O primeiro grande goleiro que vi atuar foi Emerson Leão, do Palmeiras, da seleção brasileira e até de um selecionado da FIFA em partida comemorativa contra os argentinos, então campeões mundiais, no ano de 1979. Tobias e Jairo no Corinthians, Waldir Peres e Toinho no São Paulo, Marola no Santos, Cantarelli no Flamengo, Renato no Fluminense, Wendell no Botafogo, Mazzaropi no Vasco, todos bons goleiros que assistíamos pela TV. Raul, do Cruzeiro, quebrava a sobriedade com suas camisas amarelas, Ortiz, do Galo, tinha cabelos longos e uma fita a prendê-los. No Inter de Porto Alegre jogava Manga que, eu saberia mais tarde, atuara pelo Botafogo e pelo Nacional do Uruguai, e compusera o escrete que fracassara na Copa de 1966, na Inglaterra.

Ouvi de Leão, já como treinador, que os goleiros atuais são muito melhores do que ele, os treinamentos específicos que recebem lhes colocariam em um nível mais elevado que antes. Fiquei um pouco surpreso com o desprendimento do personagem, e me lembrei do quanto era difícil ser arqueiro em seus tempos, ainda que hoje tampouco seja fácil. Manga era reconhecido como grande goleiro, mas também porque tinha dedos da mão tortos, uma vez fraturados e não bem cicatrizados, já que seguira treinando e jogando. Eu assistia aos jogos pela TV ou no estádio, e sempre me perguntava como era possível atuar em uma região onde a grama era mais que escassa, trajando roupa pouco apropriada, tendo que desenvolver técnicas específicas para a queda sobre terra batida. Usava-se joelheiras, mas, mesmo assim, era impossível não sair machucado. Isso, claro, sem contar os choques contra os atacantes na área, as luvas precárias, os objetos lançados em sua direção (pilhas, rádios, chinelos, laranjas etc.).

Luvas de goleiro. Foto: Andy Hall/Unsplash.

Embora vida de goleiro não seja a mesma daqueles anos, lembrei-me dessas coisas todas na semana passada, quando do episódio que envolveu o goleiro Sidão, do Vasco, eleito, com todo o sarcasmo que houver nessa vida, o melhor jogador de uma partida em que sua atuação foi péssima. A escolha foi feita por espectadores da partida e talvez por gente que sequer assistia à contenda entre o Cruzmaltino e o Santos. O fenômeno mostra algo sobre nós, que se potencializa com a internet e a tal interação promovida pela TV Globo: covardia. Ela contrasta com a coragem de ser goleiro, esse tipo de gente que, de peito aberto, segura a última bola; que falha tanto quanto qualquer outro jogador, mas que paga pelos erros (seus e dos outros, com frequência) em doses muito acima das que lhe correspondem.

Fazer jogadores de futebol motivo de chacota não é coisa nova. Um personagem clássico dos programas de humor de Chico Anísio era Coalhada, sujeito de fala confusa e pouca habilidade, mas que, no entanto, estava sempre às voltas com algum contrato a ser assinado com um grande clube. Infantilizado, era governado pela mãe, que a ele se referia pelo nome de batismo: Otávio Arlindo.

Jogadores com pouco domínio de bola eram chamados de Coalhada. O bom-gosto ou o mau-gosto da piada pode ser discutido, mas o apelido seguia genérico, sem se dirigir a um atleta específico. Não havia, portanto, estigma. De forma semelhante, o Íbis Sport Clube, de Pernambuco, faz troça de si ao se considerar o pior time do mundo, fruto de mais de cinquenta jogos sem vitória na década de 1980. O cineasta Cláudio Assis fez uma ponta em um filme dirigido por ele mesmo, Amarelo Manga (2002), vestindo a camiseta do Íbis – não sem antes colocar na fala da personagem Lígia, interpretada por Leona Cavalli, um lamento pelo mal momento vivido pelo Santa Cruz.

Vi atletas partirem para as vias de fato com torcedores. Alguns se defendendo de agressões, outros, perversos, aproveitando a presença de pessoal de segurança, atacando gente que os vaiara durante um treino ou jogo. Certa vez, os goleiros do Avaí Futebol Clube trabalhavam no Centro de Formação de Atletas, vizinho ao Estádio da Ressacada, enquanto eram sistematicamente achincalhados por três torcedores. Um dos atletas, já não suportando as ofensas, saltou por sobre o alambrado que separava uns e outros, e perseguiu por alguns metros os desocupados que, claro, fugiram. Nada disso é bom, nada disso é admirável. Menos ainda é o que foi feito com Sidão. Os incentivadores do linchamento, os que nele votaram e a TV Globo, que seguiu com a palhaçada sem renunciar aos interesses comerciais, devem sentir vergonha. Em tempos de cinismo como norma, é pouco provável que isso aconteça, apesar das manifestações oficiais em contrário.

Aos 39 anos, Dida foi um dos destaques da Portuguesa na campanha do Brasileiro de 2012. Foto: Portuguesa/Divulgação.

Longa vida aos goleiros, os últimos a defender a meta, os mais sacrificados, os que não podem jogar de improviso em outra posição, de forma que os postos de trabalho que lhes são oferecidos são tão poucos. Viva os grandes, como Dida, goleiro que me fez ir ao estádio exclusivamente para vê-lo em ação, já em final de carreira, em partida do Figueirense contra a Lusa. Louvo ainda mais os medianos, os ruins, que seguem corajosos a entregar o corpo pela defesa de seu time, expondo a si e aos seus a todo tipo de ressentimento e covardia. Respeito-os.

Ilha de Santa Catarina, maio de 2019.

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Goleiros (a propósito de Sidão). Ludopédio, São Paulo, v. 119, n. 18, 2019.
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