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Gradim 1, 2, 3: o anonimato do homem negro no futebol

Isabelino Gradín, um nome popular entre as décadas de 1910 a 1930 e lembrado até os dias atuais, ao menos no Uruguai, seu país de origem, por protagonizar conquistas junto à Celeste Olímpica. Não que Gradín seja um desconhecido em terras brasileiras, pelo contrário. A fama que adquiriu como exímio jogador se espalhou neste território, onde teve passagem por ocasião dos primeiros campeonatos entre seleções sul-americanas. Mas, por trás dos superlativos que o definem em jornais e da sua relevância, ressaltadas também em artigos acadêmicos, teses e dissertações, encontramos indícios de mais uma das diversas expressões do racismo.

Atualmente, diversos (as/es) autores têm pesquisado sobre essas expressões, por vezes nomeando-as, talvez como forma pedagógica, no objetivo de se fazer entender algo mais amplo. Racismo recreativo é um conceito desenvolvido pelo professor Adilson Moreira. É um exemplo das diversas formas de explicar as inúmeras expressões do racismo no Brasil. Temos outros exemplos, como o conceito de racismo linguístico, desenvolvido por Gabriel Nascimento. É primordial destacar que nem todos os autores seguem a mesma linha teórica e há, inclusive, muitas divergências sobre um mesmo conceito ou noção. Entretanto, muitos partem da discussão, que houve ao longo do século, uma hegemonia de pensamento que barrou o debate sobre o racismo no Brasil, a partir da ideia da inexistência deste enquanto pedra fundadora das relações brasileiras.

De pronto podemos expressar nestas linhas que essa inferiorização de pessoas negras remonta o período da escravidão: elas eram reificadas/objetificadas no modo de produção escravista, tão mercadoria como o gado e os produtos agrícola. Tinham valor de uso e de troca, peças de uma engrenagem colonial. Esse processo de homogeneização do ser negro impossibilitou, de modo massificador, a individualização e humanização dessas pessoas.

A inferiorização, portanto, se expressa, sobretudo, no campo econômico. Do período colonial ao império as pessoas negras eram tratadas como “coisas” para troca-lucro-produção-reprodução. As que se revoltaram, resistiram e lutaram, constituíram levantes e outras formas de organização fundamentais à manutenção da vida e das origens e culturas africanas. Tornavam-se, deste modo, um perigo a ser combatido. Estes grupos de escravizados constituíram o “germe” da dissolução do modo de produção escravista. As expressões e formas de nomear os sujeitos aos quais se negava a subjetividade estão diretamente ligadas a este período. No pós-abolição, a lógica de inferiorização se mantém transmutada na inaptidão ao trabalho, na malandragem e na delinquência. Esse movimento de atualizar as desigualdades têm efeitos sobre os sujeitos a partir de internalizações e cristalizações, bem como da naturalização de relações assimétricas e legitimação de violências.

Grandin
Foto: Wikipédia

Isabelino Gradín nasceu menos de 10 anos após a demarcação do fim da escravidão no Brasil (1888 no Brasil, 1942 no Uruguai), em 8 de julho de 1897. No Museu do Peñarol, clube pelo qual jogou durante sete anos e que o reverencia em sua exposição permanente, Gradín tem destaque. Com o clube aurinegro o jogador foi campeão uruguaio em 1918 e 1921 e campeão sulamericano[1] com a Celeste Olímpica, nos anos de 1916, 1917, 1919 e 1920. Juntamente com Jorge Delgado, foi pioneiro como jogador negro a obter repercussão no país – informação esta constantemente lembrada e enaltecida quando o nome de Gradín emerge nos dias de hoje. Mas fato é que acabamos não sabendo muito mais do que isso sobre a vida deles.

Como observado em Dantas (2017), Mário Filho, em O Negro no Futebol Brasileiro, comenta sobre a fama de Gradín no Brasil. Após a passagem da seleção Uruguai pelo país, na Copa América de 1919, houve uma “praga de Gradíns” devido a esse jogador: “todo preto que jogava um pouco de futebol virava um Gradim” (RODRIGUES FILHO, 2003, p.110).

