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Gostar ou torcer? Formas de conversão torcedora

Luiz Henrique de Toledo 22 de outubro de 2021
Kike Toledo
Foto: Kike Toledo

Quais relações podemos estabelecer entre termos tão familiares como gostar e torcer? Há, certamente, uma solução de contiguidade entre essas emoções quando as tratamos sob o ponto de vista da subjetividade, mas há descontinuidades entre elas quando as abordamos do ponto de vista de uma ciência social como a antropologia.

Recorro ao ambiente familiar e trago à baila uma personagem muito próxima, minha avó materna, que foi uma torcedora fervorosa, e sempre que tocávamos no assunto futebol, conversa quase que diária e obrigatória, dava um novo colorido à sua história esportiva pessoal.

Torcedora entre tantas, guardava a peculiaridade de ter nascido no mesmo ano de seu time do coração, o Corinthians, portanto em 1910. Isso já vai para lá de 100 anos, portanto. Informar essas datas de nascimento, mais do que mera coincidência, é relevante porque atesta uma situação um tanto distinta, creio, de todos nós, que já encontramos nossos times de coração situados dentro de alguma história oficial, afinal, nascemos bem depois deles.

Dona Rita foi testemunha ocular de uma evolução esportiva, e juntamente com milhares de outros e outras torcedoras se reconheceu paulatinamente engajada e convertida a essa novidade, que, como todo fato social, tem sua evolução histórica.

Nascida no interior de São Paulo, obviamente filha de pais “não torcedores”, afinal o futebol, tal como ela, ainda era uma “criança” no início do século XX, conheceria as primeiras emoções do e no futebol por intermédio dos irmãos homens, que como tantos outros jovens daqueles tempos abraçaram rapidamente o modismo esportivo vindo das capitais. Modismo que também conheceu um processo de conversão à uma prática continuada, depois institucionalizada, espalhando-se como rastilho de pólvora pelo país, tornando-se febre que ganhou notoriedade cultural, convertendo-se em signo de muitas formas de identidade: das mais oficialescas, como símbolo nacional patrocinado pelo Estado às mais subjetivas formas de adesão popular.

Então, podemos dizer, que essa minha avó foi pega num vórtice de emoções que a fizeram gostar de futebol. Peço que o leitor fique atento e retenha esse termo, gostar. Trata-se de uma palavra que revela, primeiro, uma apreensão subjetiva, individual e inalienável, que na sua intensidade é quase intransferível, porque se trata de uma representação individual.

Gostar revela ainda uma tomada de juízo de valor convertido em emoção, que promove novas sensações ao corpo e à mente, e cria, também, alguma memória. Memória que, na condição de seu neto interlocutor, pude acessar graças aos impactos que o futebol causou em sua vida, na formação de sua pessoa ligada às lembranças familiares que lhes eram caras.

Vale o exercício de imaginar as sensações daquela jovem, e de tantas outras, meninas, mulheres, que também e muito justamente se entregaram e tomaram para si não somente os primeiros peleios da prática do futebol, mas de tantas outras modalidades que pipocariam desde os grandes centros urbanos pelo mundo. Trata-se de uma história mais ou menos conhecida, que revela o quanto a inserção das mulheres nos esportes foi realizada dentro de uma atmosfera que se relaciona às causas da emancipação feminina. Hoje, há muitos bons trabalhos que nos contam as peripécias e estratégias de tantas mulheres que ousaram praticar, sobretudo o futebol, em países como o Brasil.

Manterei o foco no tema do torcer, no caso, nesse caso, aquele que concerne ao “ser torcedora”, porque mesmo o ponto de vista do torcer pode revelar muito dessa história recheada de exclusões e conquistas coletivas e pessoais femininas, idas e vindas de um processo de participação das mulheres nesse ambiente esportivo, que desde muito cedo se blindou em torno das expressões da masculinidade viril e suas retóricas hostis e excludentes.

Levando um pouco mais adiante a história dessa personagem, percebe-se que, com ela, e acredito que tenha ocorrido com tantas e tantas outras mulheres, e ao contrário da adesão masculina, deu-se um importante hiato, que nos serve para desvendar aquilo que chamo de conversão torcedora. Quer dizer, podemos sustentar que para as mulheres gostar, convertido em torcer, foi um processo muito mais árduo e cheio de entraves. Porque gostar e torcer são dois movimentos distintos dentro dessa dinâmica de subjetivação de uma prática esportiva. Processo que variou ao longo da história: se a ginástica foi logo convertida em prática saudável às mulheres, os esportes coletivos se revelariam uma seara interdita aos corpos femininos.

Minha avó contava que o gosto quase que imediato pelo futebol e sociabilidade que ela experimentava junto aos irmãos boleiros nas redes de parentesco e vizinhança, só pode ser convertido em torcer mais adiante, quando se casou, momento em que abraçou o time de coração do marido.

Vejam, lembrem-se que ela não “nasceu” corinthiana, mas com o Corinthians. Aprendeu a gostar de futebol e sua conversão torcedora se deu dentro desse particularismo das relações de gênero.  Nunca deixou de expressar tal conversão ao Corinthians com alegria e saudade, e esse fato parece mostrar uma forma de engajamento que não deixa de ser perspicaz, pois foi uma maneira de se manter dentro desse regime excludente de emoções esportivas, mas também revelador dessa condição subalternizada (torcer para o time do marido) que, obviamente, hoje dita muito menos as escolhas das meninas pelos seus clubes de coração.

Durante muto tempo o gostar de futebol, do ponto de vista feminino, ficou travado por essa relação assimétrica de gênero, convertida em fraqueza feminina, incompreensão do jogo, e inconstância psicológica clubística, e tudo redundou em toda sorte de estereótipos, impedindo que o torcer feminino ganhasse seu moto próprio, sua expansão de significados.

