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Ginga: Algumas considerações sobre o conceito

Nathan Pereira Barbosa 8 de dezembro de 2020

O futebol brasileiro é rico em representações que mobilizam o imaginário social nacional. O próprio conceito problemático de “ginga” se ancora no mito da democracia racial para afirmar que a mistura da raça negra e branca acabou dando origem a um estilo único de jogar futebol que só pode ser encontrado no Brasil.

Assim, o louvor à miscigenação sem maiores ressalvas se apresenta como discurso proeminente nos meios sociais em que há uma defesa romântica e sistemática da “ginga brasileira” como elemento de identidade coletiva e, consequentemente, diferenciação social. A concepção romantizada da forma como o brasileiro joga futebol foi, em boa medida, sedimentada pelas conquistas das Copas do Mundo, todavia, antes mesmo de qualquer título internacional relevante da Seleção Brasileira, ou seja, nas décadas de 1930, 1940, já havia uma exaltação de um “estilo único”.

Durante a Copa da França de 1938, o famoso artigo “Football Mulato”, publicado por Gilberto Freyre em 17 de julho para o jornal Diários Associados de Pernambuco, celebrava o chamado “estilo mulato afro-brasileiro” e futebol em forma de “dança dionisíaca” Por outro lado, o termo “ginga” com toda sua carga simbólica aplicada ao futebol e à nação brasileira assim como o conhecemos hoje, é relativamente novo, embora possua suas raízes no discurso freyriano.

Cabe lembrar o caráter racista da formulação que, ao ressaltar a contribuição do branco e do negro para a cultura futebolística da nação, concebe os brasileiros negros mais inclinados à improvisação (irracionalidade) e os brancos europeus ou brasileiros de pele branca como naturalmente mais aptos para o método e o raciocínio (racionalidade).

O conceito posterior de “Ginga”, nesse sentido, carregará essa herança em sua concepção. Essa foi, portanto, uma das principais contradições de Freyre e dos que foram moldados por seu pensamento, como Mário Filho, por exemplo: ao mesmo tempo em que empreenderam esforço para positivar o processo de miscigenação no Brasil, acabaram caindo, por outro lado, numa armadilha argumentativa que denuncia o quanto ainda estavam impregnados de valores racistas, dado o lugar da irracionalidade, do não pensamento sistemático e da quase estado de animalidade ocupado pelo negro dentro dessa mitologia.

Foto: Felipe Barros/ExLibris/Secom-PMI.

A despeito dessa complicação conceitual, o termo “Ginga”, herdeiro dessa tradição, acabou extrapolando as fronteiras do campo de jogo e se transformando numa espécie de “espírito nacional” que representaria traços identitários da coletividade do brasileiro enquanto povo.

Nos últimos anos, outro exemplo de que o termo extrapolou as fronteiras do futebol e ganhou contornos de “espírito nacional”, se deu na escolha do nome da mascote da delegação brasileira “Time Brasil” para as Olimpíadas Rio 2016. O fato de ter sido Batizada de “Ginga” é bastante representativo e não se configura como ação isolada ou ingênua, mas como parte de uma postura e discurso de identidade com muitas camadas históricas.

O ocorrido contribui no sentido de entender como a ideia de “ginga” passou a ser expandida como um fenômeno inerente a todos os brasileiros e à todas as categorias esportivas possíveis (mesmo aquelas em que o Brasil não possui tradição), tendo em vista que a mascote passaria a representar toda a delegação olímpica brasileira, e não apenas as seleções olímpicas de futebol.

O constante apelo ao samba como influência direta nos movimentos de dribles tipicamente brasileiros também constante nos discursos que evocam a mitologia. A canção “A Taça do Mundo é Nossa”, composta após o título da Copa de 1958, traz em sua letra evidências do quanto o samba, já naquela época era visto como manifestação negra/mulata que se expressava em seus movimentos também no futebol.

