A extraordinária magia do futebol

O futebol possui o apelo de ser o jogo dos deuses, momento em que terra e céu se aproximam. As marcações no campo o comprovam! As figuras geométricas podem ser um suporte para os rituais mágicos, são simbólicas, e no campo de futebol podemos destacar o círculo que significa o céu (universo, totalidade, perfeição) e o quadrado a terra (passividade da matéria, os quatro elementos). No tabuleiro esportivo o futebol promove o encontro entre o celeste e o terreno, fazendo-se local propício para que os atletas semideuses duelem.

Nesse espaço simbólico as representações do social e da cultura também podem ser objetivadas na esfera que percorre o espaço horizontal e vertical. Valores e conceitos diversos, como mérito, eficiência, produtividade, hierarquia, desigualdade, rendimento, mídia, medicina, política, economia, religiosidade etc., todos podem ser observados antes, durante e depois do duelo entre os semideuses.  

A habilidade dos jogadores de futebol indica uma qualidade superior em lidar com a esfera, um dom ou talento expresso através dos pés e de sua ampla corporalidade. São homens escolhidos que receberam um toque de qualidade divina, reconhecida pelo ex-jogador Romário: “Quando eu nasci, papai do céu apontou pra mim e disse: esse é o cara!” Tal assertiva escamoteia, no entanto, todo o processo de formação e profissionalização esportiva com investimento de pelo menos 10.000 horas de muito treinamento, um longo percurso que a pesquisa de Arlei Damo (2005) ajudou a elucidar. 

Entre os jogadores de futebol, o de uma posição vive constante ambiguidade. Diferente da dos outros atletas, tem sua função reconhecida como profissão. O goleiro é o personagem que deve evitar o gol que irrompe a catarse do jogo. A meta almejada durante a partida possui um guarda-metas, o arco seu arqueiro, o gol tem o seu goleiro ou ainda a rede tem o seu guarda-redes. Uma posição certamente distinta das outras.

Roberto DaMatta (2006) já destacou o caráter subversivo da condição do goleiro no futebol, este pode atuar com as mãos, encontrando uma precisão ausente no trabalho com os pés, aproximando-se da versão rúgbi e do football estadunidense. Miguel José Wisnik (2008) também descreve o goleiro como um indivíduo entre o sagrado e o maldito, pois pode fazer o que os outros não podem e não pode fazer o que os outros podem, além de ser responsável pela manutenção da virgindade do gol. 

Com suas roupas distintas dos outros dez companheiros de time, o arqueiro vê o jogo de posição privilegiada, pisando e repisando a grama que cobre o território da grande área. O massacre sob as chuteiras é tão grande que, às vezes, em jogos e mesmo durante treinamentos, os guarda-metas são impedidos de fazer o aquecimento perto das traves. O jornalista José Martins de Araújo Júnior (1924–1965) cunhou décadas atrás a frase que se tornou célebre: “Desgraçado é o goleiro, até onde ele pisa não nasce grama”.

Os goleiros obviamente fazem parte da grande categoria jogador de futebol. No entanto, seu treinamento tem diferenças quando comparado ao de jogadores de linha. Antes eram os piores que iam para o gol, hoje a formação já é direcionada à função – vide escolinhas de goleiros, como a de Zetti, bicampeão da Libertadores e da Copa Intercontinental, pelo São Paulo (1992-1993), e da Copa do Mundo de 1994, pelo Brasil. Não é este, no entanto, um fenômeno novo no futebol, pois Bella Guttmann, supõe-se, foi o treinador que instituiu o treinamento específico para goleiros no Brasil, no São Paulo Futebol Clube, em 1957. “Até o goleiro – para quem ninguém dava bola no Brasil, exceto quando falhava – recebia um treinamento especial de duas horas diárias” (CLAUSSEN, 2014, p. 101).

A vida do goleiro não é fácil. Foto: Álvaro Mendoza/Unsplash.

Biografia de si – memória de um goleiro que fala de si e da condição de ser goleiro

Na biografia de um dos grandes goleiros brasileiros das últimas décadas, Marcos (Palmeiras e Seleção, onde foi titular na campanha do Pentacampeonato Mundial em 2002), Nunca fui Santo (2012), lê-se algo bastante sugestivo para pensar sobre a formação dos goleiros e seu futuro reconhecimento.

“Como eles [irmãos] eram ruins de bola e deixavam passar tudo, eu tinha de me virar pra defender… Mas eu não nasci pra ser goleiro, não! Queria ser centroavante, meia, volante. Tentei de tudo. Ser goleiro foi a última opção. O mais legal do futebol é fazer gol, né? Então, como eu era de uma família de muitos irmãos e era o caçula, os maiores sempre me pegavam e me colocavam no gol pra ficar chutando bola no terreno perto de casa. Aí comecei a pegar gosto por aquilo, sem querer.”

“Quando ele [Fernando Amorosini] viu que não dava pra eu jogar na frente, fui recuado pro meio. Depois pra zaga. Daí…Teve um dia que ele me botou de vez no gol. Eu não queria. Mas ele sabia que só ali eu faria alguma coisa boa. Eu era o mais alto do elenco. Pra me incentivar, gritava: “Vai, Marquinho, se vira aí. Você não quer ser goleiro do Palmeiras um dia?”. E eu caía na risada. Goleiro do Palmeiras? Nem em sonho!”

A biografia de Marcos parece ser semelhante à de muitos meninos que começam no ataque, são deslocados para o meio ou laterais, zaga e, por fim, tornam-se goleiros. Uma relação de recuo dentro da configuração das posições em uma equipe, situação destacada por Arlei Damo (2005). 

