. 113, n. 14, 2018.
Leia também:
  • 154.1

    O clássico (da vez) da imprensa clubista

    Leandro Marçal
  • 135.69

    Donos da banca

    Leandro Marçal
  • 135.54

    Deixem o Cleber em paz

    Leandro Marçal