142.5

Gilmar de Lima Nascimento (13.08.1975 – 15.03.2021)

Em 1999, Corinthians e Atlético Mineiro disputaram as finais do Campeonato Brasileiro.  Depois de uma vitória de cada lado, a primeira do Galo no Mineirão (3 a 2), a segunda do Timão no Morumbi (2 a 0), a partida decisiva foi jogada novamente no estádio do São Paulo. Com o empate sem gols, o alvinegro paulista chegou ao terceiro título nacional. O grande destaque do segundo jogo foi o centroavante Luizão, autor dos dois gols, mas que foi expulso já nos acréscimos. Para a partida seguinte, o treinador Oswaldo de Oliveira, aproveitando que a igualdade no placar seria suficiente para a conquista do título, substituiu o atacante suspenso não por um jogador da mesma posição, mas por um médio-volante especialista na contenção dos adversários. Com o número 9 às costas, para a surpresa de muitos, entrou em campo Gilmar, o Fubá, apelido que denunciava a pobreza da infância.

No ano anterior o Corinthians também decidira o título contra uma equipe mineira, o Cruzeiro, e igualmente foram três as partidas necessárias para definir o campeão. As duas primeiras terminaram empatadas (2 a 2, 1 a 1) e na terceira o Timão, ainda treinado por Vanderlei Luxemburgo, que acumulava o cargo com o de técnico da seleção brasileira, venceu por dois a zero. Na segunda peleja, Luxa escalara Gilmar com uma missão específica, que era perseguir o atacante Müller, de longa e vitoriosa carreira, jogador que venceu quase todos os títulos que se pode almejar. Veloz e com incrível capacidade de mudança de direção, foi em um de seus repentinos giros que seu marcador se viu com um pé preso ao gramado e o tronco tentando acompanhar o adversário. O resultado foi uma grave lesão no joelho, uma das tantas que muito atrapalharam sua carreira.

Campeão Mundial de Clubes pelo Corinthians em 2000, Gilmar rumou para o Fluminense, indicado pelo mesmo Oswaldo de Oliveira que o dirigira no Timão e que também o levaria para o Al Ahli, do Catar, quando lá trabalhou, em 2005. Foi Gilmar, aliás, que Oswaldo certa vez tomou como referência para falar das próprias habilidades futebolísticas logo depois de um rachão com os jogadores: no interior das quatro linhas o técnico seria esforçado como o volante, mas sem a mesma força, tampouco o domínio técnico do jogo.

Gilmar Fubá
Gilmar Fubá jogando pelo Corinthians. Rodrigo Coca/Agência Corinthians.

Sim, Gilmar era forte e marcava de maneira implacável, o que não deve ser confundido com deslealdade. Atualizava, assim, uma tradição de médios-volantes brasileiros, alguns mais técnicos que ele, como Batista (bi-campeão brasileiro pelo Inter em 1975 e 1976), outros que chegavam a ser violentos, como Chicão. Ambos estiveram em Copas do Mundo, o primeiro no time que encantou em 1982, o segundo na competitiva seleção de 1978. Atuando pelo São Paulo, Chicão levantou o título nacional de 1977, em partida final contra o Atlético Mineiro. Deixou marcas naquele jogo: a primeira foi uma pisada em Ângelo, do Galo, quando este estava caído depois de receber uma dura entrada de Neca, lance que custou a ruptura de quatro ligamentos do joelho do atleticano; a segunda foi perder um dos pênaltis depois dos 120 minutos de empate no Mineirão.

Na mesma época em que Chicão liderava o São Paulo e que Batista despontava no Inter, o Brasil tinha ainda Carlos Alberto Pintinho, do Fluminense, e logo depois Andrade, do Flamengo, jogadores que protegiam a zaga tão bem quanto realizavam a saída de bola, chegando ainda com frequência ao ataque. O primeiro foi, por exemplo, o autor do gol do Tricolor contra o Corinthians, na semifinal do Brasileiro de 1976.

No Parque São Jorge Gilmar perdeu espaço no time titular em 1999 com a chegada de Freddy Rincón, colombiano que de meia-atacante passou a volante, dividindo a função com Vampeta. Técnicos, habilidosos e versáteis, formaram com Marcelinho Carioca e Ricardinho o meio-campo campeão brasileiro naquele ano e mundial no início do seguinte. Já se colocava a exigência de jogadores de meio que marcassem e atacassem com igual competência, deixando no passado tanto os mais brutos, como Pintado, campeão da Libertadores e Intercontinental pelo São Paulo, quanto os mais técnicos, como Dunga, capitão da seleção campeã em 1994 nos Estados Unidos, firme na marcação e bom de passe, lançamento e saída de bola. Felipe Melo, do Palmeiras, talvez seja um dos últimos representantes dessa classe de volantes, jogador que é, no entanto, limitado no ataque, o que se agudiza pela condição física que já não é a mesma dos tempos de Juventus Turim, Galatasaray e Internazzionale Milão. Casemiro, do Real Madrid, mas em plano mais elevado, seria outro.

Gilmar não foi bom como Vampeta ou Rincón, menos ainda pode ser comparado a Andrea Pirlo, de tanto brilho na Juventus, no Milan e na Azzurra, ou aos alemães Sami Khedira e Philipp Lahm, algozes da seleção brasileira no 7 a 1, vencedores da Copa de 2014, de Champions League, de torneios de todo tipo. Ou ainda a Xavi e Andrés Iniesta, campeões de tudo pelo Barcelona e pela Fúria. O corintiano foi um bom jogador, nada mais, e isso não é pouco.

Formado no Terrão, Gilmar fez parte do elenco que venceu a Copa São Paulo de Futebol Sub-20, em 1995, em um time no qual se destacava o lateral-esquerdo Sylvinho, que cumpriria vitoriosa carreira na Europa. Foi campeão paulista, brasileiro, mundial, sempre como coadjuvante.  De infância muito pobre, como tantos, venceu no futebol, como pouquíssimos. O talento, o esforço tremendo e o acaso fazem com que um ou outro chegue a ser profissional, depois de tantos anos tentando ser alguém nas categorias de base, elas que acolhem tão poucos meninos frente ao enorme contingente que sonha em ser futebolista profissional.

No país de tantas vidas desperdiçadas, Gilmar morreu de câncer, esse conjunto de doenças graves, cuja superação ainda é um desafio, mesmo com todos os avanços já experimentados. Vai-se o sorriso e a esperteza da Quebrada, a ingenuidade financeira que não ficou impune, o colega querido pelos companheiros, o ídolo da Fiel. Que fiquem as boas lembranças. Finalmente, é o que pode restar.

Sob o signo da morte, abril de 2021.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Gilmar de Lima Nascimento (13.08.1975 – 15.03.2021). Ludopédio, São Paulo, v. 142, n. 5, 2021.
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