Frases maliciosas como “minha namorada gosta de futebol, mas não liga”, ou “agora ela torce para o meu time”, ainda são muito ouvidas em vocalizações masculinas por aí. Ao que tudo indica, gostar de futebol, mas não ligar ou acompanhá-lo como torcedor, forjou uma condição subalterna, que recaiu como estereótipo com severidade sobre as mulheres. Aliás, muito comum ouvir de jovens homens dizer que preferem jogar a torcer, fato que não causa surpresa, porque revela o jogar como uma alternativa que se apresentou a eles desde sempre, porém, muito negada ou desestimulada às meninas, também quase desde sempre.

Portanto, ousar praticar futebol (embora isso tenho ocorrido com muita luta e resiliência por tantas mulheres ao longo da história) e ousar torcer são fenômenos próximos, ambos cerceados pelos mesmos mecanismos hierarquizados de exclusão de gênero, e que fizeram ou desestimularam mulheres esportistas a frequentarem com mais paridade (e respeito, sobretudo) as arquibancadas de futebol.

É inegável e paradoxal que às mulheres coube os contornos das primeiras definições sobre o engajamento torcedor; elas que tiraram os espectadores do seu imobilismo recreativo e espanto sisudo masculino nas primeiras arquibancadas. Foram elas que converteram o olhar à prática corporalizada do torcer; foram elas que promoveram a condição coletiva de uma assistência bisonha em torcida e deram vazão às corporalidades, que passaram a jogar junto com os jogadores; foram elas que inventaram boa parte das performances daquilo que, até hoje, se reconhece por torcer.   

Posso dizer que as expressões torcedoras mais evidenciadas em minha avó, plasmadas em seu corinthianismo engajado e participativo, só se revelaram mesmo quando ela enviuvou. Isso é observação familiar, não estou inventando nada aqui. A constatação de que ela se tornara mais fanática pelo Corinthians depois do falecimento do meu avô foi um sintoma do modo como ela reestruturou ou recuperou sua sociabilidade futebolística dentro da família.

Uma das interpretações que circulava a esse respeito, como que justificando aquele comportamento um tanto exagerado do ponto de vista da sensibilidade de alguns, era de que assim procedendo ela homenageava o marido, que esse sim era o lídimo torcedor corinthiano da família: engajado, festivo, exagerado, feérico.

Gostar de futebol sempre foi tolerado às mulheres, mas torcer sempre exigiu, e por décadas, um maior esforço de compreensão. Lembro de pessoas dizendo que ela era fanática para uma senhora de idade. Católica fervorosa, assim como opositora do governo militar, expressava suas opiniões na gramática do torcer. Fatos que me fazem lembrar da primeira grande estudiosa de futebol do Brasil, Simoni Guedes, que fervorosamente lutou até o fim contra desmandos de toda ordem, lendo o Brasil pelo futebol e vice-versa.

O engajamento de minha avó e suas opiniões ferinas se convertiam numa prática que excedia o juízo racionalizado sobre as coisas. Afinal das contas, ela torcia: para um time, para um país melhor, pelos netos e netas, quem sabe por uma família esportiva mais plural.

Não digo que desconfio da versão de que ela ao torcer homenageava sinceramente o meu avô, afinal, não escondia seu afeto por ele, mas creio que a história desse “fanatismo” crescente pelo Corinthians revela alguma tática, ou outra maneira de emancipação daquele gostar feminino encapsulado, agora plenamente convertido numa expressão mais política ao optar pelo torcer em detrimento de um mero gostar.

Ela acompanhou o seu time do coração até o fim, sempre no meio de netos são paulinos, que lhe tiravam o sossego, mas também revidava de quando em quando. Como qualquer outro torcedor ou torcedora engajados e capturados pela vontade do torcer, e já quase no auge dos seus lúcidos cem anos, ficava bem perto da TV para ver com os olhos cansados aquele menino meio gordinho que, enfim, daria jeito no seu time. Era assim que definia o início da trajetória do Ronaldo, o fenômeno, no timão.

São Paulo
Camisa presenteada ao neto, que na época tinha 12 anos. Foto: Kike Toledo

A conversão torcedora possui essa dupla entrada: gostar está na esfera de uma escolha subjetiva, de difícil apreensão sociológica; escolha individual que revolve camadas profundas da nossa intimidade; vontade de se afirmar para nós mesmos como sujeitos em potencial. Torcer já seria uma segunda forma de conversão aberta aos perigos do mundo, no caso lá da minha avó, aberta aos preconceitos de gênero.

Torcer revela uma vontade que só pode se objetivar coletivamente, um engajamento político que demanda estratégias de participar e negociar a própria inclusão pessoal em esferas mais públicas de pertença. Não e à toa que torcemos para times, partidos políticos, sistemas de governo, pois torcer é mais do que olhar ou assistir, é tomar uma posição deliberada, como aquela da minha avó, que depois da infância e juventude, depois de uma submissão pela via de um casamento tradicional, converteu-se não apenas em uma torcedora senhora, mas numa senhora torcedora.

Corinthians
Manifestação “Ele não” (2018) e as novas formas de torcer e lutar. Foto: Kike Toledo

Sobre o LELuS

Aqui é o Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e de Sociabilidade. Mas pode nos chamar só de LELuS mesmo. Neste espaço, vamos refletir sobre torcidas, corporalidades, danças, performances, esportes. Sobre múltiplas formas de se torSER, porque olhar é também jogar.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Kike Toledo

Kike Toledo é sambista, torcedor e antropólogo.

Como citar

TOLEDO, Luiz Henrique de. Gostar ou torcer? Formas de conversão torcedora. Ludopédio, São Paulo, v. 148, n. 34, 2021.
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