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Gols, cinturinhas e Cadillacs

A cinematografia brasileira se recente de filmes sobre esporte. Não que o tema esteja absolutamente ausente, mas sua presença, no entanto, não corresponde ao espaço ocupado por essas práticas no imaginário nacional. O futebol, em especial, parece flagrantemente sub-representado diante da enorme popularidade da modalidade no país.

Nesse contexto, o filme de José Henrique Fonseca, Heleno, o Príncipe Maldito, se junta a obras como Subterrâneos do futebol ou Garrincha, alegria do povo, que podem ser apontados como alguns dos mais representativos filmes brasileiros sobre o esporte bretão. Heleno, estrelado por Rodrigo Santoro, conta a história de Heleno de Freitas, jogador do Botafogo e da seleção brasileira na década de 1940, que se notabilizou por sua habilidade futebolística, por seu temperamento explosivo, mas também por sua própria história, extraordinária em muitos aspectos.

Todavia, o próprio diretor do filme insistiu em destacar que não se trata propriamente de um filme sobre futebol. Para José Henrique Fonseca, em entrevista para Folha Ilustrada, “o filme é sobre um homem que saiu dos trilhos. O futebol está em segundo plano”.

Da minha parte, contudo, a despeito das intenções do cineasta, acredito que Heleno, o Príncipe Maldito, pode perfeitamente ser tomado como um filme de futebol. Foi assim que o assisti e é assim que o trato agora: um filme de futebol.

Heleno, diferente do que disse o cineasta, não era apenas um homem que saiu dos trilhos, mas sim um jogador de futebol que saiu dos trilhos, o que tem profundas implicações, tanto para a relevância da história a ser contada, quanto para a própria caracterização da personagem. Segundo a definição de Nelson Rodrigues, “Heleno de Freitas não é bem um jogador, mas um personagem do futebol” (o grifo é meu).

Heleno já fora alvo de duas biografias, a primeira, de Carlos Rangel, em 1970, e a segunda, de Marcos Eduardo Neves, em 2006, com nova edição em 2012.

Em larga medida, é justamente essa particularidade, decorrente do envolvimento de Heleno com o mais popular dos esportes, o que torna tão extraordinária a sua história. Fosse ele um cidadão qualquer, muito provavelmente não haveria qualquer interesse em narrá-la. Acontece que Heleno foi um dos maiores jogadores de seu tempo, o Nyjinski do futebol, conforme o chamaram, o quarto maior artilheiro da história do Botafogo, o futebolista mais caro da América do Sul em meados dos anos 40, um homem que chutava com a cabeça.

Heleno é apontado como um dos primeiros bad boys do futebol brasileiro. Intempestivo, alguns de seus “sururus”, passados 60 anos de acontecidos, não ficariam atrás de feitos grandiosos de outros craques do lado negro da força, como diria Darth Vader. Não é pouco, considerando que a lista inclui nomes como Adriano, Edmundo Animal, Almir Pernambuquinho ou o inenarrável Serginho Chulapa.

Caricatura de Heleno. Por Fábio Abreu.

Heleno era dos poucos jogadores de seu tempo que podia se dar ao luxo de dirigir Dodges e Cadillacs. Tido por galã, habitué do Cassino da Urca e do Copacabana Palace, onde encontrava-se com algumas de suas muitas namoradas, esbanjou o seu dinheiro o quanto pode. Para todos os efeitos práticos, Heleno era um playboy, partícipe honorário do Clube dos Cafajestes e titular absoluto de times de futebol de praia do Posto 4. No campeonato sul-americano de 1945, embarcou para o Chile levando consigo 32 mil cruzeiros, além de dez ternos feitos pelo mesmo alfaiate do presidente Getulio Vargas.

Heleno era praticamente um astro pop, numa época em que astros pop não existiam ainda. Seu final trágico, falido, viciado em éter e avassalado pela sífilis, só concorre para a sua peculiar posição no panteão dos heróis nacionais, um herói sem nenhum caráter, “o mais romanesco jogador do futebol brasileiro”, diria Nelson Rodrigues.

Em 1951, já em franca decadência, revelou a jornalistas que todo o dinheiro adquirido com o futebol, estimado em mais de 5 milhões de cruzeiros, havia simplesmente sumido! Perplexos, os jornalistas ainda se deram o trabalho de perguntar-lhe como exatamente, para o que Heleno, espirituoso como sempre, apenas dissera: “– O gato comeu”!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Cleber Dias

Professor da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa em História do Lazer.

Como citar

DIAS, Cleber. Gols, cinturinhas e Cadillacs. Ludopédio, São Paulo, v. 38, n. 4, 2012.
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