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Gil César Moreira de Abreu e os estádios da ditadura

Faleceu, no último mês, aos 90 anos, Gil César Moreira de Abreu[1], o engenheiro de alguns dos mais emblemáticos “estádios da ditadura”. Nascido em Juiz de Fora em 1931, Gil César cursou engenharia civil e de transportes na UFMG, tornando-se chefe da unidade de execução do setor de obras da Diretoria de Esportes de Minas Gerais em 1962. Três anos mais tarde, já durante o regime de exceção, tornou-se engenheiro-chefe da administração do Estádio Minas Gerais, popularmente conhecido como Mineirão, sendo até hoje relembrado como um dos grandes artífices do Gigante da Pampulha.

A história de Gil César se confunde com a do projeto de integração nacional, em particular, com o uso que a ditadura militar brasileira fez do futebol. Seus laços políticos com a ditadura se estreitaram quando se filiou à Aliança Renovadora Nacional, a Arena, partido governista, sendo eleito vereador de Belo Horizonte em 1972. Com o fim do bipartidarismo, filiou-se ao Partido Democrático Social, o PDS, filhote da Arena, sendo eleito deputado estadual por Minas Gerais em 1982.Em 1986, já no PMDB, tornou-se deputado federal constituinte, acumulando opiniões contraditórias, como a defesa “do aborto, […] do turno ininterrupto de seis horas, […] do voto aos 16 anos, […] da anistia aos micro e pequenos empresários”, e foi “contra a pena de morte, a limitação do direito de propriedade privada, a jornada semanal de 40 horas, a pluralidade sindical, a estatização do sistema financeiro, […] a criação de um fundo de apoio à reforma agrária e a legalização do jogo do bicho”.(CPDOC.FGV, Dicionário histórico-biográfico brasileiro, 2009)

Com o sucesso do Mineirão e seu trânsito entre os políticos governistas da ditadura, Gil César foi convidado a chefiar as obras do Morenão em Campo Grande, do Albertão em Teresina, do Amigão em Campina Grande, do Almeidão em João Pessoa, e do Parque do Sabiá em Uberlândia; além de trabalhar nos projetos de construção da Toca da Raposa, CT do Cruzeiro, e do Labareda, Jaraguá e Pampulha Iate Clube, clubes sociais e recreativos da região da Pampulha. Neste texto, ficaremos apenas nos grandes estádios brasileiros que teve Gil César como engenheiro chefe.

Mineirão

O primeiro grande estádio público da nossa lista foi também o inaugural construído no período da ditadura militar no Brasil, na década de 1960. Apesar disso, a história do Mineirão remonta a meados dos anos 1940, quando os clubes e a imprensa esportiva da capital mineira acusavam a pequenez dos estádios locais como justificativa da baixa competitividade do futebol belo-horizontino em relação ao Rio de Janeiro e São Paulo. Esse discurso era comum mesmo após a inauguração do Estádio Independência, em 1950, para a realização da Copa do Mundo no Brasil.[2]

Em resposta a essa histórica demanda, em 1952 o então governador de Minas, Juscelino Kubitschek, criou uma Comissão de Construção do Estádio Estadual, sem grandes avanços. O debate, no entanto, perdeu forças, só retomando no final dessa mesma década, quando, em 1959, a Assembleia Estadual aprovou recursos para a edificação do estádio, firmando convênio com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que também cederia área de 300 mil m² de sua Cidade Universitária, em construção pelo governo federal na região da Pampulha. Ainda assim, as obras do então chamado Estádio Minas Gerais só seriam intensificadas a partir de 1963. O motivo era o interesse do governador do estado, Magalhães Pinto, da UDN, até então desinteressado no empreendimento, em explorar politicamente, na corrida presidencial de 1964, o título de campeão brasileiro de seleções conquistado por MG.

Nunca é demais relembrar que Magalhães Pinto foi um dos artífices do golpe em Minas, tendo, inclusive, se filiado à Arena em 1966; mesmo ano em que o Mineirão, que havia sido, recentemente, palco da final da Taça Brasil, em q o Cruzeiro bateu o Santos de Pelé e cia por 6 a 2, foi rebatizado oficialmente com o nome de Estádio Estadual Governador Magalhães Pinto.