Diferentemente dos jogadores de linha, parece que ninguém nasce goleiro! Essa uma afirmação provocativa, pois o talento ou dom é sempre reconhecido nos jogadores de linha que são artistas com a bola. Inclusive, nas últimas décadas esse processo se intensifica com o padrão orientado na biotipia que criou uma disputa com as modalidades do vôlei e do basquete. O goleiro, que precisa ser alto e ter potencial de alcançar altura ainda maior, é arregimentado passando por um processo de se tornar-se algo, de um vir a ser. 

Os goleiros são os primeiros a chegar e os últimos a sair dos treinos, pois, nesse jogo de deuses, parecem ser os que estão mais próximos da “condição humana”, sem o auxílio de um dom, contam apenas com o resultado de muito suor e lágrimas que expressam seu esforço pessoal (talvez por isso alguns goleiros invistam na carreira de técnico). Os goleiros tendem a ser os que mais colaboram durante os treinamentos, por exemplo, apoiando os roupeiros do clube ou participando dos treinamentos de finalização dos colegas. Levam bolas, carregam equipamentos, auxiliam na arrumação etc. Os primeiros a chegarem e os últimos a saírem, sempre com uma redobrada dedicação à “divina família do futebol”. 

Quero com isso levantar uma hipótese para justificar o porquê de os goleiros treinarem mais quando comparados com jogadores de outras posições. Talvez porque eles não tenham nascido com o “dom” e, ao contrário dos semideuses escolhidos, muitas vezes encontraram seu espaço na rejeição dos pés, sendo necessário durante esse processo um vir a ser. Isto é, ser uma contradição dentro das regras do futebol, um avesso entre pés e mãos. Logo, sua ascensão e reconhecimento são resultados de muita dedicação, esforço, repetição de movimentos, aprimoramento dos reflexos etc. Um processo muito mais racional do que espontâneo ou predestinado. Vale ainda, então, pensar será que os piores vão para o gol? Ou os melhores com as mãos é que são a ele destinados? No futebol contemporâneo isso muda com o fato de o goleiro hoje ter que saber jogar com os pés?

Goleiro representado em jogo. Foto: Markus Spiske/Unsplash.

Quem pode ser santo?

A posição de goleiro tem um caráter de transformação, de um ‘vir a ser” tão mais racionalizada do que qualquer outra função no campo de futebol. Isso fez refletir sobre o motivo do goleiro ser chamado de santo. Um santo é aquele que dedicou todos seus esforços e sua vida a uma causa, e durante sua trajetória passou a ser reconhecido como extraordinário, logo, uma santidade. Um santo tem que ter sido milagroso. Talvez, por isso, o goleiro Marcos seja reconhecido como “São Marcos”, bem como, tantos outros goleiros que fazem “milagres” para manter a pureza da meta, evitando a violação da rede. 

No entanto, entre os “santos” existem também outros que permanecem no limbo. Os que nele permanecem, por mais desejo de associação e equiparação com os que são elevados ao status de santo, ainda assim são divindades com virtudes e defeitos que exaltam sua condição humana. 

Muitos goleiros tiveram a oportunidade de ser reconhecidos como mitos, lembremos, de Marcos Carneiro Mendonça (o primeiro goleiro da seleção brasileira e que ainda detém o título de o mais jovem selecionado para posição, 19 anos) até Alisson Becker (Internacional de Porto Alegre, Roma, Liverpool e seleção brasileira), só para seguir uma certa linearidade. Esses humanos desprovidos do toque dos deuses atingiram o patamar de santidade na configuração do jogo, por meio de suas realizações extraordinárias, ou seja, realizaram maravilhas (milagres) e assim são elevados ao panteão. 

Outros não possuem sua beatificação pois uma de suas características os retém no limbo, não garantindo a aceitação de sua santidade. Entre virtudes e defeitos, sua humanidade mantém uma marca cujo o sentido se lhes atribui, de forma que nem o toque dos deuses ou a dedicação de uma vida ascética no futebol pode remover. Identificamos nessa situação Barbosa(1), talvez o maior deles, e depois outros, como Manga, Jairo, Jefferson, Dida, Aranha, Jailson, Sidão etc. Estes convivem entre virtudes destacadas e lembranças de defeitos, pois sua “marca” humana não permite que a bola decida sua santidade. No tabuleiro do futebol, que junta terra e céu como palco para um duelo no plano horizontal, os marcadores e valores sociais também continuam a verticalizar suas divindades, decidindo quem chega ao panteão e quem permanece no limbo. 


Nota:

(01) Sugestão o documentário Barbosa – a tragédia de um atleta. Acesso em 24 de mar. de 2020. 

CLAUSSEN, Detlev. Béla Guttmann: uma lenda do futebol do Século XX. SP: Estação Liberdade, 2014.

DAMATTA, Roberto. A bola corre mais que os homens: duas copas, treze crônicas e três ensaios sobre futebol. RJ: Rocco, 2006.

DAMO, Arlei Sander. Do Dom à Profissão: Uma etnografia do futebol de espetáculo a partir da formação de jogadores no Brasil e na França. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Departamento de Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.

WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. SP: Companhia das Letras, 2008.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Daniel Machado da Conceição

Doutor em Educação, Mestre em Educação e Cientista Social pela UFSC. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (NEPESC/UFSC), Grupo Esporte & Sociedade.

Como citar

CONCEIçãO, Daniel Machado da. Goleiros, não só a bola decide sua divindade. Ludopédio, São Paulo, v. 130, n. 34, 2020.
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