A frase “sambando com a bola no pé” não se constitui como mera figura de linguagem, trata-se de uma expressão que traz em si uma ideia de Brasil e a partir de qual lugar geográfico o mesmo é enxergado como Brasil vencedor, o Brasil da alegria, aquele que “samba com a bola”, o Brasil do eixo Rio – São Paulo. Essa canção popular composta há mais de 60 anos, evidencia um pouco dessa tentativa de construção de uma identidade brasileira intimamente associada ao futebol e ao samba, esse último um elemento local, mas com histórico de esforço coletivo por parte de governos, artistas e intelectuais que tencionavam projetar o samba como símbolo nacional e internacional do Brasil.

Isto posto, o conceito moderno de “ginga”, além de herdar toda essa tradição que associa futebol, samba, capoeira, narrativas indígenas, africanas e europeias, está impregnado de estereótipos atribuídos, em geral, ao carioca (“malandro carioca”), evidenciando assim a força dos espaços geográficos de poder em que foram produzidos boa parte desses discursos simbólicos de brasilidade.

Para se ter ideia de como essa narrativa ainda é forte, em março de 2018, a dois meses da Copa da Rússia, a Nike, fornecedora de material esportivo da seleção brasileira, juntamente com CBF (Confederação Brasileira de Futebol) apresentaram ao público o novo uniforme da seleção a ser utilizado na competição, batizado de “Ouro Samba”, assim repercutido pelo portal Globo Esporte: “No uniforme principal da Seleção, a Nike informou que o tom da cor, o mais vibrante das últimas duas décadas, foi batizado de Ouro Samba, numa inspiração que vem dos meados de 1970, época do tricampeonato mundial.”70

Camisa da seleção Ouro Samba. Foto: Divulgação.

À vista do que já foi discutido até aqui, é sintomático o fato do uniforme ter um visual retrô inspirado na Seleção de 1970, considerada pela crônica e pelo imaginário futebolístico como a melhor de todos os tempos, apontado como o time portador do mais alto nível de “ginga”. Não menos sintomático é o termo “Ouro Samba”, referência à cor do uniforme e à beleza do jogo praticado pela seleção que remeteria aos movimentos da dança de herança africana instituída como sinônimo de Brasil.

Outro exemplo recente do uso da ideia de “ginga” como representação nacional se deu às vésperas das Olimpíadas Rio 2016 quando foi anunciado o nome da mascote da delegação brasileira “Time Brasil”. O fato da mascote ter sido Batizada de “Ginga” é bastante representativo e não pode ser entendida como ação isolada ou sem significado, mas como parte de uma postura e discurso de identidade com muitas camadas históricas.

O ocorrido contribui no sentido de entender como a ideia de “ginga” passou a ser expandida como um fenômeno entendido como inerente a todos os brasileiros e a todas as categorias esportivas possíveis (mesmo aquelas em que o Brasil não possui tradição), tendo em vista que a mascote passaria a representar toda a delegação olímpica brasileira, e não apenas as seleções olímpicas de futebol.

Caberia ainda a discussão a respeito da intencionalidade da escolha do termo, tendo em vista a imagem de Nação que o COB (Comitê Olímpico do Brasil) quis passar para todas as nações participantes, tendo em vista a realização do evento em terras tupiniquins.

Por fim, é importante reafirmar que, embora o mito da democracia racial tenha sido questionado e sistematicamente desmontado pelos movimentos sociais e acadêmicos nas últimas décadas, ele continua a grassar pela sociedade brasileira através do futebol e, principalmente, por intermédio dos narradores que possuem o poder de elaborar discursos e representações em torno do esporte nacional. Perceber as nuances dessas narrativas é de vital importância para os que desejam enxergar o futebol para além das quatro linhas.

Fontes: DIÁRIOS ASSOCIADOS DE PERNAMBUCO, 1938, s/p


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Nathan Pereira

Cearense, professor, doutor em História pela UERJ e membro do Coletivo ReNEme ( Rede Nordestina de  Estudos em Mídia e Esporte).

Como citar

BARBOSA, Nathan Pereira. Ginga: Algumas considerações sobre o conceito. Ludopédio, São Paulo, v. 138, n. 19, 2020.
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