Assim, o Gigante da Pampulha, inaugurado no dia 5 de setembro de 1965, abria caminho para que outros estádios do país passassem a ser batizados com o nome de personalidades políticas ligadas à ditadura militar, eternizando-os na memória oficial. Mas seu apelido – Mineirão -, muito mais conhecido que seu nome oficial, também puxaria a fila para que os outros gigantescos estádios brasileiros construídos na ditadura passassem a ser conhecidos por apelidos aumentativos.

Morenão

Caminhando 1.307 quilômetros do Mineirão até Campo Grande chegamos ao segundo estádio com a assinatura do engenheiro Gil César. O Morenão começou suas obras em 1967. Exatos dois anos após a inauguração do estádio Governador Magalhães Pinto. As obras começaram por ordem do engenheiro Pedro Pedrossian, à época governador do estado do Mato Grosso – ainda unificado – pela Arena, partido situacionista e vinculado aos militares. A iniciativa, segundo Pedrossian, seria fruto de parceria entre o Estado e a Liga Esportiva Municipal Campo-grandense (LEMC), embora os recursos destinados à entidade, presidida por Levy Dias, deputado estadual e, mais tarde, nomeado prefeito de Campo Grande, ambos pela Arena, tenham desaparecido. O Morenão seria inaugurado no dia 7 de março de 1971, mesmo dia em que Itabaiana a ditadura inaugurava outro estádio público, com o sugestivo nome de Presidente Emílio Garrastazu Médici. Realidade não muito distinta daquela de Campo Grande, que viu o Morenão ser batizado oficialmente com o nome de Estádio Universitário Pedro Pedrossian.

Seu desenho muito se assemelharia ao do Mineirão, seguindo tendência da arquitetura brutalista, marcante desde o fim da II Guerra e bem demarcada em Brasília. Destaque, nesse sentido, para a fachada do Morenão, ornada com gigantescos pórticos e o seu concreto armado aparente.

Se, por um lado, o Morenão contribuiu com a espetacularização do futebol local, impulsionando Comercial e Operário em direção à profissionalização, é inegável que sua capacidade se mostrava incompatível com a realidade local. Sua previsão de público, segundo os periódicos da época, oscilavam entre 45 mil e 55 mil torcedores; isso em uma cidade que, à época, tinha cerca de 140 mil habitantes.

Albertão

Seis anos após o início da construção do Morenão foi inaugurado, em Teresina, o estádio Albertão. A essa altura você já deve supor, se é que ainda não sabe, que o nome oficial do Albertão homenageia algum político da ditadura. No caso do Albertão, é isso mesmo e mais um pouco. Porque o apelido do estádio é o superlativo do Governador Alberto Tavares da Silva, outro engenheiro, eleito prefeito de Parnaíba, em 1947, e deputado estadual, em 1951, pela conservadora União Democrática Nacional, a UDN. Tão logo o AI-2 foi promulgado, filiou-se à Arena e, em 1970, foi indicado a assumir o poder executivo do estado do Piauí.

Seduzido pelos ares desenvolvimentistas, bem representados pelas grandes obras em concreto armado de forma rústica, Alberto Silva viu a construção de um estádio monumental como uma de suas principais propagandas políticas. Edificado em pouco menos de 1 ano e meio para cerca de 50 mil espectadores, com parte de suas arquibancadas cobertas por gigantescos pórticos semelhantes aos do Mineirão e do Morenão, todas as suas etapas de construção foram registradas pelo governo do estado por meio de textos e imagens. E, no dia a sua inauguração, o Governador deu o pontapé inicial em uma cobrança de pênalti… sem goleiro!

Seu último grande espetáculo aconteceu em 2015, quando o time da casa, o River, empatou com o Botafogo de Ribeirão Preto no segundo jogo da final da Série D nacional. Nesse jogo, as suas dependências receberam mais de 40 mil torcedores.