Em alguns jornais brasileiros é possível encontrar indícios da presença desses Gradins entre os anos 1920 e 1945. Havia um Gradim no time do Uberaba, em Minas, outro em São Cristóvão, no Rio. Um deles chegou a virar técnico nos anos 1950. Times com mais de um Gradim, identificados como Gradim I e Gradim II, também existiam. Havia Gradim em time de basquete e disputando provas de atletismo também (DANTAS, 2017).[2]

Se, a princípio, ao trazer a baila e apresentar o jogador uruguaio como forma de construir a memória negra e valorizar de forma humanizada sua atuação, nos faz parecer que a história do jogador era um ponto fora da curva. Nessa lógica de perpetuação do racismo, uma vez que reconhecido por seu trabalho e de fama notória na época em que viveu, a “praga de Gradins” nos anuncia um olhar subjacente sobre essa história. Além da aparentemente despretensiosa comparação às pragas, a “exaltação” de Gradín acabou servindo como referência para o reconhecimento despersonificado de homens negros que jogavam futebol no Brasil naqueles tempos.

De quando em quando chegava alguém num grande clube com a novidade de que tinha visto um Gradim. Uns clubes iam ver, outros não iam. Querendo ganhar campeonatos, mas com brancos. Nada de Gradins. E os torcedores fazendo pressão, ‘é um Gradim, parece o Gradim, joga como um Gradim’ (RODRIGUES FILHO, 2003, p.112).

Esse reconhecimento despersonificado expressa o racismo recreativo, o preconceito transmitido com “humor”, também nos apelidos ou como são nomeados homens e mulheres negras, seja no esporte seja nas diversas esferas da vida cotidiana. 

Como lembra Mascarenhas (2014), apesar de poderem ser melhores em campo e conseguirem certas regalias no trabalho por serem jogadores, essa nova condição de vida não os retirava de uma condição subalterna naquele momento em que se começava de forma ainda rudimentar a remunerar os jogadores no futebol. Dessa maneira, jogadores operários, em especial os negros, entram como bons de bola, mas para compor os times e não para assumir um protagonismo atribuído a alguns deles muitos anos mais tarde. Porém, nesse campo de confronto, muitas forças estavam em movimento. 

Não é difícil identificar que alguns dos times pertencentes às elites do primeiro quarto do século passado tinham em seus elencos jogadores negros. Aliás, com a pressão dos movimentos negros e outras organizações antirrascistas, os times têm empenhado esforços em “garimpar” para encontrar documentos, fotos, reportagens que comprovem a existência de homens negros desde as primeiras equipes, como se isso os eximisse das críticas de time racista. Além do mais há histórico de ligas e times formados apenas por homens negros, que compunham umas das formas de organização negra na cidade de São Paulo. A formação desses times foi concomitante aos quilombos urbanos, confrarias negras, e outras atividades artístico-culturais. E com a exclusão dos homens e mulheres negras do mercado formal que se estruturava, o futebol passou a ser um grande atrativo como forma de renda para homens negros, o que, sob o olhar dos homens brancos, transformaria os primeiros em “pragas” que rapidamente “devastariam” o amadorismo brasileiro. E, caberia também aos homens negros serem subalternizados e coisificados, mesmo em sua condição proletária no contexto do futebol.  

A compreensão dos modos de ser negros está aprisionada em uma constituição caracterizada como “homem negro”, em que cabem todas as “idéias” do que vem a ser esta categoria, a saber: hipersexualização, agressividade, emotividade, irracionalidade, propensão a vícios e ao ócio e incapacidade de assumir atividades laborativas formais. Tais ideias vão compor o imaginário negro e branco, este último não racializado. 

Esse conjunto de atributos facilita a colocação de apelidos: ao invés de afirmar as capacidades positivas (humanas) que subjetivam os negros em sua diversidade, promove um deslocamento daquele atributo destacado para outros homens negros. Assim, mesmo sendo bons no que fazem, eles acabam destituídos de singularidade. Nas palavras de Fanon (2008, p.26), “O negro é um homem negro; isto quer dizer que, devido a uma série de aberrações afetivas, ele se estabeleceu no seio de um universo de onde será preciso retirá-lo”. Como a sociedade brasileira é racializada, o que se faz cotidianamente é manter os homens negros nesse conjunto de atributos e gerar inúmeros Gradins, Pelés, Neymares.

