Ninguém gosta que seu time perca, muito menos de goleada. Muitos gols de diferença eliminam a possibilidade de argumentar que se não tivesse isso ou aquilo acontecido, o resultado poderia ter sido outro, levando à vitória do derrotado. As goleadas ficam para a história e na memória dos torcedores, sendo narradas com júbilo ou sentidas como chaga que não se fecha. Lembro-me de criança assistir a um Flamengo X Botafogo (1981) em que o primeiro mandou seis gols para a meta alvinegra, impulsionado pela torcida que rogava a vingança pela derrota, com placar igual, nove anos antes. Recordo-me ainda de que uma vez no estádio da Ressacada, em Florianópolis, em um clássico local, Avaí X Figueirense, quando torcedores locais insultavam os suplentes do adversário enquanto eles trocavam passes próximo do alambrado no intervalo do jogo. As agressões verbais se avolumaram quando um dos jogadores apontou o número quatro com uma das mãos, aludindo ao placar de uma partida recente entre os dois quadros.

Tenho idade para ter assistido a muitas goleadas. A primeira foi do Internacional sobre o Avaí, 4 X 0, no Campeonato Brasileiro de 1976, com meu pai e meu irmão em sábado de futebol. A partida aconteceu no Estádio Orlando Scarpelli, do Figueirense, já que o acanhado Adolfo Konder (onde hoje se localiza o Shopping Center Beira-mar), então a casa do time da Ilha, não tinha condições de receber uma disputa de campeonato brasileiro. A diferença entre as equipes era muito grande, o Colorado tinha Manga, Batista, o catarinense Valdomiro, o craque Falcão. O centroavante Dario aproveitou a partida para somar três gols para o seu longo currículo, ele que seria o artilheiro do torneio, vencido pelo próprio Inter em final contra o Corinthians.

No ano seguinte, em julho, a seleção brasileira emplacou oito gols contra a boliviana, sem sofrer nenhum, pelas Eliminatórias da Copa. Eu estava na Argentina e foi a primeira vez em que assisti a um jogo do selecionado transmitido em língua estrangeira. Zico jogou demais, fez quatro gols, Marcelo e Toninho Cerezzo, do Galo, Gil, do Fluminense e Roberto Dinamite, do Vasco, também deixaram os seus. Foi uma festa em Cáli, Colômbia, onde a partida foi disputada, uma vez que as condições políticas na Bolívia não permitiam que jogo acontecesse lá. Dezesseis anos depois, quando acompanhei, desta vez do Brasil, a derrota frente aos bolivianos por 2 X 1, em La Paz, com direito a uma falha grotesca de Taffarel, percebi que o futebol já não era o mesmo. Foi a primeira derrota brasileira em jogos eliminatórios para as Copas do Mundo. Não seria a última.

Logo do Mundial 1978. Imagem: Wikipédia

Outra goleada a que assisti quando criança, mas desta vez um tanto constrangido, foi aquela imposta sobre o Peru pela Argentina na Copa de 1978. Na última partida da segunda fase da competição, os argentinos precisavam da vitória por diferença de no mínimo quatro gols para superarem o Brasil e chegarem à final. A partida foi disputada no Gigante de Arroyito, em Rosario, estádio lotadíssimo por uma torcida para lá de fanática. Aos 5 minutos do segundo tempo Luque fez o quarto gols dos anfitriões, e o resultado final chegou a 6, levando a celeste y blanca para a final contra os holandeses e relegando a seleção brasileira à disputa do terceiro lugar.

A Argentina vivia sob ditadura que, usava a Copa para tentar mostrar-se ao mundo como país ordeiro e feliz. Imprensa nacional e estrangeira censuradas, corrupção tremenda, desaparecimentos e assassinatos seguidos, o principal centro de tortura na capital quase vizinho do estádio do River Plate, o Monumental de Nuñez. Jorge Rafael Videla, o chefe da junta militar que tiranizava o país, estava nas tribunas, tendo a seu lado o presidente da FIFA, o brasileiro João Havelange. As imagens de ambos relaxados e satisfeitos eu nunca esqueci. Antes da partida, o general teria descido ao vestiário da seleção do Peru para desejar boa sorte aos adversários e, por assim dizer, lembrar das boas relações entre os países. Visita de cortesia, fair-play, digamos.

Seleção da Argentina em 1978. Foto: Wikipédia

Cláudio Coutinho, o indignado treinador brasileiro, afirmou ter sido o campeão moral daquela Copa; no Brasil dizia-se que o goleiro peruano, por ser argentino de nascimento, facilitara as coisas; que a seleção derrotada ao chegar a seu país fora recebida com uma chuva de moedas atiradas pelos seus próprios torcedores. Jogadores apontaram colegas e dirigentes como subornados, enfim, a conversa é longa e nada impede que tenha havido corrupção, era o futebol dos anos 1970 em um país fazendo de tudo para vencer a Copa em casa.

Mas também é verdade que a Argentina tinha uma excelente equipe e que aquela partida já não valia nada para os peruanos, sem chances de sequer se classificarem para a disputa pela medalha de bronze. Nos últimos anos diminuiu o ímpeto dos brasileiros de repetirem que a vitória argentina teria sido, no mínimo, suspeita. Suponho que isso seja fruto de uma outra goleada, também em partida que classificaria um time para uma final de Mundial, igualmente com um dos adversários sendo o time da casa. Sim, refiro-me ao encontro entre Brasil e Alemanha em 2014. Se era inverossímil que os argentinos derrotassem os peruanos por seis a zero, o que dizer de, jogando em casa e precisando da vitória, perder pela mesma diferença de gols?

Jogadores apos jogo do Brasil contra a Alemanha semifinal da copa do mundo, 08 de Julho 2014. Bruno Domingos / Mowa Press

Com tanto conhecimento em relação aos adversários, condição física aprimorada, disciplina tática e marcação intensa, as goleadas tendem a ser mais raras. Mas, a acachapante vitória do Bayern München sobre o Barcelona na semana passada mostra que ainda há algo de imprevisível e surpreendente no futebol. Isso é ótimo para os que gostam desse esporte. E quanto aos torcedores dos times derrotados por uma soma muito alta de gols, tampouco lhes passa algo tão grave. Nesse jogo não se joga a “honra” ou qualquer coisa do tipo. Dói um pouco, mas tem que deixar passar.

Ilha de Santa Catarina, agosto de 2020.


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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Goleadas, ditadura, “honra”. Ludopédio, São Paulo, v. 134, n. 50, 2020.
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