Almeidão e Amigão

Partindo de Teresina, Gil César chegava à Paraíba, onde a ditadura construiu estádios nas duas maiores cidades do estado. E, o mais curioso é que esses estádios foram inaugurados com apenas um dia de diferença: primeiro o Amigão, no dia 8 de março de 1975, em Campina Grande; e, no dia 9, o Almeidão, na capital João Pessoa.

Inicialmente o Almeidão se chamaria Ministro Ernani Sátiro. Mas como o estádio de Campina Grande foi inaugurado antes, coube a ele a homenagem ao político, aliás, outro membro da UDN e, posteriormente, da Arena, deputado de 1945 até 1969, sendo líder do general Costa e Silva na Câmara dos Deputados entre 1967 e 1968. Em 1969, Ernani Sátiro renunciou ao mandato para assumir a vaga de ministro do Superior Tribunal Militar – daí a intenção inicial de batizar o Almeidão com o nome de Ministro Ernani Sátiro – e, em 1970, foi escolhido pelo presidente Emílio Médici para ser o governador da Paraíba, trocando mais uma vez de cargo.

Como chefe do executivo paraibano, Ernani contratou Gil César, a princípio, para a construção do estádio em João Pessoa. Mas, segundo conta o ex-engenheiro chefe de seu governo, o governador lhe disse que teria que fazer um estádio na capital, sem, no entanto, deixar de lado os torcedores de Campina Grande. Ambos com a mesma capacidade, gramado, estrutura e, claro, o mesmo desenho brutalista em voga, mais uma vez ornado com grandes pórticos, sendo os do Almeidão voltados para cima, e os do Amigão voltados para baixo. Era como se Ernani Sátiro e a própria ditadura reconhecessem o poderio futebolístico das duas cidades e buscassem, assim, apoio e popularidade dos torcedores do Botafogo e do Auto Esporte, e também do Treze e do Campinense. Com o Amigão sendo inaugurado um dia antes, o estádio de João Pessoa acabou por homenagear José Américo de Almeida Filho, ex meio campista botafoguense dos anos 1930, que atuou no primeiro Botauto paraibano, disputado em 1938.

Parque do Sabiá

Pra terminar seu giro pelo Brasil construindo estádios gigantes, Gil César voltou às terras mineiras, recebendo a encomenda de começar as obras do estádio municipal de Uberlândia, o Parque do Sabiá, inaugurado em 27 de maio de 1982.

Sua origem guarda relação com o projeto da Arena em Uberlândia, representada pelos prefeitos Renato de Freitas e Virgílio Galassi, de construir um espaço público de lazer, com reserva florestal, zoológico e um gigantesco estádio de futebol. O principal clube da cidade, o Uberlândia Esporte Clube, vinha de performances bastante satisfatórias e seu estádio, o Juca Ribeiro, construído em 1933, era considerado insuficiente pela opinião pública. Além disso, há pouco menos de uma década, o Uberaba, a principal rival uberlandense, havia inaugurado o Uberabão, um estádio de grandes proporções. Este sentimento ia ao encontro do discurso modernizador com que Uberlândia se via envolta. Principal entreposto entre sudeste e centro-oeste brasileiro, a cidade já possuía cerca de 300 mil habitantes no início dos anos 1980. Por todos esses fatores, o Parque do Sabiá passou a ser visto como um empreendimento estratégico, sobretudo por parte dos arenistas e da ditadura. Não por coincidência, sua inauguração contou com a presença do ex- presidente e general João Figueiredo.

Como se não bastasse, a nova casa do futebol triangulino contou com um entusiasta bastante influente e com forte trânsito entre as elites brasileiras. João Havelange, já empossado presidente da Fifa, esteve presente no lançamento da pedra fundamental e no jogo inaugural, disputado entre a seleção brasileira e a da Irlanda do Norte. Aliás, última apresentação canarinha antes da Copa de 1982. Dois anos após a abertura de seus portões ao público, o Parque do Sabiá, que havia sido projetado para cerca de 70 mil pessoas, com fachada mais uma vez ornada por gigantescos pórticos em estilo brutalista, viu o clube da casa conquistar a 2ª divisão nacional. Em 1995, o estádio foi rebatizado como Estádio Municipal João Havelange. Mas, depois do vazamento dos escândalos de corrupção na Fifa, a Câmara Municipal decidiu, em 2015, por retomar seu nome original, Parque do Sabiá.