Com isso, não está descartada a “homenagem” que se faz aos grandes ídolos. Mas, diante destes apelidos e formas de homogeneização de homens negros, qual a possibilidade que tem o jogador negro de se destacar ao negar este tipo de caracterização? Desde as categorias de base ele é identificado com o jogador de sucesso que o antecedeu (Gradin I e II e tantos outros, Tinga, Léo Pelé, novos robinhos). Quantos homens foram apelidados de Pelé, mesmo que não estivessem praticando futebol? Quantos outros apelidos relacionados diretamente à cor foram empregados aos jogadores, tais como Grafite, Somália, Chocô, Wellington Saci, Negueba, Apagão?[3] E às mulheres? Maycon, Pretinha, Pelézinha, Michael Jackson, quantas mais? E quantos goleiros negros, desde a década de 50, tiveram sua capacidade e, até mesmo, sua identidade negada, sendo associados e/ou identificados, imediatamente, ao goleiro Barbosa?

Se esses apelidos se encontram presentes no cotidiano, nos espaços específicos do futebol são reproduzidos ad infinitum e a justificativa, em ambos espaços, lembrando que não estão dissociados, são sempre as mesmas: “não teve intenção de ofender…”; “é uma brincadeira…”; “não são estereótipos, muito menos racismo…”. E boa parte das explicações terminam com a famosa adição: “Tenho até amigos/familiares que são negros!”, “Logo eu, que tenho cachorro preto”. 

As (os) leitoras (es) podem estar se questionando sobre a real importância de se discutir como um jogador é chamado. Principalmente porque no Brasil temos preconceito em ter preconceito. A maioria da população afirma que existe racismo, entretanto, poucos reconhecem os racismos em si. E, dessa forma, mesmo sem uma intenção explícita, identificar jogadores negros com seus antecessores segue tendo efeitos. Em que medida não há a tentativa de apagamento das diferenças dos modos de ser de pessoas negras, remetendo as habilidades dessas pessoas a uma exceção?

Grandin
Foto: Reprodução

* Agradecimentos especiais à amiga e também organizadora dessa série, Bárbara Mendes, pela revisão do texto.

Notas

[1] O Campeonato Sul-Americano passou a se chamar Copa América em 1975.

[2] O Gradín uruguaio também era velocista.

[3] O episódio #41 do Ubuntu Esporte Clube trata da questão do racismo recreativo e os apelidos dos jogadores de futebol.

 

Referências

DANTAS, Marina de Mattos. Cartografias de um campo invisível: os anônimos jogadores do futebol brasileiro. 2017. 252 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Faculdade de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

FILHO, Mario. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.

MASCARENHAS, Gilmar. Entradas e Bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2014.

MOREIRA, Adilson. Racismo Recreativo. São Paulo: Editora Jandaíra, 2019.

UBUNTU ESPORTE CLUBE, 41: Racismo não é piada. Podcast. Acesso em: 25 maio 2021.

 

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Marina de Mattos Dantas

Psicóloga (CRP 04/28.914). Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP (com estágio pós-doutoral em Estudos do Lazer na UFMG) e mestre em Psicologia Social pela UERJ. Professora na Universidade do Estado de Minas Gerais. Pesquisadora no Grupo da Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT/UFMG), no Grupo de Estudos Socioculturais em Educação Física e Esporte (GEPESEFE/UEMG), no Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia Social do Esporte (GEPSE/UFMG) e no Grupo de Trabalho Esporte e Sociedade do Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (CLACSO). Compõe a diretoria da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte (ABRAPESP/2024-2025). É produtora no Programa Óbvio Ululante na Rádio UFMG Educativa e colunista no Ludopédio.

Roberta Pereira da Silva

Pesquisadora sobre futebol de várzea e racismo no futebol. Doutoranda pela PUC SPSantista e metida a poeta nas horas vagas.

Como citar

DANTAS, Marina de Mattos; SILVA, Roberta Pereira da. Gradim 1, 2, 3: o anonimato do homem negro no futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 144, n. 4, 2021.
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