Considerações finais

Em “‘Brasil-grande, estádios gigantescos’”, João Malaia e Rafael Fortes mapearam 14 estádios públicos estaduais com capacidade superior a 40 mil espectadores inaugurados entre 1964 e 1985. Gil César trabalhou em cinco deles – Mineirão, 1964; Morenão, 1971; Albertão, 1973; Amigão e Almeidão, 1975 – como engenheiro. O Parque do Sabiá foi o seu sexto estádio, já nos anos 1980.

Todos eles espalharam alegria, diversão, espetáculo, lazer Brasil a fora. Todos eles usados como monumentos de engrandecimento da ditadura. Todos eles patrocinados por governadores e prefeitos da Arena. O partido da ditadura. O partido de Gil César.

Referências bibliográficas

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ASSUMPÇÃO, Luís Otávio Teles. O temp(l)o das gerais: a nova ordem do futebol brasileiro. Montes Claros. 2004. Ed. UNIMONTES

CALDAS, Phelipe; BATISTA, Silas; WANDERLEY, Hévilla. 40 anos de Amigão e Almeidão: veja curiosidades que cercaram as obras. Globo Esporte. Brasil, 7 mar. 2015. Disponível em: http://ge.globo.com/pb/noticia/2015/03/40-anos-de-amigao-e-almeidao-veja-curiosidades-que-cercaram-obras.html. Acesso em: 29 mar. 2022.

JUNIOR, Jones Mário de Ávila Minervini. Gigante de chumbo: a construção do Estádio Morenão e sua relação com a ditadura militar. Dissertação (mestrado Projetos Experimentais) Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil, 2014. 94 p.

MALAIA, João; FORTES, Rafael. ‘Brasil-grande, estádios gigantescos’: toponímia dos estádios públicos da ditadura civil-militar brasileira e os discursos de reconciliação, 1964-1985. Tempo. n.1 v. 27. p. 166-183. jan.abr. 2021

NETO, Georgino Jorge de Souza. Do Prado ao Mineirão: a histórias dos estádios na capital inventada. Tese (doutorado em Lazer) Universidade Federal de Minas Gerais. 2017. 243 p.

SOBREIRA, Cinthya. Estádios de futebol na Paraíba: interações entre expressividade arquitetônica e concreto armado aparente. Anais VI Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo. Brasília, 2020. UnB

Verbete biográfico, Ernâni Sátiro. CPDOC. Fundação Getulio Vargas. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/ernani-satiro. Acesso em: 29 mar. 2022

Verbete biográfico, Alberto Tavares e Silva. CPDOC. Fundação Getúlio Vargas. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/alberto-tavares-e-silva. Acesso em: 29 de mar. 2022

Verbete biográfico. Gil César Moreira de Abreu. CPDOC. Fundação Getúlio Vargas. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/gil-cesar-moreira-de-abreu . Acesso em: 29 de mar. 2022


[1] Este texto foi originalmente publicado nas redes sociais do Memória FC (instagram.com/memoriafutebolclube – twitter.com/memoriafcestudo) em 7 postagens intituladas “Estádios da ditadura”.

[2] Ver a esse respeito o texto “”A Copa de 1950 como uma “janela de oportunidades” para o futebol “montanhês”, de Marcus Lage, publicado no livro As Copas do Mundo no Brasil, organizado por Euclides Couto.

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Lucas Ferreira Estillac Leal

Graduando em História pela PUC Minas.  Atleticano apaixonado pelo clube mas acima de tudo um amante do Futebol.

Marcus Lage

Bacharel, Licenciado e Doutor em História. Mestre em Ciências Sociais. Pós Doutor em Estudos Literários. Professor do Instituto de Educação Continuada da Puc Minas. Torcedor-militante do América! Se aventurando pelo mundo da crônica!

Como citar

LEAL, Lucas Ferreira Estillac; LAGE, Marcus Vinícius Costa. Gil César Moreira de Abreu e os estádios da ditadura. Ludopédio, São Paulo, v. 154, n. 34, 2022.
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